Se calarem a voz dos
profetas, a lama e os cadáveres falarão!
A profecia
nasce da intimidade com a Palavra de Deus. Quem acolhe e escuta a Palavra sente
a voz de Deus queimar como brasa e não consegue ficar indiferente diante das
mentiras e disfarces que encobrem tragédias previsíveis e culpáveis, nem das
práticas de exploração, opressão e discriminação. O próprio Jesus confirma
isso: depois de ler e acolher a palavra do profeta Isaías, se propõe a
cumpri-la fielmente, esquecendo-se dos próprios parentes e compatriotas e
priorizando as pessoas mais pobres necessitadas. Rompendo com as expectativas
do seu povo e da sua família, Jesus terá que enfrentar a oposição e a perseguição.
A profecia é
essencial na vida cristã. A Igreja é uma comunidade profética, sacerdotal e de
serviço à vida. Mas ninguém é instituído profeta, nem aprende este ofício num
seminário ou numa escola de teologia. A profecia é dom do Espírito, dom que
recebemos com temor e tremor. Ela nasce e se desenvolve no ventre de uma
comunidade que se coloca à escuta da Palavra de Deus, pungente no clamor de
todas as vítimas. Quem não se fecha à voz de um Deus que fala e interpela,
sente a Palavra queimar suas entranhas e não consegue viver indiferente à causa
de Deus, que é a causa dos pobres, das vítimas, dos excluídos.
Uma comunidade
que ouve e medita a Palavra acaba também avançando e amadurecendo no serviço à
Boa Notícia de Deus. Vemos isto na experiência de Jeremias. Ele tem a sensação
de que a Palavra que o chama é anterior ao seu próprio nascimento. “Antes de
formar-te no seio de tua mãe, eu já contava contigo. Antes de saíres do ventre,
eu te consagrei e fiz de ti profeta para as nações.” É isto que percebemos
também no próprio itinerário de Jesus: depois de ler e acolher a palavra do
profeta Isaías na sinagoga de Nazaré, ele conecta irreversivelmente a sua vida
com a causa dos oprimidos. E propõe este caminho aos seus discípulos.
Um olhar
atento aos evangelhos nos leva a perceber como, por causa de seu radicalismo
profético, Jesus foi experimentando uma progressiva marginalização. Houve um
momento em que sua fama se espalhava por toda a região e todos o elogiavam (Lc
4,14-15). Enquanto lia as escrituras, todos tinham os olhos fixos nele e
testemunhavam a seu favor, maravilhados com as palavras cheias de graça que
saíam da sua boca (Lc 4,22). Mas o entusiasmo logo se transformou em fúria e
desejo de eliminá-lo (Lc 4,28-30), quando ousou questionar a ideologia do
privilégio dos judeus em relação aos pagãos.
E nisso Elias e Eliseu lhe serviram de paradigma.
Elias
privilegiou uma viúva menosprezada porque era estrangeira. Eliseu curou um
pagão, que os judeus situavam abaixo dos cães. E Jesus defendeu ardorosamente a
dignidade das mulheres, dos pecadores, dos pobres, dos doentes, dos migrantes
estrangeiros. Esse é o caminho da profecia, que no Brasil de hoje passa pela
defesa do território dos indígenas e quilombolas, pela reivindicação de
políticas públicas em favor dos pobres, pela defesa da integridade dos
encarcerados, pela denúncia da ação criminosa das mineradoras que privilegiam o
lucro, devastam o ambiente e eliminam vidas. Escutemos o grito da lama e dos
cadáveres!
Mas a profecia
tem seu preço, e tanto a pessoa como a instituição que a assumem devem estar
dispostas a pagá-lo. Jesus recorre a um provérbio que diz que nenhum profeta
bem recebido em sua própria terra, pois a expectativa sempre é que ele atue em
benefício dos seus pares. Mas este é apenas um lado da medalha. O outro lado é
o seguinte: nenhum profeta que sente a compaixão de Deus queimar suas entranhas
consegue permanecer preso aos estreitos muros da raça, da nação, da religião ou
de qualquer instituição. O profeta é um incansável transgressor de fronteiras,
um incurável abridor de brechas nos muros da hipocrisia.
É na
fragilidade que somos fortes, diz Paulo. Escrevendo aos cristãos de Corinto,
ele chama a atenção para a centralidade do amor e a relatividade de todas as
funções e instituições. Se a profecia deslizar para o discurso enraivecido,
incoerente e acusatório, será pouco mais que nada. O que dá consistência e
verdade à profecia é o amor, este dinamismo que reconhece a dignidade do outro
como outro e o serve em suas necessidades. A profecia que brota do amor,
orienta-se pelo amor e conduz a um amor que não reconhece fronteiras nem
méritos. E o amor está acima de todo conhecimento e até acima da fé. E, mais
ainda, das instituições!
Jesus de Nazaré, profeta de um mundo sem fronteiras, amigo dos pequenos,
dos oprimidos e das vítimas! Abre nossos ouvidos à tua Palavra. Suscita em nós
a resposta breve e envolvente: “Eis-me aqui, Senhor!” Ajuda-nos a acolher e a
continuar a missão profética que nos confiaste ainda no seio materno, apesar
das nossas fraquezas. Abre nossos olhos e nossas mãos ao amplo e criativo
trabalho de construir outro mundo, um mundo que desconhece e os estreitos muros
das culturas, nações e religiões. Assim seja! Amém!
Itacir
Brassiani msf
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