A família e a religião
devem estar a serviço do Reino de Deus!
Neste mês apreciado pela alegria e simplicidade que marca as festas
populares, abramos a mente e o coração ao ensinamento de Jesus, mesmo que
inicialmente nos choque e escandalize. Jesus não tem prazer em colocar pedras
na estrada do nosso amadurecimento na fé... Na verdade, ele quer nos ajudar a
perceber as lutas que este percurso exige e as amarras que precisamos desfazer,
inclusive aquelas inconscientes ou que assumem a aparência de piedade. Ocorre
que até as instituições que nasceram como espaços de dignidade e cidadania –
como a família e a religião – podem se perverter.
O atual e inesperado ressurgimento das práticas de exorcismo,
acompanhadas de um indisfarçável desejo de alguns líderes religiosos de
amedrontar e dominar, podem nos induzir a pensar que o núcleo do evangelho
deste domingo seja o combate ao diabo. Na verdade, o que temos na narração de
Marcos é a explicitação e a radicalização do conflito entre a prática
libertária de Jesus e o fechamento ideológico das elites religiosas, agarradas
à defesa do seu poder de domínio. Precisamos distinguir entre a realidade e a
linguagem: a linguagem é apocalíptica, mas a realidade é o conflito político e
social.
Curando um paralítico e declarando-o sem culpa diante de Deus, calando e
expulsando o espírito que fazia calar um doente, purificando um leproso e
enviando-o aos sacerdotes, curando os doentes que se aproximavam, Jesus desmascara
a escravidão mantida pela ideologia do templo. Os escribas contra-atacam tentando
neutralizar sua ação desestabilizadora, identificando Jesus com o próprio diabo,
protótipo dos inimigos do ser humano. Pretendendo ser os únicos representantes
de Deus, os escribas e doutores da lei dizem que aquele que os desmascara é
guiado e motivado por um espírito diabólico.
Jesus entra neste jogo de linguagem e fala do reino de satanás como a
acentuação simbólica das práticas opressoras da sociedade judaica. Ele se defende
atacando com as armas dos próprios adversários! Entra no jogo linguístico dos
seus opositores para “puxar o tapete” e mostrar a contradição em que estão
atolados. Ironicamente, Jesus diz que se agisse mesmo em nome do diabo, o reino
de satanás estaria dividido e fadado à ruína, que dizendo que Jesus está fora
de si, seus familiares ameaçam a família que dizem defender. Por seu lado,
Jesus diz que sua ação é obra libertadora e regeneradora de Deus.
Mas o clímax da disputa está na afirmação indireta de que os verdadeiros
pecadores, aqueles que estão irremediavelmente condenados, são os próprios
escribas e doutores da lei, a elite religiosa que desqualifica a ação
divinamente libertadora de Jesus dizendo que é diabólica. Esse grupo é réu de
um pecado eterno, está coberto de impureza e envolvido numa cegueira que não
permite que veja um palmo à frente do nariz. Os líderes religiosos pecam contra
o Espírito Santo, iludem a si mesmo e aos outros dizendo que é mau e
escravizador aquilo que na realidade é bom e libertador.
É no quadro deste conflito que podemos compreender a tensão entre Jesus
e seus familiares. Sua família havia tomado conhecimento daquilo que Jesus
fazia e dizia, sente-se importunada pela multidão que invade sua casa, e começa
a temer pela integridade de Jesus e pelo bom nome da família. Eles têm a nítida
impressão de que Jesus enlouqueceu, e decidem pôr um fim nisso tudo. Parece que
a mãe e os irmãos evitam entrar no círculo dos discípulos e chegar perto de
Jesus. Dão até a impressão compartilhar da visão dos escribas, e tentam fazer
Jesus interromper ou desistir da sua missão.
A família patriarcal, centrada na figura masculina e nos laços de
sangue, era um dos eixos da sociedade antiga, um dos anéis da corrente da dominação,
uma célula de reprodução da sociedade excludente e intolerante. Jesus avança na
superação do sistema de opressão que impede a vida e a liberdade do povo, mas
não se detém na crítica destruidora das instituições, dos modelos de
relacionamento. Ele coloca Deus no lugar da autoridade patriarcal, substitui a
estreiteza dos laços de sangue pelos vínculos que brotam da condição humana
compartilhada. Do ponto de vista do Evangelho, Deus e o seu Reino são absolutos,
e todas as instituições e autoridades, inclusive a família, são relativas e transitórias.
A ti, Jesus de Nazaré,
irmão de todos os homens e mulheres regenerados no dinamismo do teu Reino,
dirigimos nosso olhar e nossa prece. Fortalece nossa vontade, a fim de que
tenhamos a coragem de romper com os laços que nos amarram a nós mesmos e aos
sistemas que oprimem. Amplia o círculo da nossa comunhão, para que ele inclua
todos os seres humanos, começando pelas vítimas da violência que se impõe nas
favelas e morros, e chegando aos povos ribeirinhos do rio Amazonas. E faz com
que nossas comunidades sejam uma família alargada, ventre no qual são gerados
homens e mulheres iguais. Assim seja! Amém!
Itacir Brassiani msf
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