quinta-feira, 3 de novembro de 2016

ANO C – SOLENIDADE DE TODOS OS SANTOS – 06.11.2016

Bendita e santa fome e sede de justiça!

Hoje a festa é de todos os santos e santas. Como poderíamos esquecer que a verdadeira santidade é aquela que se manifesta na vida das pessoas que ousam sair do estreito limite dos seus próprios interesses e se aproximar solidariamente dos últimos; que vão aos rincões mais distantes para levar a bandeira da paz; que são movidas por uma insaciável sede de justiça; que choram as dores dos povos de todas as cores, e provam o fel da violência e da perseguição; que transformam a terra pela mansidão...? Celebremos a alegria de participar de uma imensa caravana de homens e mulheres de todas as raças, nações e línguas que nos precedem, nos acompanham e nos seguem.
A festa de hoje faz memória das santas e santos esquecidos, daqueles que não têm um dia especial, nem um nome conhecido, que gastaram a vida anonimamente e cujos milagres não cabem nas estreitas regras canônicas; de gente como Sepé Tiarajú, Padre Cícero, Dom Romero, e Ir. Dorothy; e mesmo de gente que não rezou pelo nosso catecismo, como Lutero, Martin Luther King, Gandhi, Betinho e tantos outros. Hoje celebramos a memória de todos aqueles que nos antecederam na fé e cujo testemunho mantém a Igreja e a humanidade no caminho certo, apesar das suas resistências e ambivalências.
Mas a celebração de todos os santos e santas não olha somente para o passado. É oportunidade e provocação para refletir sobre a vocação fundamental de todos os cristãos. É verdade que a santidade é um caminho estreito e uma vocação exigente, mas isso não significa que seja reservada a alguns grupos especiais de cristãos. Há mais de 50 anos o Concílio Vaticano II proclama de forma clara e inequívoca, contra a ideia predominante nas Igrejas, que a santidade não é privilégio dos sacerdotes e religiosos. Muito antes, a história já havia comprovado o que agora é proclamado solenemente.
Na passagem do milênio, João Paulo II nos provocava a não contentarmo-nos com pequenas medidas, com voos rasantes e ideais nanicos, e pedia que aspirássemos nada menos e nada mais que à santidade. O chamado à santidade, que é para todos, precisa se transformar em desejo pessoal e em decisões e ações concretas. Como diz São João, nós somos chamados filhos de Deus e já o somos desde agora, mas somos desafiados a crescer na identificação com Jesus Cristo, a gravar no corpo e na mente as marcas de Jesus Cristo. “Seremos semelhantes a ele...” E isso deve ser mais que um simples sentimento.
Jesus Cristo é o verdadeiro e perfeito santo de Deus e, ao mesmo tempo, o caminho para a santidade. Não há santidade à margem do seguimento de Jesus Cristo, mesmo que tal seguimento seja implícito. Trata-se de refazer o caminho prático trilhado por Jesus: “amar como Jesus amou; sonhar como Jesus sonhou; pensar como Jesus pensou; viver como Jesus viveu; sentir como Jesus sentia...” Este é o caminho para que, no meio ou no fim do dia e no meio ou no fim da vida, sejamos felizes, santos. O caminho para santidade, percorrido pelo próprio Jesus Cristo, é pavimentado pelas bem-aventuranças!
A bela mensagem deste trecho do “sermão da montanha” apresenta os sinais que indicam o caminho da santidade. Jesus não fala de oito grupos específicos de pessoas, mas de oito características daqueles que percorrem este caminho. Esta via sagrada começa com a pobreza e termina com a perseguição, que não representa um obstáculo, pois o Reino de Deus é antes de tudo dos pobres e dos perseguidos. A consolação é para os aflitos, a terra é para os mansos, a saciedade é para os famintos, a misericórdia é para os compassivos, a visão de Deus é para os puros e a filiação divina é para os promotores da paz.
Felicidade e santidade não significam ausência de dificuldades, mas realização plena e profunda do ser humano. Mais que perfeição, santidade é perseverança no amor e no serviço. Passa longe do Evangelho uma santidade que se resume em práticas de piedade e devoções. Está distante da essência humana uma felicidade baseada no sucesso pessoal, indiferente à sorte dos semelhantes. As pessoas que se vestem de branco e trazem palmas nas mãos são aquelas que vieram da grande tribulação, que lavaram suas vestes no sangue do Cordeiro, que encarnaram o Evangelho no mundo e na própria vida.
Deus pai e mãe, fonte de toda santidade. Dá-nos a graça de permanecermos sempre de pé diante do teu Filho, rodeados pela nuvem de testemunhas anônimas, de gente de todas as nações, tribos, raças e línguas. Ajuda-nos a superar a tentação de separar, catalogar e hierarquizar católicos e evangélicos, cristãos e não-cristãos. Fica conosco e caminha à nossa frente, para que estejamos sempre prontos a amar e servir. E que a inexplicável alegria em meio às intermináveis lutas seja nossa arma e nosso triunfo. E então estaremos vivendo em comunhão com aqueles que te louvam no céu e na terra. Assim seja! Amém!

Itacir Brassiani msf
(Apocalipse de S. João 7,2-4.9-14 * Salmo 23 (24) * 1ª. Carta de S. João 3,1-3 * Evangelho de Mateus 5,1-12)

quinta-feira, 27 de outubro de 2016

Igreja Catolica critica e condena a PEC 241

NOTA DA CNBB SOBRE A PEC 241
“Não fazer os pobres participar dos próprios bens é roubá-los e tirar-lhes a vida.”
 (São João Crisóstomo, século IV)
O Conselho Permanente da Conferência Nacional dos Bispos do Brasil-CNBB, reunido em Brasília-DF, dos dias 25 a 27 de outubro de 2016, manifesta sua posição a respeito da Proposta de Emenda à Constituição (PEC) 241/2016, de autoria do Poder Executivo que, após ter sido aprovada na Câmara Federal, segue para tramitação no Senado Federal.
Apresentada como fórmula para alcançar o equilíbrio dos gastos públicos, a PEC 241 limita, a partir de 2017, as despesas primárias do Estado – educação, saúde, infraestrutura, segurança, funcionalismo e outros – criando um teto para essas mesmas despesas, a ser aplicado nos próximos vinte anos. Significa, na prática, que nenhum aumento real de investimento nas áreas primárias poderá ser feito durante duas décadas. No entanto, ela não menciona nenhum teto para despesas financeiras, como, por exemplo, o pagamento dos juros da dívida pública. Por que esse tratamento diferenciado? 
A PEC 241 é injusta e seletiva. Ela elege, para pagar a conta do descontrole dos gastos, os trabalhadores e os pobres, ou seja, aqueles que mais precisam do Estado para que seus direitos constitucionais sejam garantidos. Além disso, beneficia os detentores do capital financeiro, quando não coloca teto para o pagamento de juros, não taxa grandes fortunas e não propõe auditar a dívida pública.
A PEC 241 supervaloriza o mercado em detrimento do Estado. “O dinheiro deve servir e não governar!” (Evangelii Gaudium, 58). Diante do risco de uma idolatria do mercado, a Doutrina Social da Igreja ressalta o limite e a incapacidade do mesmo em satisfazer as necessidades humanas que, por sua natureza, não são e não podem ser simples mercadorias (cf. Compêndio da Doutrina Social da Igreja, 349). 
A PEC 241 afronta a Constituição Cidadã de 1988. Ao tratar dos artigos 198 e 212, que garantem um limite mínimo de investimento nas áreas de saúde e educação, ela desconsidera a ordem constitucional. A partir de 2018, o montante assegurado para estas áreas terá um novo critério de correção que será a inflação e não mais a receita corrente líquida, como prescreve a Constituição Federal.
É possível reverter o caminho de aprovação dessa PEC, que precisa ser debatida de forma ampla e democrática. A mobilização popular e a sociedade civil organizada são fundamentais para superação da crise econômica e política. Pesa, neste momento, sobre o Senado Federal, a responsabilidade de dialogar amplamente com a sociedade a respeito das consequências da PEC 241.
A CNBB continuará acompanhando esse processo, colocando-se à disposição para a busca de uma solução que garanta o direito de todos e não onere os mais pobres.
Nossa Senhora Aparecida, Padroeira do Brasil, continue intercedendo pelo povo brasileiro. Deus nos abençoe!

Dom Sergio da Rocha
Arcebispo de Brasília
Presidente da CNBB

Dom Murilo S. R. Krieger, SCJ
Arcebispo de São Salvador da Bahia
Vice-Presidente da CNBB

Dom Leonardo Ulrich Steiner, OFM
Bispo Auxiliar de Brasília
Secretário-Geral da CNBB

O Evangelho dominical - 30.10.2016

PODEMOS MUDAR?

Lucas narra o episódio de Zaqueu para que os seus leitores descubram melhor o que podem esperar de Jesus: o Senhor que invocam e seguem nas comunidades cristãs «veio procurar e salvar o que estava perdido». Não o irão de esquecer.
Ao mesmo tempo, com seu relato da atuação de Zaqueu ajuda a responder à pregunta que não poucos levam no seu interior: Realmente posso mudar? Não é já demasiado tarde para refazer uma vida que, em boa parte, deixei perder? Que passos posso dar?
Zaqueu é descrito com dois traços que definem com precisão a sua vida. É «chefe de publicanos» e é «rico». Em Jericó todos sabem que é um pecador. Um homem que não serve a Deus mas sim ao dinheiro. A sua vida, como tantas outras, é pouco humana.
No entanto, Zaqueu «procura ver Jesus». Não é mera curiosidade. Quer saber quem é, que se encerra neste Profeta que tanto atrai as pessoas. Não é tarefa fácil para um homem instalado no seu mundo. Mas este desejo de Jesus vai mudar a sua vida.
Para ver Jesus, Zaqueu terá que superar diferentes obstáculos. É «baixo de estatura», sobre tudo porque a sua vida não está motivada por ideais muito nobres. Outro impedimento são as pessoas: terá que superar preconceitos sociais que lhe tornam difícil o encontro pessoal e responsável com Jesus.
Mas Zaqueu prossegue a sua procura com simplicidade e sinceridade. Corre para se adiantar à multidão, e sobe a uma árvore como uma criança. Não pensa na sua dignidade de homem importante. Só quer encontrar o momento e o lugar adequado para entrar em contato com Jesus. Quer vê-Lo.
É então quando descobre que também Jesus o está a procurar, pois chega até àquele lugar, procura-o com o olhar e diz: «O encontro será hoje mesmo na tua casa de pecador». Zaqueu desce e recebe-o em sua casa, cheio de alegria. Há momentos decisivos em que Jesus passa pela nossa vida porque quer salvar o que nós estamos arriscando perder. Não os devemos deixar escapar a ocasião.
Lucas não descreve o encontro. Só fala da transformação de Zaqueu. Muda a forma de ver a vida: já não pensa só no seu dinheiro, mas no sofrimento dos outros. Muda o seu estilo de vida: fará justiça aos que explorou e partilhará os seus bens com os pobres.
Mais tarde ou mais cedo, todos corremos o risco de nos «instalarmos» na vida, renunciando a qualquer aspiração de viver com mais qualidade humana. Os crentes temos de saber que um encontro mais autêntico com Jesus pode fazer a nossa vida mais humana e, sobretudo, mais solidária.
José Antonio Pagola
Tradutor: Antonio Manuel Álvarez Perez

ANO C – TRIGÉSIMO-PRIMEIRO DOMINGO DO TEMPO COMUM – 30.10.2016

Para encontrar e anunciar Jesus, precisamos descer e sair! 

O episódio apresentado no evangelho deste domingo é sobejamente conhecido. Mas, para entendê-lo em toda a sua força e novidade, precisamos considerar o contexto no qual se desenvolve a cena. Uma rápida olhada no contexto literário nos mostra que o episódio acontece depois que Jesus acolhe e abençoa crianças (cf. Lc 18,15-17), após o frustrado encontro do jovem rico e a metáfora do camelo e do buraco da agulha (cf. Lc 18,15-34), e em seguida à acolhida e cura do cego de Jericó (cf. Lc 18,35-43). E estamos na última etapa da subida de Jesus para Jerusalém.
O contexto mais amplo revela o desconcerto e a resistência dos discípulos frente à pregação e à prática revolucionárias de Jesus: eles tentam impedir que as crianças se aproximem dele; se escandalizam com a afirmação de que aos ricos é difícil entrar na lógica do Reino de Deus; cobram a conta por terem deixado tudo para seguir Jesus; não conseguem compreender nem aceitar que seu caminho passe pela humilhação; querem calar a boca do cego e mendigo que suplica compaixão. Ou seja: não conseguem assimilar as lições mais elementares da compaixão e da misericórdia!
Quem é propriamente este personagem tão conhecido a quem o evangelista chama Zaqueu? Traduzido literalmente, seu nome significa puro ou inocente! E isso é surpreendente, já que, por ser cobrador de impostos e negociar com os romanos – considerados invasores e pagãos – Zaqueu era visto como impuro, mercenário e traidor nacional. Por isso, apesar dos muitos bens que possuía, e apesar da posição de chefia que ocupava entre os publicanos, Zaqueu era socialmente renegado e religiosamente excluído. Sua baixa estatura sinaliza mais o rebaixamento social que uma característica física!
Não obstante isso, enquanto os discípulos não conseguem reconhecer a verdadeira identidade de Jesus, Zaqueu busca insistentemente descobrir quem é Jesus. O evangelista diz que ele não desejava apenas ‘ver Jesus’, mas queria ‘ver quem era Jesus’. Movido por este desejo que dava sentido à sua vida, Zaqueu acaba fazendo aquilo que aprendera dos mesmos líderes religiosos que o desprezavam. Subir na arvore a na vida era o modo aceito como usual para alcançar a salvação: buscar palcos e pedestais, subir na hierarquia, aferrar-se às instituições judaicas, confiar nas práticas minuciosas da lei.
A árvore na qual Zaqueu sobe é símbolo e imagem do próprio judaísmo que o renega! Mas o encontro de Zaqueu com Jesus se dá de uma forma que ele não esperava. Apesar de ter subido na árvore, não é Zaqueu que vê Jesus, mas Jesus que vê Zaqueu e pede que desça imediatamente daquele lugar que nada acrescenta à sua vida. “Zaqueu, desce depressa! Hoje eu devo ficar na tua casa.” As palavras são claras e imperativas: ele deve descer, e fazê-lo depressa, porque exatamente neste dia Jesus deve permanecer na casa dele. O lugar do verdadeiro encontro de Zaqueu com a salvação não é o templo: é a rua e a casa!
Zaqueu dá-se conta do absurdo da sua estratégia de subir para saber quem é Jesus e, motivado pelo anúncio de que Jesus deveria ir naquele instante à sua casa, desce depressa e recebe Jesus em sua casa, com muita alegria. A salvação tem seu tempo e seu espaço, mas estes nem sempre coincidem com aqueles que são estabelecidos pelas religiões. Como os primeiros cristãos descobriram e anunciaram – diante do olhar escandalizado de todas as religiões –, a morada de Deus no mundo é a comunidade de irmãos e irmãs que, embasada no amor, se reúne para fazer celebrar a fé e partilhar o pão.
O encontro seguido da visita de Jesus à casa Zaqueu faz com que ele se torne mais autêntico e generoso que os fariseus mais perfeitos. João Batista havia determinado simplesmente que os publicanos não cobrassem mais do que fora estabelecido (cf. Lc 3,12-13), mas Zaqueu se propõe a devolver quatro vezes o que subtraiu aos outros, cumprindo ao pé da letra o que pedia a Lei (cf. Ex 21,37). Enquanto os fariseus pagam apenas o dízimo, Zaqueu dá a metade dos bens aos pobres! A experiência de ser visto e reconhecido por Jesus possibilita que Zaqueu revele a generosidade e a justiça que não eram vistas por ninguém e a grandeza humana que se escondia na sua pequena estatura.
Jesus de Nazaré, incansável peregrino nos santuários das dores humanas, adorável hóspede que resgata nossa dignidade e suscita uma inaudita generosidade. Faz da tua e nossa Comunidade uma família de gente nova, um povo-semente de uma vida que mereça este nome. Arranca do nosso meio a ilusão de que precisamos subir para te encontrar. Liberta-nos da acomodação e faz de nós pessoas e igrejas em descida e saída para encontrar e abraçar a humanidade. E ensina-nos a te encontrar no burburinho das ruas, nas casas que apesar de tudo se mantêm abertas e em toda carne que clama por ti. Assim seja! Amém!

Itacir Brassiani msf
(Livro da Sabedoria 11,22-12,2 * Salmo 144 (145) * 2ª Carta a os Tessalonicenses  1,11-2,2 * Lucas  19,1-10)

quarta-feira, 26 de outubro de 2016

Preparando o domingo - 30.10.2016

Hoje, a salvação entrou nesta casa (Lc 19,1-10)


De novo entra em cena a figura de um “publicano”, desta vez de nome conhecido: Zaqueu! Os governantes arrendavam áreas do país para publicanos ricos, que embolsavam o que conseguiram extorquir além das taxas estabelecidas. Estes chefes dos publicanos empregavam outros para fazer a cobrança - e enfrentar a celeuma do povo - sentados nos telônios nas portas das cidades e nas encruzilhadas das rotas das caravanas.
Zaqueu era chefe dos cobradores de impostos da cidade de Jericó, e por isso, por causa da sua extorsão, muito rico - e com certeza muito odiado e desprezado.
Porém, Lucas nos mostra que ninguém é tão perdido que não possa ser salvo pela misericórdia de Deus. Ninguém está além da possibilidade de salvação. Com umas rápidas pinceladas, ele traça o caminho da conversão e salvação de Zaqueu.
Com certeza, Zaqueu tinha ouvido falar da atividade e dos ensinamentos de Jesus, e tinha uma enorme vontade de conhecer mais de perto este homem tão diferente dos outros rabinos ou mestres religiosos do seu tempo. Nem levava em conta perder a sua dignidade, subindo em uma árvore. O importante mesmo era não perder o momento de Jesus passar.
Jesus acolhe este gesto de busca. Ele olha mais para esta chama de bondade do que para toda a maldade praticada anteriormente por Zaqueu. Pronuncia as palavras que iriam mudar para sempre a vida de Zaqueu: “Desça depressa, Zaqueu, porque hoje preciso ficar em sua casa.” (v. 5)
Por causa dessa iniciativa, o próprio mestre se torna alvo de críticas por parte dos “justos”: “Ele foi se hospedar na casa de um pecador” (v. 7). Como sempre, a novidade do Reino, trazida por Jesus rompe todos os esquemas sociais e religiosos pré-concebidos!
Diante do gesto de amor da parte de Jesus, trazendo para si o opróbrio normalmente reservado para Zaqueu, o publicano responde com um gesto concreto de conversão: “A metade dos meus bens, Senhor, eu dou aos pobres; e, se roubei alguém, vou devolver quatro vezes mais” (v. 8).
Não é uma conversão teórica, mas muito concreta, e passa pelo econômico: devolver o dinheiro roubado, partilhar os bens! O amor de Jesus conseguiu o que o ódio e o desprezo jamais conseguiriam: a conversão de um pecador. “Hoje a salvação entrou nesta casa”. Mais uma vez Jesus ilustrou de maneira muito concreta que Ele veio “procurar e salvar o que estava perdido”.
A história nos convida a assumir cada vez mais as atitudes tanto de Jesus como de Zaqueu. De um lado, compreensão, misericórdia e perdão diante dos erros alheios; do outro, reconhecimento da nossa própria necessidade de perdão e conversão contínua, para que se dê em nossas vidas a experiência de Zaqueu, de que “Hoje a salvação entrou nesta casa!”
Thomas Hughes svd

domingo, 23 de outubro de 2016

A oração do cristão

O mais importante
O mais importante não é que eu te busque
mas sim que Tu me buscas em todos os caminhos (Gen 3,9);
Que eu te chame por teu nome,
mas que Tu tens o meu tatuado na palma de tua mão (Is 49,1);
Que eu te grite quando não tenho sequer palavra,
mas que Tu gemes em mim com teu grito (Rom 8, 26);
Que eu tenha projetos para ti,
mas que Tu me convidas a caminhar contigo rumo ao futuro (Mc 1, 17);
Que eu te compreenda,
mas que Tu me compreendes em meu último segredo (1 Cor 13,12);
Que eu fale de ti com sabedoria,
mas que Tu vives em mim e te expressas do teu jeito (2 Cor 4,10);
Que eu te guarde trancado em meu cofre,
mas que eu sou uma esponja no fundo de teu oceano (EE 335);
Que eu te ame com todo o meu coração e minhas forças,
mas que Tu me amas com todo o teu coração e tuas forças (Jo 13,1).
Porque como poderia eu buscar-te, chamar-te, amar-te
se Tu não me buscas, me chamas e me amas primeiro?
O silêncio agradecido é minha última palavra,
minha melhor maneira de encontrar-te.

(Benjamín González Buelta)

sábado, 22 de outubro de 2016

América!

POR UMA NOVA LINGUAGEM INCLUSIVA
No início dos anos 1990, fui dar uma conferência sobre o papel da mulher na Igreja. A organização pediu que o texto fosse enviado antes e assim o fiz. Recebi-o de volta com a seguinte observação: “Favor usar a linguagem inclusiva”. Atônita fui verificar de que se tratava. E descobri que não se usava mais a expressão “o homem” para designar a humanidade inteira. Recorria-se a expressões como “o homem e a mulher”, a “pessoa humana”, “ser humano” etc.
Aprendi, naquela ocasião, o que significava linguagem inclusiva. É a que não exclui uma das partes ao dizer o todo, mas expõe as diferenças, a fim de a tudo incluir. Passei a tomar muito cuidado quando escrevia sobre temas de antropologia teológica ou ciências humanas, usando sempre a linguagem inclusiva. E era ajudada pela vigilância da comunidade acadêmica, que desejava realmente introduzir esse novum no falar e no pensar.
Hoje, mais de vinte anos depois, percebo que a linguagem inclusiva encontrou realmente cidadania e se antes soava estranho dizer “o ser humano” para designar o todo da humanidade, hoje acontece o contrário. Soa estranho, retrógrado e inadequado usar a expressão “o homem” quando se quer referir algo tão cheio de matizes e sutis diferenças como a humanidade. Isso comprova que nossa linguagem é performativa, cria realidade e a configura, fazendo acontecer as coisas que não são para dentro do reinado do ser.
Hoje está em curso um outro processo de linguagem inclusiva. Refere-se ao espaço em que habitamos, ao continente em que vivemos, o lado de cá da Terra, que compreende do Alasca à Patagônia e é o único do mundo que pode ser percorrido inteiramente por terra, sem interrupções. Refiro-me à América, “descoberta” por Cristóvão Colombo em 1492, mas já habitada anteriormente por diversas tribos e nações de imensa riqueza cultural e diversidade linguística.
A parte norte do continente, colonizada por ingleses chegados no navio Mayflower, desenvolveu-se muito, enriqueceu notavelmente, incluindo nesse processo de desenvolvimento o massacre das tribos indígenas, a escravidão dos africanos e o saque a territórios antes pertencentes a outros países, como o México. A parte sul, denominada “Pátria Grande”, também tem pecados de opressão e colonialismo a confessar, mas não conseguiu a pujança de enriquecimento dos irmãos do Norte. Permanece marcada pela pobreza, a desigualdade e a opressão.
Disso redundou um isolamento da parte norte do continente que passou a autocompreender-se como desligado do Sul, assumindo para si apenas o nome que pertencia a todo o conjunto encontrado por Colombo: América. América passou a ser o outro nome dos Estados Unidos, nação grande e poderosa, rica e dominadora, que defende truculentamente suas fronteiras e mantém uma política externa opressiva e temida. Diante de seu potencial bélico e sua agressividade comercial, tremem os povos fracos e os países pobres.
O sul do continente teve dupla colonização: espanhola e portuguesa, e os países correspondentes aos diversos vice-reinados receberam nomes diferentes. Cada um deles é rico cultural e linguisticamente, mas muitas vezes carente de recursos materiais. Seus habitantes têm a autoconsciência de sua identidade em termos de país, mas não a de ser um grande continente, chamado desde o princípio América e assim permanecendo até os dias de hoje.
O Papa João Paulo II propôs, em 1996, que a Igreja fosse uma só em toda a América. De lá para cá não parece ter havido muitos progressos nesse sentido. O Papa Francisco também fez tentativas em suas visitas ao continente e muito especialmente em seu discurso ao congresso dos Estados Unidos, onde defendeu abertamente a causa dos migrantes que entram nos Estados Unidos atrás do chamado “sonho americano” de prosperidade e melhoria de vida.
Parece-me que deve-se somar a todos esses esforços de conscientização uma transformação da linguagem. Ao falar, pensar, escrever sobre esta parte do mundo, deve-se usar a grafia América, seguindo a grafia hispânica, que foi a primeira que o continente conheceu e com a qual foi batizado.
Assim, paulatinamente, o nome América poderá ir trabalhando as mentes, corações e consciências no sentido de que os índios guaranis e ianomâmis, as tribos quéchuas e os aymaras, os afro-brasileiros e os latinos migrantes nos EUA são tão americanos como os anglo-saxões. Poderemos assim esperar que a linguagem vá fazendo seu caminho no imaginário dos povos, incluindo todos em uma mesma denominação. E que se faça verdade o que disse o presidente Barack Obama no discurso em que anunciou a retomada das relações com Cuba: “Somos todos americanos”.

Maria Clara Bingemer

Dia Mundial das Missoes - 23.10.2016

Igreja missionária, testemunha de misericórdia
Mensagem para o Dia Mundial das Missões 2016


Queridos irmãos e irmãs!
O Jubileu Extraordinário da Misericórdia, que a Igreja está vivendo, proporciona uma luz particular também ao Dia Mundial das Missões de 2016: convida-nos a olhar a missão ad gentes como uma grande, imensa obra de misericórdia. Com efeito, neste Dia Mundial das Missões, todos somos convidados a «sair», como discípulos missionários, para fazer frutificar os seus talentos, a sua criatividade, a sua sabedoria e experiência, para levar a mensagem da ternura e compaixão de Deus à família humana inteira.
Em virtude do mandato missionário, a Igreja tem a peito todos quantos não conhecem o Evangelho, pois deseja que todos sejam salvos e cheguem a experimentar o amor do Senhor. Ela «tem a missão de anunciar a misericórdia de Deus, coração pulsante do Evangelho» (MV, 12), e anunciá-la em todos os cantos da terra, até alcançar toda a mulher, homem, idoso, jovem e criança.
A misericórdia gera íntima alegria no coração do Pai, sempre que encontra cada criatura humana. Desde o princípio, Ele dirige-Se amorosamente mesmo às mais vulneráveis, porque a sua grandeza e poder manifestam-se precisamente na capacidade de empatia com os mais pequenos, os descartados, os oprimidos (cf. Dt 4, 31; Sal 86, 15; 103, 8; 111, 4). Ele é o Deus benigno, solícito, fiel; aproxima-Se de quem passa necessidade para estar perto de todos, sobretudo dos pobres; envolve-Se com ternura na realidade humana, tal como fariam um pai e uma mãe na vida dos seus filhos (cf. Jr 31, 20).
É ao ventre materno que alude o termo utilizado na Bíblia hebraica para dizer misericórdia: trata-se, pois, do amor duma mãe pelos filhos; filhos que ela amará sempre, em todas as circunstâncias suceda o que suceder, porque são fruto do seu ventre. Este é um aspeto essencial também do amor que Deus nutre por todos os seus filhos, especialmente pelos membros do povo que gerou e deseja criar e educar: perante as suas fragilidades e infidelidades, o seu íntimo comove-se e estremece de compaixão (cf. Os 11, 8). Mas Ele é misericordioso para com todos, o seu amor é para todos os povos e a sua ternura estende-se sobre todas as criaturas (cf. Sal144, 8-9).

A misericórdia encontra a sua manifestação mais alta e perfeita no Verbo encarnado. Jesus Cristo revela o rosto do Pai, rico em misericórdia: «não somente fala dela e a explica com o uso de comparações e parábolas, mas sobretudo Ele próprio a encarna e a personifica» (DV, 2). Aceitando e seguindo Jesus por meio do Evangelho e dos Sacramentos, com a ação do Espírito Santo, podemos tornar-nos misericordiosos como o nosso Pai celestial, aprendendo a amar como Ele nos ama e fazendo da nossa vida um dom gratuito, um sinal da sua bondade (cf. MV, 3).
A comunidade que, no meio da humanidade, vive em primeira linha a misericórdia de Cristo, é a Igreja. Ela sente sobre si o permanente olhar d’Ele que a escolhe com amor misericordioso e, deste amor, ela deduz o estilo do seu mandato, vive dele e dá-o a conhecer aos povos num diálogo respeitoso por cada cultura e convicção religiosa.
Como nos primeiros tempos da experiência eclesial, há tantos homens e mulheres de todas as idades e condições que dão testemunho deste amor de misericórdia. Sinal eloquente do amor materno de Deus é uma considerável e crescente presença feminina no mundo missionário, ao lado da presença masculina. As mulheres, leigas ou consagradas – e hoje também numerosas famílias –, realizam a sua vocação missionária nas mais variadas formas: desde o anúncio direto do Evangelho ao serviço sociocaritativo.
Ao lado da obra evangelizadora e sacramental dos missionários, aparecem as mulheres e as famílias que entendem, de forma muitas vezes mais adequada, os problemas das pessoas e sabem enfrentá-los de modo oportuno e por vezes inédito: cuidando da vida, com uma acrescida atenção centrada mais nas pessoas do que nas estruturas e fazendo valer todos os recursos humanos e espirituais para construir harmonia, relacionamento, paz, solidariedade, diálogo, cooperação e fraternidade, tanto no setor das relações interpessoais como na área mais ampla da vida social e cultural e, de modo particular, no cuidado dos pobres.
Em muitos lugares, a evangelização parte da atividade educativa, à qual o trabalho missionário dedica esforço e tempo, como o vinhateiro misericordioso do Evangelho (cf. Lc 13, 7-9; Jo 15, 1), com paciência para esperar os frutos depois de anos de lenta formação; geram-se assim pessoas capazes de evangelizar e fazer chegar o Evangelho onde ninguém esperaria vê-lo realizado. A Igreja pode ser definida «mãe», mesmo para aqueles que poderão um dia chegar à fé em Cristo.
Espero, pois, que o povo santo de Deus exerça o serviço materno da misericórdia, que tanto ajuda os povos que ainda não conhecem o Senhor a encontrá-Lo e a amá-Lo. Com efeito a fé é dom de Deus, e não fruto de proselitismo; mas cresce graças à fé e à caridade dos evangelizadores, que são testemunhas de Cristo. Quando os discípulos de Jesus percorrem as estradas do mundo, é-lhes pedido aquele amor sem medida que tende a aplicar a todos a mesma medida do Senhor; anunciamos o dom mais belo e maior que Ele nos ofereceu: a sua vida e o seu amor.
Cada povo e cultura tem direito de receber a mensagem de salvação, que é dom de Deus para todos. E a necessidade dela redobra ao considerarmos quantas injustiças, guerras, crises humanitárias aguardam, hoje, por uma solução. Os missionários sabem, por experiência, que o Evangelho do perdão e da misericórdia pode levar alegria e reconciliação, justiça e paz.
O mandato do Evangelho – «Ide, pois, fazei discípulos de todos os povos, batizando-os em nome do Pai, do Filho e do Espírito Santo, ensinando-os a cumprir tudo quanto vos tenho mandado» (Mt 28, 19-20) – não terminou, antes pelo contrário impele-nos a todos, nos cenários presentes e desafios atuais, a sentir-nos chamados para uma renovada «saída» missionária, como indiquei na Exortação Apostólica Evangelii gaudium: «cada cristão e cada comunidade há de discernir qual é o caminho que o Senhor lhe pede, mas todos somos convidados a aceitar esta chamada: sair da própria comodidade e ter a coragem de alcançar todas as periferias que precisam da luz do Evangelho» (n. 20).

Precisamente neste Ano Jubilar, celebra o seu nonagésimo aniversário o Dia Mundial das Missões, promovido pela Pontifícia Obra da Propagação da Fé e aprovado pelo Papa Pio XI em 1926. Por isso, considero oportuno recordar as sábias indicações dos meus Predecessores, estabelecendo que fossem destinadas a esta Obra todas as ofertas que cada diocese, paróquia, comunidade religiosa, associação e movimento, de todo o mundo, pudessem recolher para socorrer as comunidades cristãs necessitadas de ajuda e revigorar o anúncio do Evangelho até aos últimos confins da terra. Também nos nossos dias, não nos subtraiamos a este gesto de comunhão eclesial missionário; não restrinjamos o coração às nossas preocupações particulares, mas alarguemo-lo aos horizontes da humanidade inteira.
Santa Maria, ícone sublime da humanidade redimida, modelo missionário para a Igreja, ensine a todos, homens, mulheres e famílias, a gerar e guardar por todo o lado a presença viva e misteriosa do Senhor Ressuscitado, que renova e enche de jubilosa misericórdia as relações entre as pessoas, as culturas e os povos.

Vaticano, 15 de maio – Solenidade de Pentecostes – de 2016.

FRANCISCO

quinta-feira, 20 de outubro de 2016

O Evangelho dominical - 23.10.2016

A POSTURA JUSTA

Segundo Lucas, Jesus dirige a parábola do fariseu e o publicano a alguns que presumem de ser justos ante Deus e desprezam todos os outros. Os dois protagonistas que sobem ao templo para orar representam duas atitudes religiosas opostas e irreconciliáveis. Mas, qual é a postura justa e acertada ante Deus? Esta é a pregunta de fundo.
O fariseu é um observante escrupuloso da lei e um praticante fiel da sua religião. Sente-se seguro no templo. Reza de pé e com a cabeça erguida. A sua oração mais bonita: uma oração de louvor e ação de graças a Deus. Mas não lhe dá graças pela sua grandeza, a sua bondade ou misericórdia, mas pelo bom e grande que é ele mesmo.
Em seguida observa-se algo falso nesta oração. Mais que orar, este homem contempla-se a si mesmo. Conta a sua própria história cheia de méritos. Necessita sentir-se em ordem diante de Deus e exibir-se como superior aos demais.
Este homem não sabe o que é orar. Não reconhece a grandeza misteriosa de Deus nem confessa a sua própria pequenez. Procurar Deus para enumerar ante ele as nossas boas obras e desprezar os demais é postura imbecil. Depois da sua aparente piedade esconde-se uma oração de «ateu». Este homem não necessita de Deus. Não lhe pede nada. Basta-se a si mesmo.
A oração do publicano é muito diferente. Sabe que a sua presença no templo é mal vista por todos. O seu trabalho de cobrador é odiado e desprezado. Não se desculpa. Reconhece que é pecador. Os seus golpes no peito e as poucas palavras que sussurra dizem tudo«Oh Deus! tem compaixão deste pecador».
Este homem sabe que não pode vangloriar-se. Não tem nada para oferecer a Deus, mas muito que receber dele: o Seu perdão e a sua misericórdia. Na sua oração há mais autenticidade. Este homem é pecador, mas está no caminho da verdade.
O fariseu não se encontrou com Deus. Este cobrador, pelo contrário, encontra a postura correta ante Ele: a atitude do que não tem nada e necessita tudo. Não se detém sequer a confessar com detalhe as suas culpas. Reconhece-se pecador. Dessa consciência brota a sua oração: «Tem compaixão deste pecador».
Os dois sobem ao templo a orar, mas cada um leva no seu coração a sua imagem de Deus e o seu modo de relacionar-se com Ele. O fariseu continua enredado numa religião legalista: para Ele o importante é estar em ordem com Deus e ser mais observante que ninguém. O cobrador, pelo contrário, abre-se ao Deus do Amor que predica Jesus: aprendeu a viver do perdão, sem vangloriar-se de nada e sem condenar a ninguém.
José Antonio Pagola
Tradutor: Antonio Manuel Álvarez Perez

ANO C – TRIGÉSIMO DOMINGO DO TEMPO COMUM – 23.10.2016

O Evangelho da misericórdia gera justiça e paz!

No centro do evangelho de hoje está a questão da correta atitude na oração. Se, no último domingo, Jesus pedia que não desistamos de rezar, hoje ele nos pede atenção sobre o modo de rezar. Jesus confronta a postura de dois personagens bem conhecidos: o fariseu, cioso de sua superioridade e perfeição, separado das pessoas comuns, ostensiva e exteriormente piedoso; o publicano, cobrador de impostos, colaborador do poder estrangeiro, impuro e execrável aos olhos dos judeus nacionalistas, excluído da vida social e religiosa que gira em torno do templo. Mas, na sua mensagem para o Dia das Missões, o Papa Francisco nos lembra que o evangelho da misericórdia gera reconciliação, igualdade e justiça.
Desejoso de ser visto e reconhecido, o fariseu reza de pé, e olha os demais de cima para baixo. Sua oração é uma espécie de autoelogio, marcada pelo desprezo e pela condenação dos demais, considerados inferiores e pecadores. É como se Deus fosse obrigado a agradecer o fariseu por ele ser bom e correto. O publicano não entra no templo e, sem coragem até de levantar os olhos, bate no peito reconhecendo sua condição ambivalente e pedindo que Deus se compadeça dele. É bem possível que estas diferentes posturas na oração não sejam um problema somente do judaísmo, nem dos primeiros cristãos...
A ostentação e a pretensão de superioridade, sempre acompanhadas de uma agressiva discriminação, contaminaram também os cristãos e, infelizmente, resistem, como erva daninha difícil de erradicar, até nossos dias. E, o que é pior, quase sempre vêm revestidas com a atraente roupagem da piedade... Mas, desde o mito bíblico de Abel e Caim, sabemos que Deus que não trata todas as pessoas do mesmo modo. “Ele não é parcial em prejuízo do pobres, mas escuta, sim, as súplicas dos oprimidos; jamais despreza a súplica do órfão, nem da viúva, quando desabafa suas mágoas”, lembra o livro do Eclesiástico.
Por outro lado, precisamos lembrar que, por mais que nos custe admitir, nosso mundo está dividido. Não é necessário viajar o mundo para perceber que, em termos gerais, os países do Norte, vivem na abundância de bens e oportunidades, enquanto que os países do Sul são condenados a digerir a miséria à qual a secular expropriação os condenou. E existem também divisões entre pessoas e grupos sociais... Basta lembrar a primazia que a mídia dá às pessoas e grupos ocidentais, brancos, masculinos, cultos e ricos. Os negros e índios, as mulheres, os analfabetos e os pobres são tratados como inferiores.
Será que esta divisão nefasta e nada evangélica está presente também no interior das nossas igrejas? Infelizmente, parece que sim! Basta dar uma olhada atenta à primazia conferida às Igrejas europeias – à teologia, ao direito e à liturgia por elas elaboradas – no confronto com as Igrejas do Terceiro Mundo. E não podemos esquecer aquela profunda e dolorida divisão – que às vezes se transforma em oposição e em condenação recíproca – entre as próprias comunidades cristãs: ortodoxos e romanos, católicos e protestantes, igrejas clássicas e igrejas pentecostais, e assim por diante. Fariseus versus publicanos!
A humanidade tem como vocação ser uma só família, e essa é também a vontade de Deus. A interdependência dos povos e nações é já um fato objetivo, mas precisa se tornar um valor subjetivo, garantido ética e institucionalmente. O desafio é transformar essa solidariedade objetiva e estrutural num valor buscado e assegurado para todos. A dignidade da pessoa humana independe da sua origem étnica, da pertença religiosa, da nacionalidade, da convicção política, da identidade sexual, da instrução. Estas diferenças não dividem, nem hierarquizam; apenas distinguem, complementam e enriquecem.
Ao ouvir a prece da pessoa humilde e discriminada, Deus resgata sua dignidade e a verdadeira igualdade entre todos os seres humanos. A este propósito, é impressionante o testemunho de Paulo. Ele combate com tenacidade a pretensão de superioridade dos judeus e dos novos cristãos de origem judaica frente aos cristãos vindos do paganismo. Quando diz, em forma de testamento, que combateu o bom combate, completou a corrida e guardou a fé, está se referindo à sua convicção de que Cristo é nossa paz, pois de dois povos fez um só povo, derrubando o muro da inimizade que os separava (cf. Ef 2,14).
Deus Pai e Mãe, tu fazes a prece do humilde atravessar as nuvens e escutas atenta e cordialmente o clamor dos oprimidos. Então, despoja-nos de todo orgulho arrogante e de toda competição infantil. Ajuda-nos a anunciar teu Evangelho integralmente e a fazer resplandecer, pelo anúncio e pelo testemunho, a boa notícia e a boa convivência que ele nos pede. Ajuda-nos a vislumbrar em Jesus teu rosto compassivo e misericordioso, e anunciá-lo a todos. E isso até que a humanidade seja de fato uma só família, na qual todos os membros são queridos e respeitados, para além de toda e qualquer diferença. Assim seja! Amém!

Itacir Brassiani msf
(Eclesiastico 31,15-22 * Salmo 33 (34) * 2ª Carta a Timóteo  3,6-8.16-18 * Evangelho de São Lucas 18,9-14)