Primeiro o Evangelho da
dignidade humana, depois as leis!
Passadas sete semanas de um tempo marcado pelo júbilo pascal e as
solenidades de Pentecostes, da Santíssima Trindade e do Corpo e Sangue de
Jesus, voltamos ao tempo comum, que, no Brasil, continua sendo um período
festivo: o tempo das alegres e envolventes festas juninas. Como a lei do sábado
para os hebreus, as festas tem a força de romper com o cinzento calendário do
trabalho e com a percepção da vida como um peso sem alívio e de lembrar que somos
gente libertada e chamada à liberdade. Elas celebram uma dignidade conquistada no
passado ou a certeza de “uma vitória que vai ter que acontecer”.
Mas nós sabemos também que as festas, assim como a memória e as leis que
nasceram para garantir a liberdade e a fraternidade, podem ser capturadas pelas
pessoas e instituições que desejam perpetuar seu poder dominador sobre as
pessoas. Isso aconteceu com as leis que nasceram da aliança de Deus com o povo
hebreu, no caminho para a terra prometida, e, infelizmente, aconteceu e
acontece com o Evangelho vivido e anunciado por Jesus Cristo: ele continua
sendo usado para oprimir gente já quebrada por tantas dores, para subjugar
pessoas e povos aos tiranos, para distrair os oprimidos das necessárias lutas,
para angariar votos, para arrancar dinheiro aos pobres e enriquecer pastores e
igrejas.
Voltemos nosso olhar a Jesus de Nazaré e sintonizemos nossos ouvidos com
o evangelho desse domingo. Há pouco, Jesus havia curado um paralítico mediante
a declaração de que ele não era culpado de nada (cf. Mc 2,1-12) e partilhado
uma refeição com pessoas consideradas indignas (cf. Mc 2,13-18). Animados pela
dignidade e liberdade que Jesus, o esperado noivo da nova aliança, lhes
conferia, os discípulos se permitiram desconsiderar a lei do jejum. Tanto as ações
de Jesus como as dos seus discípulos irritaram profundamente o grupo dos
fariseus, representantes do legalismo sem coração.
Para completar o escândalo, os discípulos de Jesus atravessam campos de
trigo e recolhem sem cerimônia os grãos que necessitam para matar a fome, e
isso no sacratíssimo dia de sábado... Se levamos a sério a resposta de Jesus ao
questionamento dos defensores da lei, fazendo isso os discípulos afrontam duas
leis: a lei que proíbe qualquer trabalho no dia de sábado e a lei que impede a
violação da propriedade privada. É isso que transparece na referência de Jesus
a Davi e seus companheiros, que, estando com fome, se apropriaram das oferendas
que pertenciam exclusivamente aos sacerdotes.
No fundo, o que Jesus quer discutir e colocar em evidência, inclusive na
cena seguinte, é o espírito e a finalidade das leis e instituições: elas
proíbem, permitem e ordenam fazer o bem ou fazer o mal, salvar uma vida ou matá-la?
Para Jesus, estômago febril de uma pessoa pobre e faminta é mais sagrada que
todos os templos, leis e instituições. Para salvar uma pessoa ou um povo em
situação de risco, o respeito à lei se torna secundário. Além disso, faz parte
da maturidade e da liberdade cristã desmascarar corajosamente as leis, costumes
e instituições que não fazem outra coisa que oprimir os pobres.
Os acontecimentos recentes da política e do judiciário brasileiros estão
a demonstrar que a lei só é pesada e tem força quando se trata de punir os
pobres e quem participa das suas lutas. A lei não é parâmetro absoluto para a
justiça! Basta lembrar que a escravidão negra foi legal no Brasil; o apartheid
foi legal na África do Sul; a mutilação sexual das mulheres ainda é legal em
alguns países árabes; a prisão de Nelson Mandela, como a de Lula, não foram
feitas ao arrepio da lei; o congelamento dos investimentos na saúde e na
educação foram atos legais, assim como a desmantelamento dos direitos
trabalhistas...
Afirmar isso não é anarquia ou rebeldia adolescente, mas Evangelho de
Jesus Cristo! É claro que o Evangelho da liberdade é um tesouro que os cristãos
e suas Igrejas carregamos em vasos de barro, com o risco de quebrá-lo ou
trancafiá-lo em cofres invioláveis, longe da vida. Mas a luta para sermos
libertária e responsavelmente fiéis a esse Evangelho nos insta até a morte!
Como Paulo, no cumprimento dessa sagrada missão, somos atribulados, mas não
desanimamos; enfrentamos dificuldades, mas nada tira nosso ânimo; somos
perseguidos, mas encontramos consolo; caímos, mas levantamos e prosseguimos.
Jesus de Nazaré,
peregrino nos santuários das dores e lutas dos humildes e dos humilhados! Ajuda
teus discípulos e discípulas a não fazer do teu Evangelho uma lei, a não
transformar teu vinho novo em vinagre azedo e tua liberdade em novas
dominações. Faz ressoar sempre mais em nossos ouvidos a Boa Notícia que
anunciavas com palavras e gestos nos caminhos e sinagogas da Galileia, e dá-nos
coragem para permanecer fiéis e solidários nas lutas do povo e vigor para
denunciar todas as armadilhas que, de forma sorrateira ou escancarada, os
poderosos colocam nos seus caminhos. Amém! Assim seja!
Itacir Brassiani msf
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