“Acolhei com mansidão a Palavra que
em vós foi implantada.”
(Dt
4,1-8; Sl 14/15; Tg 1,17-27; Mc 7,1-8.14-15.21-23)
Todos/as nós,
de diversos modos, procuramos uma vida pura e imaculada diante de Deus e dos
irmãos e irmãs. Para realizar este desejo ou obrigação que nos impomos,
recorremos às práticas religiosas, aos terapeutas, aos médicos, aos guias
espirituais, e assim por diante. Mas nem sempre conseguimos nos livrar da
tentação da integridade manter somente uma aparência ou de garantir uma pureza
que é mais distanciamento dos/as nossos/as semelhantes que amor e compaixão.
Como se o mais característico em Deus fosse o medo que leva ao distanciamento e
a não se misturar com as misérias e contradições humanas. As religiões não podem
ser nos afastar das lutas e necessidades dos nossos irmãos. Tiago é contundente:
“Religião pura e sem mancha diante de Deus, nosso Pai, é esta: socorrer os
órfãos e as viúvas em aflição e manter-se livre da corrupção do mundo.”
Iniciando o mês da Bíblia, acolhamos com mansidão e inteligência a Palavra que
nos é anunciada (cf. Tg 1,21).
“Seguem a tradição que receberam dos
antigos...”
Escrevo estas
linhas – sacramento de partilha e comunhão na fé e na esperança – no silêncio
eloqüente e sugestivo dos Alpes franceses, neste lugar abençoado no qual Nossa
Senhora se manifestou a duas crianças. Aqui nas montanhas de La Salette Maria nos
revela, em seu próprio rosto lavado por lágrimas de compaixão, a beleza e a
bondade de Deus. Sus lágrimas lembram aquelas de Jesus diante da morte de seu
amigo Lázaro e de uma Jerusalém que recusa se converter.
Por mais que
uma certa mentalidade tenha interpretado a mensagem de Nossa Senhora da Salette
como ameaça de castigo, o brilho que se nasce e se expande a partir da cruz que
ela traz no peito nos lembra da fidelidade de Deus: ele mantém sua compaixão de geração em geração e
não abandona seu povo, apesar dos seus pecados. É esta fidelidade de Deus que
nos interpela a assumir nossa responsabilidade pelos males que ferem a
humanidade e a reverter nossas prioridades.
E um dos
primeiros passos neste caminho é romper com algumas práticas que adquiriram
foraça de tradição e de verdade: a ilusão de que a fé pode ser vivida sem
ligação com a vida concreta; a mania de tirar o corpo fora e pedir que Deus
mude o mundo milagrosamente, sem nosso empenho; a hipocrisia de ostentar
publicamente uma correção e uma autenticidade que não vão além da própria pele;
o mito que afirma que a única saída é cada um/a cuidar de si mesmo/a...
“Ele nos gerou por meio da Palavra da verdade.”
São Tiago nos
recorda que todo bem vem do Pai das luzes, e nele não há fases ou períodos de
mudança. O amor manifestado em Jesus Cristo não muda. E não muda também o amor
como único caminho possível para um outro mundo. “Ele nos gerou por meio da
Palavra da verdade para que nos tornássemos as primeiras dentre as suas
criaturas.” O batismo expressa este novo nascimento, esta vocação de sermos
os/as primeiros/as que vivem o amor como princípio, como meio e como fim.
Quando falamos
de amor não estamos nos referindo a um vago sentimento
interior, mas a um dinamismo envolvente
que encontra em Jesus sua máxima expressão e concretude: trata-se de reconhecer
os outros em sua dignidade, de valorizar sua verdade e atender suas
necessidades. E isso comporta decisões e
ações concretas que passam longe do medo de não sujar as mãos, de envolver-se
em lutas, de compartilhar sofrimentos e humilhações.
É lamentável
ver que inda hoje alguns cristãos, inclusive religiosos/as e padres, estejam preocupados
com a limpeza das mãos ou com a roupa adequada daqueles que se aproximam da
eucaristia e sequer se incomodam com as fraturas, divisões e injustiças que
ferem o corpo de Cristo no corpo dos homens e mulheres humilhados/as e
excluídos/as da mesa da vida. Priorizam a limpeza das toalhas, patenas e
cálices e não se importam com as atitudes verdadeiramente anti-evangélicas.
“Por que os teus discípulos não seguem a
tradição dos antigos?”
Não se trata de
acrescentar leis e doutrinas aos muitos fardos que os filhos e filhas de Deus
já carregam sobre as costas. Deus não se compraz em escrever doutrinas e tratados
jurídicos e morais mas quer propor uma via que assegure a todos/as liberdade e
vida plena. Ele propõe uma prática concreta para que todos/as vivam bem na terra que criou para
eles/as. Ele faz questão de mostrar-se um Deus próximo e defensor dos últimos.
“De fato, que grande nação tem um Deus tão próximo, como Javé nosso Deus, todas
as vezes que o invocamos?”
O grande
problema das Igrejas e da sociedade de hoje é a tendência de transformar as
propostas que conduzem a uma vida livre em leis que garantem privilégios. A
aliança tinha mandamentos sim, mas seu objetivo era evitar posturas egoístas e
fechadas. “Que grande nação tem estatutos e normas tão justas como toda esta
lei que eu lhes proponho hoje?” Eram justas porque tinham como objetivo ajudar
a conquistar a terra e a viver nela de forma solidária.
Mas a lei que
os legistas e fariseus defendem diante da liberdade de Jesus e dos seus
discípulos é bem outra coisa. “Por que os teus discípulos não seguem a tradição dos antigos, pois comem o pão
sem lavar as mãos?” Não lhes interessava a partilha dos pães e peixes que
alimentara uma multidão, mas o fato de que os discípulos e todo o povo tinham
comido sem lavar as mãos. Como aqueles/as que hoje querem salvar as (funestas)
leis do mercado à custa da fome que mata milhões.
“Vocês abandonam a lei de Deus para
seguir a tradição dos homens.”
A verdade é que
alguns costumes irrelevantes vão conquistando uma importância cada vez maior e
acabam aparecendo à nossa consciência religiosa como expressões da vontade de
Deus. Quanta discussão sobre se é permitido receber a hóstia na mão ou não. E
quanta polêmica em torno da prática de chamar leigos e leigas a proclamar o
Evangelho numa celebração eucarística. E sem falar na questão da comunhão aos
casais separados ou recasados...
Quanto esforço
para filtrar um mosquito sem perceber que estamos engolindo dezenas de camelos
e que os fardos que impomos oprimem a vida de milhares de pessoas frágeis e
inocentes! Quanto esforço para limpar as coisas por fora sem olhar para o que é
mais importante! Quantos costumes pouco importantes e até ridículos são alçados
ao patamar de lei de Deus. “Vocês abandonam a lei de Deus para seguir a
tradição dos homens.”
Jesus
estabelece um princípio que orienta nosso discernimento de cada dia e em todos
os casos: “O que vem de fora e entra na pessoa não a torna impura; as coisas
que saem de dentro da pessoa é que a tornam impura.” O que nos torna puros ou
impuros não é nossa condição social, nosso pouco estudo, nossos poucos
recursos, nossa orientação sexual ou nossa pertença religiosa, mas as ações e
decisões que tomamos, as relações que estabelecemos.
“É de dentro do coração das pessoas que
saem as más intenções...”
Em síntese: não
se trata de maquiar a realidade ou de manter as aparências, mas de purificar
nossa percepção e reorientar nossos interesses. “Pois é de dentro do coração
das pessoas que saem as más intenções, como a imoralidade, roubos, crimes,
adultério, ambições sem limites, maldades, malícia, devassidão, inveja, cobiça,
orgulho, falta de juízo...” E poderíamos completar a lista por nossa própria
conta. É aqui que deve se concentrar toda a nossa atenção.
Jesus, Palavra viva e libertadora na carne dos homens
e mulheres e nos altos e baixos história. Hoje tu nos convidas a escutar a
advertência do profeta Isaías, que nos pede para não substituamos a Boa Notícia
que liberta por nossas próprias doutrinas e interesses. Tu nos ensinas que não
são os aspectos externos e sociais, muitas vezes injustamente sofridos, que nos
fazem bons ou ruis aos olhos do teu e nosso Pai. Abre nossos olhos, nossos
ouvidos e nosso coração à desestabilizadora Boa Notícia da tua vida. Ajuda-nos
a reinventar evangelicamente tua Igreja, tão devedora de tradições
fossilizadas. Guia-nos pelos caminhos da justiça, mantém nossos passos na tua
verdade, livra-nos so suborno e da busca de vantagens. E não permitas que o
orgulho patriótico se sobreponha à humana solidariedade, que desconhece fronteiras.
Assim seja! Amém!
Pe.
Itacir Brassiani msf