quinta-feira, 11 de maio de 2023

Horizontes de uma caminhada: prioridades da VRC no Brasil

“Conhecer as manhas e as manhãs”: o horizonte e as prioridades da vida religiosa consagrada do Brasil

 No processo participativo que culminou na Assembleia Geral de 2022, as consagradas e consagrados do Brasil definiram o horizonte que os iluminará, atrairá e guiará no triênio 2022-2025: “Nós, consagradas e consagrados no Brasil, na busca de ressignificar a Vida Religiosa Consagrada no discipulado de Jesus Cristo, em sinodalidade, missionariedade e contínua conversão, à luz da Palavra de Deus, somos convocadas e convocados a permanecer no Seu amor, escutar e responder, com esperança, os gritos e os clamores de nosso tempo, para tornar visível o Reino de Deus”.

Na verdade, a prática cotidiana nos ensina que o horizonte não é resultado da nossa definição, mas é em relação a ele que compreendemos a nós mesmos e discernimos os caminhos que nos levam a ele. De certa forma, é ele que nos define. Nossa tarefa histórica é, nas palavras do poeta, “conhecer as manhas e as manhãs”, a luz que se divisa no horizonte e as manhas para não perder o rumo e o ritmo, pois cumprir a tarefa de viver humanamente requer “conhecer a marcha e ir tocando em frente”.

Nestas linhas despretensiosas queremos propor uma reflexão explicativa e sincrônica do horizonte que a Conferência dos Religiosos do Brasil traçou para o triênio 2022-2025. Nossa interpretação parte do texto em si mesmo e estabelece relações com algumas passagens bíblicas às quais faz referência implícita e que podem ajudar a compreendê-lo. Nosso objetivo é mais a animação da caminhada que a discussão teórica.

 

O que o Senhor está pedindo hoje à vida religiosa consagrada do Brasil?

É importante começar perguntando qual é o apelo de Deus captado e acolhido pela vida consagrada no Brasil. E a resposta é “permanecer no Seu amor” e “escutar e responder, com esperança, os gritos e os clamores de nosso tempo”. A conjugação desses dois chamados, que ressoam com igual intensidade aos ouvidos dos consagrados e consagradas e são por eles acolhidos com semelhante urgência evita deslizes à direita ou à esquerda, e, ao mesmo tempo, contorna a tentação do refúgio numa espiritualidade desencarnada e superficial ou da diluição num ativismo social vazio e estéril.

Quando o contexto no qual emerge a experiência da insegurança nos convida a evitar o caminho do dom pleno e generoso de si, do pão da vida repartido sem regateio, do lava-pés e da cruz, a vida religiosa consagrada do Brasil percebe que o Senhor a chama a permanecer com ele, a fazer o que ele fez e ir até onde ele foi. Isso fica claro na referência indireta ao texto de João 15,1-17, situado no tenso e intenso diálogo exortativo de Jesus com seus discípulos desconcertados pelo gesto da ceia e do lava-pés e pelo anúncio da paixão e morte de Jesus.

Permanecer no Senhor significa pôr em prática o mandamento de amar como ele amou, de deslegitimar toda e qualquer desigualdade ou superioridade em termos de valor e de dignidade, e de mostrar o alcance do nosso amor entregando livre e generosamente a vida por quem amamos. Não se trata de salvar a própria vida, mas de dar a vida pelas vidas, pois todas as vidas interessam a Jesus e devem interessar também aos cristãos, mais ainda aos que se consagram a ele.

Por trás do apelo do Senhor a “escutar e responder, com esperança, os gritos e os clamores de nosso tempo”, ressoa a experiência paradigmática de Moisés, narrada no livro do Êxodo 3,1-17. Diante da quase incurável surdez de Moisés, que o medo fizera desertar e buscar refúgio e segurança na casa do sogro, Deus irrompe de modo inesperado e quase violento na sua vida cômoda e estreita.

Dizendo que ouviu os clamores e viu os sofrimentos dos hebreus escravizados no Egito, o Senhor interpela Moisés a não dar as costas, a não fechar os olhos e os ouvidos e a não passar ao largo daquilo que fere seus irmãos e irmãs. E não apenas isso! Dizendo que desceu para fazer o povo subir, Javé envia Moisés para conduzir esse movimento de libertação, para dar uma resposta em nome de Deus, para colocar em prática a resposta do próprio Deus. É como se dissesse, como Jesus dirá mais tarde: “Vá tu e faz o mesmo! Dá-lhes tu mesmo de comer!” (cf. Lc 10,37; Mt 14,15)

É claro que, diante das vozes contrastantes que ressoam em nossas redes, telas e praças, da complexidade da situação dos nossos povos e da dificuldade de dar respostas inovadoras, somos atraídos pela doce sedução de buscar refúgio nos ritos e fórmulas tão vazias quanto inócuas, e de permanecer na aparente segurança das nossas casas e cargos, longe do fogo que arde e da Palavra que abrasa. Para sobreviver, parece-nos mais lógico e oportuno esfriar o coração e estacionar em terrenos seguros.

Mas a santa Palavra nos adverte e guia. Não há como corromper a Deus com os belos presentes dos nossos ritos. A oração e o culto de quem se faz indiferente aos clamores dos vulneráveis não chega aos ouvidos de Deus. “Quem tapa os ouvidos ao clamor do fraco também não terá resposta quando clamar” (Pr 21,13). As dores dos pobres e desamparados são as dores de Deus. “Ele não despreza a súplica do órfão, nem da viúva que apresenta suas queixas. Será que as lágrimas da viúva não descem pela sua face, e se clamor não se levanta contra quem a faz chorar?”  (Eclo 35,14-15).

 

O que busca a vida religiosa consagrada no Brasil?

No encontro de Jesus com os primeiros discípulos, que haviam tomado distância de João Batista por orientação dele mesmo, Jesus pergunta: “O que vocês estão buscando?” (cf. Jo 1,39). Essa pergunta é dirigida, sempre de novo, a cada geração de discípulos e discípulas, a cada instituto religioso, e à vida consagrada como um todo. A seu modo, o processo de reflexão e celebração definiu qual é seu desejo, sua busca ou sua necessidade mais contundente. E a expressou da seguinte forma: “Ressignificar a Vida Religiosa Consagrada no discipulado de Jesus Cristo, para que ela torne visível o Reino de Deus”.

A vida religiosa consagrada do Brasil intuiu que este horizonte se deixa alcançar por um caminho muito particular, que é “permanecer no Senhor” e “escutar e responder, com esperança, os gritos e os clamores de nosso tempo”. Por mais que pareça, não é seguro escolher atalhos não evangélicos para dar brilho, sentido, sabor de originalidade e de novidade à velha vida religiosa consagrada. E não há realidade inclusiva, duradoura e benfeitora da humanidade que não passe pela escuta e pela resposta aos clamores das vítimas, que a sociedade teima em tornar insignificantes e invisíveis.

O novo significado que queremos dar às nossas vidas consagradas não pode vir senão da permanência no seguimento dos passos de Jesus Cristo, da assimilação e vivência do seu Evangelho. Se às pessoas que estiveram no início das nossas instituições nós as chamamos de fundadores/as é porque eles/as colocam diante dos nossos olhos o fundamento de uma vida prenhe de significado sempre renovado: o seguimento dos passos de Jesus de Nazaré, no despojamento, na irmandade e no serviço generoso e solidário aos “últimos” da escala social. Fazer-se discípulo/a de Jesus de Nazaré é reconhecer-se sempre iniciante, sempre aprendiz, sempre necessitado/a de desaprender para aprender melhor o que significa ser humano e ser cristão, o que significa ser próximo e ser irmão ou irmã.

Porém, o novo significado que queremos dar às nossas vidas consagradas não termina na autocontemplação de nós mesmos/as e da relevância das instituições às quais, nem na recordação de eventuais glórias do passado. O seguimento de Jesus nos leva a focalizar tudo em uma única causa, a causa de todas as causas e todos os humanos seres: o reino de Deus, nome que os evangelhos dão à realidade inclusiva e benfeitora da humanidade, à vida plena, comunicativa e abundante de todas as criaturas. O que os consagrados e consagradas queremos, ressignificando nossa consagração a Deus, é tornar visível e palpável o Reino de Deus, os novos céus e a nova terra, a nova sociedade, a renovação de todas as coisas, relações e instituições na comunhão solidária.

 

Como podemos conhecer o caminho?

Saber para onde devemos e queremos ir é um passo importante para discernir os caminhos. Mas, é um passo insuficiente. Para caminhar, não basta ter os dois pés no chão da realidade e ter um objetivo definido teoricamente, por mais correto e relevante que seja. Precisamos discernir ou identificar o modo mais adequado e eficaz de caminhar do chão que pisamos em direção ao horizonte que nos chama. Mesmo sem fazer-se esta pergunta explicitamente, a vida religiosa consagrada do Brasil verbalizou uma resposta: “em sinodalidade, missionariedade e contínua conversão, à luz da Palavra de Deus”.

Caminhar juntos

Primeiro, a sinodalidade. Caminhar juntos como diferentes institutos de vida consagrada que somos. Caminhar junto com os diversos organismos, movimentos, ministérios, serviços, carismas e iniciativas da Igreja. Caminhar juntos com os organismos, movimentos e iniciativas sociais, culturais e políticas que atuam guiadas pelo sonho de um mundo tecido de fraternidade, igualdade, justiça e respeito às diferenças. Caminhar juntos, com um mesmo objetivo em nossas fraternidades e projetos comunitários de missão. Caminhar juntos porque somos iguais na fragilidade e comungamos da mesma origem, do mesmo sonho e do mesmo destino. Caminhar juntos porque sozinhos/as não somos capazes de ir muito longe.

Aqui podemos lembrar a prática sinodal da Igreja apostólica, que atravessa praticamente de ponta a ponta a narrativa dos Atos dos Apóstolos: nas diferenças, nas divergências e nas emergências, os apóstolos se reuniam e tomavam decisões compartilhadas, procurando conservar tanto a unidade substancial como a pluralidade vital. É interessante lembrar também da pregação de Paulo: ele sublinha que o trabalho e a perspectiva de diferentes grupos contribui na única obra do Senhor (cf. 1Cor 3,5-17); e compara os diferentes serviços e ministérios aos diferentes membros que compõem um corpo bem articulado e único (cf. 12,12-31).

Um caminho de saída missionária em direção às periferias

Depois a missionariedade, aquela que brota da Igreja dos apóstolos, que se organiza e reinventa em ritmo de missão, estabelecendo estruturas leves e funcionais à missão de “anunciar o Evangelho a todos, em todos os lugares, em todas as ocasiões, sem demora, sem repugnâncias e sem medo”, como dirá o Papa Francisco (EG, 23). E isso porque a intimidade com Jesus é uma caminhada, uma intimidade itinerante, uma força que nos chama a sair para fora, porque a comunhão é sempre e essencialmente uma comunhão missionária.

Quando falamos de missão, o paradigma de Filipe (cf. At 8,26-40)  é sempre algo instigante: ele descobre-se chamado ao meio-dia, sai de Jerusalém pelo caminho que leva ao deserto, vai ao encontro de um estrangeiro eunuco (violentado e duplamente marginalizado), aproxima-se como companheiro, aceita o convite a sentar-se ao lado dele, anuncia-lhe o Evangelho a partir das suas perguntas, acolhe o eunuco na comunidade conferindo-lhe o batismo, não o retém junto a si e permite que ele prossiga seu caminho cheio de alegria.

Caminhar juntos, em ritmo missionário, convertendo-nos ao Evangelho

Por fim, a contínua conversão. Na verdade, a conversão vem começo, é um dinamismo permanente na aventura da consagração, e também a meta do seguimento de Jesus. Discipulado é sempre um caminho de conversão: conversão pessoal, comunitária e institucional ao Evangelho do despojamento, da pequenez, dos pequenos passos possíveis, da consciência de guardar nos vasos de barro das pessoas consagradas, das suas comunidades e instituições, um precioso tesouro que não lhe pertence, que pertence a todos: o Evangelho da alegria, o Evangelho do Reino de Deus, que está vivo e ativo no mundo como semente, como fermento, como sal e luz. Conversão porque ainda acreditamos nas grandes estruturas, na imponência das obras, no poder do saber e do capital, na aliança com os setores que detém o poder, nas nossas estratégias e projetos.

Mencionamos aqui o anúncio fundamental de Jesus, ao iniciar e prosseguir no seu ministério na Galileia: “O tempo já se cumpriu e o Reino de Deus está próximo. Convertam-se e acreditem na Boa Notícia” (Mc 1,14-15; cf. Mt 4,17; Lc 4,14-21). A novidade alvissareira da Boa Notícia do Reino de Deus é de magnitude tal que, para acolhê-la e assimilar seu dinamismo é preciso uma mudança radical de mentalidade. O discipulado, a vida cristã como um todo, é um permanente caminho de conversão. Este é também o anúncio pentecostal de Pedro e dos apóstolos (cf. At 2,37-41). E não esquecemos um dado fundamental: o movimento da vida consagrada, em seus melhores momentos, que são as fases mais carismáticas e menos institucionais, se definiu como caminho penitencial, como convocação à conversão ao Evangelho do Reino de Deus.

 

Quem meterá as mãos na massa e percorrerá esse caminho?

O sujeito que capta o horizonte é a primeira pessoa do plural: “nós”. A dizer nós, estamos nos referindo a todas as pessoas consagradas, a todas as Comunidades religiosas, a todas os Institutos e suas direções, a todas as instituições criadas e administradas pelos Institutos, às direções nacional e regionais da CRB, às Equipes, Comissões e Assessorias nacionais e regionais da CRB, a todos os núcleos diocesanos de religiosos e religiosas.

Mesmo sendo verdade que a Conferência dos Religiosos do Brasil não tem poder de impor suas diretrizes e prioridades, também é fato que o discernimento do horizonte e das prioridades do triênio foi feito em espírito sinodal e participativo. Da mesma forma, para que tudo isso não se torne discurso bonito, mas inócuo, é absolutamente indispensável o compromisso proporcional e corresponsável de todas as pessoas consagradas, suas instituições e instâncias.

Itacir Brassiani msf

Passo Fundo/RS

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