A ovelha, a moeda e o filho, perdidos e achados (Lucas 15,1-32)
O rosto de Deus em uma só palavra
O Evangelho de Lucas prima pela sua ênfase na
misericórdia de Deus. Se fosse para classificar numa só palavra o rosto de Deus
em Lucas, poderíamos sem hesitação assinalar “misericórdia”. Talvez nenhum
capítulo saliente esta convicção tanto como o capítulo 15, que hoje lemos na
sua totalidade.
As três parábolas aqui relatadas são entre as mais
conhecidas da Bíblia, geralmente chamadas (com razão ou não) “A Ovelha
Perdida”, “A Moeda Perdida” e “O Filho Pródigo”. Talvez devamos ter um pouco de
cuidado com esses títulos, pois já indicam uma possível interpretação, não
necessariamente a mais adequada, do ponto central de cada parábola.
De fato, cada parábola poderia ficar independente,
e ter a sua interpretação fora do contexto da sua colocação em Lucas. Mas para
que sejamos fiéis à intenção do evangelista, devemos interpretá-las dentro do
seu esquema teológico e literário. A Parábola da Ovelha também existe em
Mateus, mas dentro de outro contexto e com outros destinatários,
tornando-se a parábola da “Ovelha Desgarrada”. Em Mt 18,12-14, a parábola é
dirigida aos discípulos, enquanto em Lc é contada para os fariseus e escribas.
Como os destinatários são diferentes, também a sua mensagem é diferente nos dois
contextos.
Esse homem acolhe os pecadores e come com eles!
Para entender melhor o que Lucas quer ensinar,
devemos dar muita atenção aos primeiros dois versículos do capítulo 15, pois,
estes versículos nos fornecem o motivo pelo qual Jesus contou as parábolas, e,
por conseguinte, uma chave valiosa de interpretação. Funcionam como um gancho
sobre o qual se pendura o resto do capítulo: “Todos os cobradores de impostos e
pecadores se aproximavam de Jesus para escutá-lo. Mas, os fariseus e os doutores
da Lei criticavam a Jesus, dizendo: “Esse homem acolhe pecadores, e come com
eles!” (vv.1-2). Depois, vem a chave de interpretação: “Então Jesus contou lhes
esta parábola” (v . 3).
Ou seja, Jesus contou estas parábolas porque os
fariseus e doutores da Lei o criticavam por associar-se com gente de má fama!
Então a chave de interpretação é a atitude dos fariseus e doutores, contestada
pelo ensinamento de Jesus.
Neste sentido podemos interpretar a parábola
conhecida como a parábola da “Ovelha Perdida”. Jesus, diante da intransigência
dos fariseus, pergunta: “Se um de vocês tem cem ovelhas e perde uma, será que
não deixa as noventa e nove no campo para ir atrás da ovelha que se perdeu, até
encontrá-la?” (v. 4). A resposta razoável é “não”: nenhum pastor, com a cabeça
no lugar, deixaria noventa e nove ovelhas à deriva para tentar encontrar uma
ovelha perdida. Seria loucura!
Mas, exatamente aqui está o sentido da parábola.
Deus faz loucuras por amor a nós! Ele é capaz de fazer o que nenhuma pessoa humana
faria: ir atrás da ovelha perdida, custe o que custar, até achar e trazer de
volta! Aqui a parábola funciona não por comparação, mas por contraste: Deus é o
oposto dos homens, que só agem através de decisões calculistas. Faz loucura, e
a loucura do amor consegue o que a razão jamais conseguiria, a volta da ovelha
perdida!
Assim, se faz contraste entre a atitude de Deus e a
atitude dos fariseus e doutores da Lei! Nos questiona sobre as nossas atitudes
diante das “ovelhas perdidas” das nossas comunidades e famílias! Agimos como os
fariseus, com censuras e moralismos? Ou, como Deus, com a loucura do amor?
Para as/os pobres, até uma moeda pequena faz falta!
Retoma-se a mensagem na segunda parábola, a
parábola da “moeda perdida”. Não que ela fosse de tão grande valor. Mas para a
pobre, até uma moeda pequena faz falta! Então, a mulher faz questão de virar a
casa (as casas não tinham janelas, por isso precisava acender uma lâmpada) até
achá-la.
É assim com Deus! Talvez a gente ache que uma
pessoa não tenha grande valor, mas para Deus faz falta, e Ele é capaz de
“exagerar” para recuperar a pessoa perdida, por tão insignificante que possa
parecer. Mais uma vez, um contraste com a atitude elitista dos fariseus - e
quem sabe, de muitos cristãos hoje!
O processo de conversão
Por fim, chegamos à parábola do “Filho Pródigo”, ou
do “Pai que perdoa”, ou dos “Dois Irmãos”, conforme a interpretação e o gosto
de cada um. Fiquemos somente com o texto sagrado e não com os subtítulos!
Podemos ler este texto a partir do filho perdido, ou do pai, ou do irmão mais
velho. O título tradicional implica uma leitura a partir do “pródigo” (esbanjador).
Assim, ressaltaria o processo de conversão: sentir a situação perdida, decidir
a pedir reconciliação, ser aceito pelo pai, reativar os relacionamentos
perdidos e estragados. Sem dúvida, uma leitura válida do texto como tal, mas
diante dos primeiros três versículos do capítulo, não a interpretação primária
que Lucas queria dar.
Outra possibilidade é de ler a história a partir do
pai. Sem dúvida, também válido. Assim, o pai representa o próprio Deus, que em
primeiro lugar, respeita a liberdade de decisão do filho, não impedindo que ele
seja “sujeito” da sua vida; depois não espera a volta do “pródigo”, mas corre
ao seu encontro, numa atitude não “digna” de um patriarca oriental idoso,
preocupado mais com a reconciliação do que com o prejuízo, e que se alegra com
a volta de quem estava morto! Mais uma vez, uma leitura mais do que aceitável!
Mas, o contexto do capítulo 15, à luz dos primeiros
versículos, sugere uma leitura diferente: ler a parábola a partir do irmão mais
velho. Jesus conta a parábola para contestar a atitude dos fariseus e doutores
da Lei, que o reprovam porque Ele acolhe os pecadores! Então, o filho mais
velho é imagem dos fariseus, “gente boa”, fiel na observância da Lei, mas cujos
corações estão fechados, a ponto de serem incapazes de alegrar-se com a volta
de um irmão perdido. Assim, embora observem minuciosamente todas as prescrições
da Lei, a sua atitude contradiz claramente a atitude de Deus!
No fundo a questão é, em que Deus acreditamos? Um
Deus que age com critérios humanos, não buscando nem acolhendo pecadores, ou o
Deus de Jesus, “enlouquecido” pelo amor que faz “loucuras” para que ninguém se
perca! Aqui temos ecos de Isaias 55, 10-11, onde Deus afirma: “Os meus
caminhos não são os caminhos de vocês e os meus pensamentos não são os
pensamentos de vocês”.
Jesus questiona todos nós que somos “praticantes”.
Somos capazes de reconhecer a nossa própria fraqueza e miséria espiritual, como
fez o “pródigo”? Somos capazes de correr ao encontro de um irmão perdido, como
fez o pai? Ou somos como o irmão mais velho, “gente boa”, gente de
“observância”, mas gente incapaz de ter um coração de misericórdia, de
alegrar-nos com a volta ao estado original do irmão ou irmã perdido/a?
O coração do Evangelho de Lucas
Podemos até dizer que o capítulo 15 de Lucas é o
coração do seu Evangelho. Pois Deus, o Deus de Jesus e o Deus de Lucas, é o
Deus que não se alegra com a perda de quem quer que seja, mas com a volta do
pecador. É o Deus que se encarnou em Jesus de Nazaré, para salvar quem
estivesse perdido. É o Deus de misericórdia e do perdão. Como traduzimos esta visão
de Deus em nossas vidas?
Thomas Hughes
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