quarta-feira, 6 de março de 2019

ANO C | TEMPO DE QUARESMA | PRIMEIRO DOMINGO | 10.03.2019


A quaresma nos ajuda a sair da nossa alienação existencial.
Escrevendo aos cristãos de Roma, Paulo sublinha enfaticamente que, a partir de Jesus, as diferenças religiosas, culturais e nacionais não importam mais: todos têm o mesmo Senhor, que é generoso para com todos os que a ele se abrem e o invocam. Esta é uma boa notícia, uma mensagem acessível e estimuladora. Ao mesmo tempo, é um profético apelo à comunhão ecumênica e à abertura à verdade do outro, a eliminar os preconceitos e interesses que nos levam a julgar os outros como inferiores e maus, negando-lhes direitos fundamentais. Infelizmente, é isso que vem marcando a política e a comunicação no Brasil ultimamente...
Depois do batismo no rio Jordão, Jesus sentiu necessidade de compreender melhor aquilo que viu e ouviu. Ele fará isso ao longo da sua vida, mas Lucas condensa este discernimento num tempo e num lugar bem determinados. Com isso, o evangelista sublinha a total identificação de Jesus com o povo hebreu e com toda a humanidade, inclusive nas buscas e provas. Efetivamente, Jesus foi tentado ou provado, e não somente num período de quarenta dias. Uma leitura atenta dos evangelhos, especialmente do desfecho da missão de Jesus em Jerusalém, deixa claro que a tentação o acompanhou durante toda sua vida.
O Espírito leva Jesus ao deserto, lugar da impotência, da carência e da dependência, mas o Tentador o conduz aos lugares altos, onde a riqueza e o poder brilham mais. O Diabo personifica as forças que se opõem ao plano de Deus, o espírito do poder, da dominação e da manipulação. Jesus se defronta com estas forças e caminhos: fugir das carências comuns a todos as criaturas e agir em causa própria; seguir a lógica da riqueza e do poder que amedronta, expropria e oprime; explorar a fé dos pequenos, manipular as escrituras e transformar a religião num espetáculo. Isso configura uma espécie de alienação existencial e social.
Prestemos atenção à segunda tentação. “O diabo o levou para o alto; mostrou-lhe, num relance, todos os reinos da terra, e lhe disse: eu te darei todo este poder e a riqueza destes reinos, pois a mim é que foram dados, e eu os posso dar a quem eu quiser.” A proposta é tentadora, mas o custo é altíssimo: renunciar à liberdade e à compaixão que caracterizam o ser humano e sustentam a convivência social. “Se te prostrares diante de mim, tudo isso será teu.” Riqueza e poder é o que os adversários da Vontade de Deus oferecem, em troca de obediência e submissão, às pessoas que os servem.
Ao dizer que a pessoa humana não vive somente de pão, Jesus está se referindo a Dt 8,3 e propondo a fidelidade aos princípios da Aliança como garantia de alimento para todos. Afirmando que só a Deus devemos adoração e culto, não está afirmando “Deus acima de tudo”, mas descartando a meritocracia e afirmando que não é correto considerar tudo como mérito pessoal (Dt 6,10-15). Dizendo que não devemos colocar Deus à prova, Jesus tem diante de si a passagem Dt 6,16 e recorda o acontecimento de Massa, quando, atravessando o deserto, os hebreus protestaram contra Deus por causa da falta de água.
Reconhecer nossos vínculos com Deus, com os irmãos e irmãs e com toda a criação, reconhecer que tudo é dom recebido e confiado ao nosso cuidado em favor de todos os seres humanos, é uma forma de manter um horizonte que transcende nossos interesses ou medos e de evitar o risco da idolatria. Deus não limita nem se opõe à liberdade e à autonomia humanas, mas questiona os valores e instituições menores que colocamos em seu lugar: dinheiro, poder, raça, indivíduo, nação e até a religião. A decisão está posta nas nossas mãos: a quem serviremos, obedeceremos e adoraremos?
As tentações fizeram parte da vida de Jesus e fazem parte da caminhada dos seus discípulos e discípulas (cf. Lc 8,13; 11,4; 22,31). Mas assim como Jesus resistiu às tentações, também seus discípulos e discípulas podemos vencê-las. Por isso, além de lucidez para percebê-las, precisamos de coragem e de estratégias adequadas para enfrentá-las. E a quaresma se nos oferece uma espécie de treinamento especial e intensivo para esta luta. Para resistir às tentações que, mesmo sob uma roupagem que aparenta sabedoria, felicidade e sucesso, deixemo-nos guiar pelo Espírito Santo e pelo Evangelho de Jesus de Nazaré.
Jesus de Nazaré, irmão e companheiro dos homens e mulheres nas grandes e pequenas tentações: cura nossa liberdade e liberta nossas utopias, feridas pelo pecado da ambição. Ajuda-nos a descobrir, amar e internalizar tua Palavra, para que ela sustente, guie e julgue todos os nossos projetos, decisões e ações. E não nos deixes ceder à tentação de negar nossa vulnerabilidade, de aderir à lógica do dinheiro e do poder e de manipular a fé dos pobres, substituindo a compaixão regeneradora pela busca da prosperidade. Assim seja! Amém!
Itacir Brassiani msf
Livro do Deuteronômio 26,4-10 | Salmo 90 (91)| Carta de Paulo aos Romanos 10,8-13 | Evangelho de São Lucas 4,1-13

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