domingo, 17 de agosto de 2014

Vida Religiosa no Brasil

Jesus de Nazaré, aquele que veio para servir.


Seguir os passos de Jesus de Nazaré e imitar seu modo de viver é o que os religiosos e religiosas nos propomos. Nem mais, nem menos, apenas isso, e sempre! Mas, para realizar este ousado projeto que nos envolve inteiramente como pessoas e instituição, precisamos “permanecer com Jesus, que caminha conosco e faz arder o coração”. É no encontro com ele e na adesão ao horizonte absoluto que deu sentido à sua vida e sua ação – o Reino de Deus – que poderemos vislumbrar o “núcleo identitário da Vida Religiosa Consagrada”.
Nesta perspectiva, é importante não esquecer que, no episódio de Emaús, a Palavra que Jesus anuncia aos discípulos que caminham desencantados é aquela que os ajuda a compreender que o Filho do Homem ungido e enviado ao mundo para conduzi-lo à vida plena realiza sua missão assumindo a figura de Servo, de Cordeiro. Ele veio para dar sua vida em resgate por muitos, veio para servir, e não para ser servido!
Tenham em vocês os mesmos sentimentos que havia em Cristo Jesus: Ele estava na forma de Deus, mas renunciou ao direito de ser tratado como Deus. Pelo contrário, esvaziou-se a si mesmo e tomou a forma de servo, tornando-se semelhante aos homens. E encontrado na figura de homem, rebaixou-se a si mesmo, fazendo-se obediente até à morte, e morte de cruz” (Fil 2,5-8). Eis aqui o núcleo identitário da vida religiosa: dar a vida para que todos tenham vida; inclinar-se diante da humanidade para lavar os pés dos homens e mulheres, e isso tanto pessoalmente como comunitariamente.
A atitude e a ação de Jesus como Servo está plasticamente representada no gesto do lava-pés (Jo 13,1-20). Colocando-se aos pés dos discípulos, Jesus desfaz a idéia de um Deus celeste e soberano e nos revela um Deus servidor da humanidade. Ele não age de cima para baixo, como quem dá uma esmola, mas de baixo para cima, elevando os homens e mulheres ao seu próprio nível. Com este gesto, Jesus deslegitima as hierarquias e inaugura uma comunidade na qual todos as pessoas são ao mesmo tempo servas e senhoras. Jesus não se rebaixa; ele simplesmente não reconhece nenhuma espécie de hierarquia e desigualdade entre as pessoas. Na comunidade inaugurada por Jesus a diferença não significa hierarquia, as funções e responsabilidades não justificam nenhuma superioridade. Nenhuma pretensão de superioridade pode se pretender legítima, porque colocar-se acima de uma pessoa significa colocar-se acima de Deus.
O papa e agora santo João Paulo II escrevia: “Ao lavar os pés (aos discípulos), Jesus revela a profundidade do amor de Deus pelo homem: nele, o próprio Deus se põe ao serviço dos homens! Mas revela ao mesmo tempo o sentido da vida cristã e, com maior razão, da vida consagrada, que é vida de amor oblativo, de serviço concreto e generoso. No seguimento do Filho do Homem, que “não veio ao mundo para ser servido, mas para servir” (Mt 20,28), a vida consagrada, pelo menos nos períodos melhores da sua longa história, caracterizou-se por este ‘lavar os pés’, ou seja, pelo serviço sobretudo aos mais pobres e necessitados” (Vita Consecrata, 75). E, no final da exortação, convidando-nos a olhar para o futuro: “Fazei da vossa vida uma ardente expectativa de Cristo, indo ao encontro dele como virgens prudentes que vão ao encontro do Esposo. (...) Desse modo, sereis renovados por ele, dia após dia, para construir com o Espírito comunidades fraternas, para com ele lavar os pés aos pobres e dar a vossa insubstituível contribuição para a transfigração do mundo” (n° 110).
A propósito, expondo as linhas fundamentais de uma espiritualidade missionária, o Papa Francisco fala do “prazer espiritual de ser povo” (cf. Evangelii Gaudium, 268-274): é preciso desenvolver o prazer espiritual de estar próximo da vida das pessoas e descobrir que isso é fonte de uma alegria superior. “Jesus quer que toquemos a miséria humana, que toquemos a carne sofredora dos outros”, que superemos a tentação de uma prudente distância das chagas de Jesus (n° 270). “É claro que Jesus não nos quer como príncipes que olham desdenhosamente, mas como homens e mulheres do povo” (n° 271). “É maravilhoso ser povo fiel de Deus. E ganhamos plenitude quando derrubamos os muros e o coração se enche de rostos e nomes!” (n° 274).
Lembro aqui também a bela oração de Charles de Foucauld, que pode ser considerada uma síntese da sua espiritualidade e um programa de vida para os consagrados e consagradas: “Dai-me, Senhor, a graça de aproveitar da vossa lição. Fazei que me considere sempre servidor de todos, servidor das almas e dos corpos, para fazer a cada um o maior bem possível; servidor que serve sempre que a ocasião se apresenta; servidor que toma o último lugar; servidor que não se faz servir pelos outros; servidor que em qualquer situação procura servir os outros, como vós me ensinastes. Vós que, sendo Deus e Senhor, quisestes viver entre nós como aquele que serve. Amém!”
É verdade que, salvo algumas exceções, sempre temos declarados em alto e bom som que nossa meta é servir a Deus, servir à Igreja, servir o povo. Ocorre que tendemos a fazer isso assumindo ares de professores e capitães, como indivíduos que ensinam e mandam. Agrada-nos mais um Cristo com jeito e privilégios de senhor que um Jesus Servo; um Cristo com vestes e postura de rei e juiz que um Jesus sentado à  mesa junto com os pecadores e pobres. Com que frequência ficamos discutindo o que a VRC tem a mais ou em que é superior aos demais estados de vida, esquecendo-nos de que, do ponto de vista evangélico, ela só pode ser superior ao nosso próprio estilo de vida anterior; que ela é um caminho que nos chama a uma conversão mais radical e mais permanente...
O desafio real e urgente não é apresentarmo-nos como Servos/as, mas encontrar expressões concretas e compreensíveis de serviço. Muitas iniciativas e projetos, inicalmente ousados e generosos, com o passar do tempo vão perdendo sua meta, tornando-se obras potentes e rígidas, e muitas vezes acabam fazendo o contrário daquilo que as fez nascer. Como estabelecer a prioridade da busca de uma maior e necessária leveza institucional que esteja a serviço da missão, ou seja: que ajude visibilizar nossa condição e nossa vocação de Servos/as dos pobres, de servidores do Reino de Deus? Aqui não é o lugar para indicar caminhos concretos, mas o que não podemos é fazer de conta que servir seja apenas um verbo a mais, como crescer, sobreviver, ensinar e acumular.
A estas alturas, outras perguntas perguntas me inquietam e fazem pensar: Que lugar pode ocupar a VRC em uma sociedade que é fruto de um processo emancipador e em uma Igreja que ousa se pensar como povo de Deus, profético e peregrino no mundo, todo inteiro chamado à santidade? Quais são os principais desafios diante dos quais as pessoas consagradas e seus institutos não podem desviar o olhar ou esconder a cabeça na areia? Como viver com autenticidade e alegria o seguimento de Jesus Cristo Servo em tempos tão críticos e tão pleno de encruzilhadas?

Itacir Brassiani msf

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