domingo, 18 de dezembro de 2011

Uma inesquecível noite de Natal

Este é o segundo testemunho do Pe. Júlio Maria de Lombaerde msf, missionário enviado ao Brasil em 1912. Depois de 6 meses de introdução à língua e aos costumes brasileiros, Pe. Júlio Maria celebrou sua primeira missa pública exatamente na noite do Natal de 1912, em Ceará-Mirin (RN). Com seus reconhecidos dotes literários e poéticos, relata o significado e o impacto desta experiência no seu jovem coração missionário. O texto faz parte do livro Diário Missionário do Pe. Júlio Maria (tradução do Pe. Demerval Alves Botelho SDN. O Lutador, Belo Horizonte, 1991, p. 125-127). Transcrevo-o como homenagem aos coirmãos que atuam nas fronteiras da missão e como convite para que todos celebremos com reverência e respeito profundos, onde quer que estejamos, o mistério da encarnação do amor de Deus.

Soa meia-noite. É a hora solene. A hora das realidades tão divinas quanto poéticas. Cessa a música e o eco repete o som dos últimos cantos. Faz-se um silêncio geral. Homens, mulheres e crianças vêm agrupar-se em semicirculo em torno do altar. Saindo da igreja a fim de dirigir-me para o altar, uma forte sensação percorreu-me todo o corpo, ao contemplar essa massa humana assentada a meus pés.
A Igreja está construída no alto de uma pequena colina, em declive suave e sem irregularidades no terreno. O altar tinha sido armado diante da porta da igreja, ficando assim no lugar ideal.
A meninada se agrupou em torno do altar. As mulheres, vestidas de branco, conforme o costume da terra, assentaram-se no chão. Atrás, de pé, os homens formavam uma espécie de muralha que nos separava do mundo visível e, ao mesmo tempo, constituía a guarda de honra do Emanuel que devia chegar. O céu estava sereno e parecia iluminar com complacência esse espetculo grandioso em sua simplicidade.
Não havia cantos, nem música e nem mesmo orações em comum. Nada de tudo aquilo que, na Europa, anima nossas cerimônias religiosas. Apenas uma mesa, que servia de altar; uma cortina vermelha, que cobria o fundo e os lados, formando o baldaquino; seis velas iluminando tudo; e, afinal, o padre vestido das indumentárias sagradas, tendo à sua frente uma multidão compacta que olha e reza, como se estivesse fascinada pelo espetáculo solene.
Eu mesmo estava impressionado com essa cena, quase como com a lembrança da hora sublime em que o Divino Infante iria descer entre minhas mãos. E, pensando como Ele desceu outrora, entre os braços de sua divina Mãe, comecei o Santo Sacrificio.
Após o Evangelho, voltei-me para o povo e, pela primeira vez desde minha chegada ao Brasil, exerci as funções de pregador. Depois de ter lido em alta voz a tradução portuguesa do Evangelho, tomei por tema o adorável mistério realizado nessa noite memorável e renovado todos os dias, durante o Sacrifício da Missa.
Esta oportunidade permitiu-me falar-lhes longa e detalhadamente sobre o mistério da Encarnação e da Eucaristia. Permitiu-me também fazê-los conhecer os desejos de Nosso Senhor, tão recomendado pelo nosso santo padre Pio X, de aproximar-se frequentemente da Mesa Sagrada. Escutavam-me com expectativa. Sentia seus corações suspensos a meus lábios.
Queridas almas, seria meu imenso desejo entregar-lhes todo o meu coração e toda a minha alma a fim de penetrá-los com este amor que o Divino Infante vem trazer à terra no mistério desse dia. Meus ardentes desejos eram pegar meu coração com as duas mãos e jogá-lo, transbordando de ternura e de ardor, para aquele povo assentado à minha frente, a fim de arrancá-lo desta terra e levá-lo ao amor que se irradia tão divinamente em volta da manjedoura. Mas fui forçado a me ater aos limites de meu assunto, sob pena de estropiar uma língua que eu ainda não dominava.
A impressão dessa noite silenciosa e tão cheia de mistérios deu à minha voz a capacidade de ser ouvida, sem dificuldade, por toda a multidão e repercutir nas casas que formavam, ao longe, o fundo do quadro. Jamais me esquecerei desse primeiro sermão em português: à meia-noite, ao ar livre, diante de um altar improvisado, de frente para todo um povo assentado e atento.
Mas sentia que não estava sozinho. Senti a divina Mãe de Jesus perto de mim. Sentia ela perto de cada uma dessas almas, para ouvi-las, dispô-las e penetrá-las da verdade que eu expunha. Via as lágrimas correrem nas faces bronzeadas dos meus ouvintes. Através dessas lágrimas e dessas emoções, parecia-me escutar o pulsar dos corações que se abriam à verdade, à luz e ao amor.
E os anjos da guarda punham-me nos lábios um tom de voz desconhecido e, no meu coração, emoções que não se traduziam em palavras. Sentia que formava com os meus ouvintes um só coração e uma só alma. E este coração era o de Jesus, em Belém, e esta alma era a alma da caridade que ama em Deus e para Deus.
Ó consolação gratificante para um coração de padre! Ver almas em lágrimas que a verdade faz brotar. Ver corações que se inflamam ao contato com o amor que sua palavra e suas próprias lágrimas fazem irradiar. Não, não existe nada de comparável aqui na terra!
Terminada a missa, homens, mulheres e crianças vieram beijar-me as mãos para manifestar seu reconhecimento e a felicidade que experimentavam e que seriam incapazes de expressar por palavras. Estavam irradiantes, e seus olhos continuavam a derramar lágrimas. E, no momento da despedida, mais de uma lágrima caiu-me sobre minhas mãos, como se dissessem: “Leva-me como testemunho de esperanças e como encorajamento para o futuro.”
Ó, sim! Levá-las-ei, e possa sua lembrança estimular-me num ministério sem dúvida difícil, mas que tem a força de iluminar as mais agradáveis esperanças e as mais inebriantes emoções.

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