O Senhor nos acompanha em todas as travessias.
A vida é uma travessia e viver é caminhar. As
travessias costumam ser arriscadas e causam medo. Há aqueles que preferem
evitá-las sempre, pois estão convictos de que o risco não compensa. São pessoas
que fecham os ouvidos a todo todo e qualquer chamado; padres que desempenham
sua missão pastoral como uma atividade qualquer ou até como uma carreira; pais e
famílias que se recusam a avançar na tarefa de repensar a forma de realizar
essa exigente missão; fiéis que preferem as velhas e potentes imagens de Deus ao
desafio de descobri-lo na brisa leve da luta pela justiça.
Mas a revelação de Deus é experimentada
mais claramente nos movimentos de passagem que na
estabilidade dos templos e dos lugares-comuns: do Egito para a terra prometida;
do centro para a periferia; do eu para o nós; da aparente segurança das
cavernas para o descampado estimulante da montanha; do poder para o serviço; da
auto-suficiência para a entre-ajuda; do peso das estruturas eclesiásticas para
a leveza e a criatividade do Espírito. Parece que Deus não gosta de se
estabelecer. A Deus agrada mais o campo
aberto e as estradas que os templos, imitem ou não o de Salomão...
Como nos
foi lembrado no domingo passado, os
discípulos de Jesus imaginavam um Deus indiferente às necessidades dos famintos
ou suficientemente poderoso para resolver sozinho todas as dificuldades do
povo. Esta é a imagem de Deus que predomina nas diversas religiões e em amplos
setores do povo católico ainda hoje. Mas Jesus
revela-se um Deus compassivo com os pobres, um Deus que tem necessidade da
nossa colaboração – nem que seja apenas cinco pães e dois peixes! – na sua
ação libertadora. E é ele que nos convida a superar o medo e confiar na sua
presença em todas as travessias.
Porém,
apesar dos séculos de pregação, as
imagens de um Deus poderoso e ameaçador, ou então nacionalista e ligado aos
interesses de pequenos grupos, ainda não se apagaram da nossa memória. Ensinaram-nos
que Deus se revela no poder destruidor dos terremotos, no fogo devorador das
ideologias totalitárias, no mistério aterrador dos furacões, nos pesados
decretos que condenam, na dura punição aos que erram. Segundo essa ideologia
religiosa, Deus seria onipotente,
onisciente e onipresente, e quanto mais poder ou saber alguém possui, mais
se pareceria com ele...
Diante de
um Deus com estas características, caímos por terra ou gritamos de medo. E do ventre do medo não costuma nascer o
amor que se faz dom, mas a agressividade da autodefesa ou da dominação. Um
Deus com tais traços é um fantasma, uma
fantasia que se abriga nas pessoas que não superaram o desejo infantil de
onipotência. E este fantasma, via de regra, está a serviço das diversas
formas de dominação e de infantilização religiosa, econômica e política. Parecemo-nos
com Pedro, que tenta caminhar sobre as águas, revelando seu desejo de
participar da presumida onipotência de Deus...
É o medo dos ventos contrários, das
diferenças e dos questionamentos que gera a dúvida e nos leva a afundar, tanto
em termos humanos como espirituais. O medo não nasce da verdadeira experiência
de Deus, mas de uma imagem parcial ou confusa de Deus. É isso que percebemos
nos discípulos no episódio da travessia do mar: a força do vento e das ondas
que fustiga a barca como a tirania dos poderosos, somada à idéia de um Deus que
caminha indiferente sobre as ondas, arranca-lhes gritos de pavor. E esta dúvida sobre a divindade de um Jesus frágil
e compassivo leva Pedro a afundar apavorado.
Paulo
lamenta que seus irmãos de raça e sangue tenham se apegado às leis, à religião,
às instituições e às promessas como se fossem um privilégio que os colocam
acima dos demais seres humanos ou povos e fora das peripécias e exigências da
história. Talvez seja esse o maior obstáculo aos acordos de paz, tão
necessários à vida mínima de israelenses e palestinos. Isso nos lembra que
filiação é um dom e uma graça que carregamos como tesouro em um vaso de barro,
e jamais um mérito ou uma propriedade. Nem todos aqueles que ostentam o título
de cristãos o são de fato...
Deus, pai e mãe, presença amorosa e
encorajadora em todas as humanas travessias: Tu conheces a generosidade e a
ambiguidade, a coragem e o medo de cada um de nós. A tentação continua nos
levando a te procurar no fogo, no terremoto, na ventania, nos acontecimentos
que impressionam. Vem ao nosso encontro como calmaria! Socorre nossa pouca fé e
cura as dúvidas do nosso coração e os desvios do nosso afeto. Ensina os pais a
cuidar dos filhos e filhas, colocando-se entre eles e guiando-os como modelos
de vida, e não como patrões e senhores. E que nossas famílias sejam escolas de
comunhão. Assim seja! Amém!
Pe. Itacir Brassiani msf
(1°
Livro dos Reis 19,9-13 * Salmo 84 (85) * Carta aos Romanos 9,1-5 * Mateus
14,22-33)
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