Um domingo com doce-amargo sabor de
missão
Pe. Pedro, em frente à igreja de Malina... |
O episódio do evangelho que a Igreja
propunha para aquele domingo (3 de setembro de 2017) era aquele que podemos
chamar da crise de fé de Pedro. Depois de haver professado a fé em Jesus, o Cristo
e filho de Deus vivo, e depois de ter sido elogiado por sua ortodoxia e
sabedoria, Pedro se colocou à frente de Jesus querendo impedi-lo de seguir o
caminho que o próprio Pai havia traçado: não a carreira sacerdotal e o sucesso,
mas o caminho profético da denúncia, do enfrentamento e dom de si até o
fim. A Palavra de Jesus é clara: o
verdadeiro discípulo se coloca atrás dele, e não à frente. Ele é o caminho, por
mais heterodoxo que às vezes pareça ser.
Ruminando essa boa e provocativa notícia
de Jesus Cristo, despertei às 04:30 h e, depois de um café frugal, acompanhei o
Pe. Pedro Léo Eckert msf na visita e celebração às comunidades da zona de
Malina, setor “Milhana A”, paroquia Santa Cruz de Muíte, diocese de Nampula,
Moçambique. A viagem durou mais de três horas.
Passamos por vários povoados, com suas casas típicas de palha e barro,
atravessamos regiões praticamente desérticas, por onde perambulam misérias que
ferem como se fossem espinhos que ameaçam penetrar nossos olhos.
O povo nos esperava em grande número, à
sombra dos cajueiros. Quando avistaram o velho e conhecido Land Rover, um dos
poucos veículos em condições de enfrentar incólume os caminhos – ou descaminhos
– do sertão moçambicano, fizeram fila e abriram caminho para nos acolher com
seus cantos, sempre acompanhados por tambores. Uma acolhida masculina, pois,
nestas terras e culturas, a mulher vem sempre depois, atrás e abaixo... A
evangelização deve sim ser inculturada, mas precisa também, no tempo oportuno,
introduzir a novidade de Jesus!
Como é costume nestas terras de opressão
explícita e continuada e de pecado introjetado, a celebração começa com as
confissões individuais. Neste momento, o imenso muro étnico que separa o
missionário estrangeiro e o fiel nativo, se mostra uma barreira linguística.
Como escutar e orientar o fiel que vive sua fé, carrega suas dores e confessa
seus pecados na língua macua se o missionário fala apenas português? Que Jesus
revele sua inesgotável misericórdia na escuta atenta e nas palavras de apoio,
benção e perdão de um ministro limitado e também pecador.
O Pe. Pedro presidiu a missa, seguindo o
ritual na língua macua, com a ajuda de um “ancião” (ministro leigo),
naturalmente mais habilitado nas nuances da língua. Fez a homilia em português,
traduzida, a seu modo e no seu próprio horizonte religioso, pelo ancião. Por
aqui é assim mesmo. A fé que o povo mantém e que mantém o povo é aquela que os
lideres leigos cultivam e transmitem. Por isso, uma das principais estratégias
da missão parece ser a formação continua e profunda dos verdadeiros sujeitos da
Igreja, as lideranças leigas.
No final da missa, o coirmão pediu-me
gentilmente que eu falasse. Até então, eu permanecera calado. Comecei dizendo
que não havia falado porque sou surdo e mudo. Foi uma brincadeira, mas também
uma metáfora da realidade: o missionário
e o visitante, além de serem hospedes, são e permanecem sempre um pouco surdos,
pois não conseguem entender a língua e a cultura do outro, e mudos, porque não
conseguem se comunicar adequadamente. Talvez seja essa a maior dor dos/as
missionários/as: por mais que se esforcem e se doem, generosamente,
permanecerão sempre estrangeiros/as e estranhos/as, uma espécie de bárbaros...
Um flash da presença das crianças presentes na celebração |
No final, em meio a danças e cantos, a
comunidade expressou sua gratidão, como é costume por aqui, entregando aos
missionários dois pequenos frangos e um enorme cacho de bananas. Em seguida,
depois de algumas brincadeiras com as crianças e conversas com os adultos,
serviram-nos a tradicional chima (feita de água e farinha de milho), frango
assado, fígado de porco e cabrito cozido, que comemos usando as mãos como
talheres. Estava gostoso e nos alimentou para a viagem de volta, por estradas
arenosas, poeirentas e cheias de buracos e enormes pedras.
Assim, e ainda mais dura, e mais bela, é
a vida dos missionários/as nessas terras: mais de 7 horas de viagem, em meio a
incontáveis riscos, para uma celebração. Mas, para celebrar e se encontrar, há
gente que caminha muito mais, sob um sol escaldante e enfrentando, entre
outros, o risco de serpentes. E, além de não receber frangos e bananas, também
volta para sua casa sem chima, sem frango assado e sem cabrito cozido. Oxalá,
naquilo que depender de nós, essa gente nunca volte sem a alegria do Evangelho,
sem a certeza do amor e da misericórdia de Jesus Cristo.
Itacir Brassiani msf
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