“Vocês
são todos irmãos e irmãs!”
Depois
de uma semana nestas terras abençoadas por Deus, berço da vida humana, ainda
tenho que me acostumar com duas coisas (não que as demais já estejam
completamente assimiladas, mas estas duas são mais contundentes): o “calorzinho
básico” e a língua desse povo.
Sou
um amante do frio, e o calor me judia um pouco, mas nada que não seja superado
com uma bela ducha fria. Nestes dias, estou hospedado no Centro de Formação de
Anchilo, onde estou frequentando um curso de iniciação sobre a cultura e a
língua do povo Macúa. Aqui não há chuveiro elétrico, e o banho é frio mesmo, o
que é naturalmente bom!
Ainda a questão da língua
Preciso
me acostumar com a língua falada pelo povo e aprender a compreender o que ele
fala nas ruas. Tenho necessidade de entender o que falam os funcionários da casa
que me hospeda, as pessoas que circulam pelo terreno rumo às suas machambras, as
crianças a caminho da escola. Não consigo entende-los, pois já que todos falam
o macúa, e a língua portuguesa é dominada apenas por quem foi escolarizado! Vivo
algo como o que acontece comigo quando volto pra Linha Moraes, lá na minha
terrinha de São Carlos: lá, todos falam o alemão, e quem não entende não faz a
mínima ideia do que está se passando.
Vivi
fortemente e na própria pele este desafio do idioma durante uma celebração
eucarística da qual participei, numa das comunidades próximas da sede da
missão. No final da missa fui apresentado como o novo missionário que havia
chegado do Brasil. Naturalmente, eu era o alvo dos olhares curiosos de todos os
presentes, mas isso não vem muito ao caso! Foi uma celebração quaresmal viva,
cheia de fé e esperança.
A
pequena capela estava lotada. Mulheres, homens, jovens e crianças apertavam-se
para dentro da pequena igreja. A maioria dos homens se reunia num lado, as
mulheres de outro; as crianças à frente, e os jovens do outro lado. Mesmo em
grande número, as crianças se comportavam de modo irrepreensível e focavam sua
atenção no que estava passando na celebração. Apenas dois jovens se ocupavam de
organizar aquela pequena multidão, pois a cada momento chegava mais gente que
precisava ser acomodadas.
A
missa foi celebrada basicamente na língua macúa. Adivinhem o quanto eu entendi! Mas nem por
isso deixei de vivenciar a celebração com devoção e intensidade. Naquele dia
experimentei um pouco aquilo que sempre ouvi nas aulas de história da Igreja
sobre a celebração em latim: o povo não compreendia o que celebrava, não entendia
o que o padre ensinava.
Foi
uma celebração como tantas outras, mas duas meninas de mais ou menos 10 anos de
idade roubaram a minha atenção na hora do Pai Nosso, cantado em macúa. Ambas de
olhos fechados, mãos erguidas, cantavam com tanto fervor, que me parecia ver
brilho no rosto delas. Elas sabiam o verdadeiro significado daquilo que estavam
cantando! Não estavam imitando ninguém, pois ambas, como as demais crianças,
estavam lado a lado em frente ao altar. Aquilo iluminou e revigorou o meu
domingo!
A pessoa como transportadora de cargas
Aqui,
tanto os homens como as mulheres andam nas ruas carregando cargas enormes, equilibradas
sobre a cabeça. Quando vejo alguém carregando enormes feixes de madeira, mesas,
cadeiras (até cama já vi um homem carregando!), fico imaginando como me viraria
numa situação dessas... E logo percebo que fracassaria, já que nem consigo me
equilibrar por muito tempo sobre uma perna. As crianças aprendem isso desde
pequeninas, carregando sobre a cabeça seus chinelos, enxadas, foices ou até
coisas menores, como sabonetes ou os próprios cadernos escolares.
Ao
estrangeiro, parece que seria muito mais fácil carregar essas coisas com as
mãos, mas eles não o fazem. As mãos ficam livres para outras atividades! Muitas
mulheres, ao mesmo tempo em que levam uma boa carga sobre a cabeça, levam seus
filhos pendurados às costas, ao lado ou à frente. Quando alguém não está
habituado a presenciar estas situações, realmente fica impressionado. Mas o que
eu sinto é admiração por estas pessoas, pela força e garra que demonstram. Não
se deixam desanimar por qualquer coisinha...
Curiosidades e imprevistos
Caminhando
nos arredores da sede missão, percebi que as plantações de mandioca tinham uma
peculiaridade: o plantio é feito de forma diferente de como se faz no Brasil.
Aqui corta-se uma pedaço da rama, enterra-se uma parte, como fazemos no Brasil
para plantar um ramo de flor. O motivo para se plantar desse jeito são os
cupins. Há muito cupim por aqui. Até as árvores precisam ter o tronco pintado para
que os cupins não se instalem na árvore e a matem.
Como
disse, estou passando um mês nas imediações da capital, Nampula. O Padre Celso
trouxe-me de carro, e durante o caminho acabamos atolando na areia. Foi
necessária a ajuda de 10 a 15 pessoas para tirar o carro da areia. O povo já
sabe que muitos carros atolam, e já estão à espreita para ajudar, e assim
ganhar alguns meticais (moeda local).
Formar a única família do Pai!
Um
elemento da cultura macúa com o qual eu já me identificava muito antes de saber
como eram as coisas por estas terras abençoadas é a questão da família
alargada. Da família fazem parte não somente pais, mãe e filhos, mas todos os
irmãos, primos, sobrinhos e cunhados. Àqueles que chamamos de primos de segundo
o terceiro grau, este povo trata como se fossem irmãos. Há até o costume de
chamar uns aos outros de “mano”, significando essa irmandade, mesmo sem nenhum
laço sanguíneo que os ligue.
Eu
sempre considerei parte da minha família pessoas que não possuem um laço de
sangue conosco, sempre coloquei meus amigos como integrantes da minha família. São
parte da minha família as pessoas às quais posso confidenciar meus segredos,
chorar minhas penas e celebrar minhas vitórias. Depois de oito anos de caminha
formativa e missionária, colecionei inúmeros “familiares” por todos os lugares
onde passei, e os considero parte da minha família alargada.
Fr.
Ricardo Klock msf
23 de
fevereiro de 2018
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