“Ainda que eu
falasse a língua dos anjos...”
Nesta
segunda crônica, escrita ainda, literalmente, no calor da chegada, o Fr.
Ricardo fala de um dos maiores desafios de quem aceita entrar na aventura
missionária: o mundo da cultura e da língua, que é como a segunda natureza de
uma pessoa e de um povo, um mistério que inicialmente se nos apresenta como
misterioso e estranho, que se deixa entender apenas pela comparação e pela
oposição.
Entrar
na alma de um povo, na sua cultura e na sua língua, é tão difícil quanto
necessário. Num outro contexto semântico e teológico, o apóstolo Paulo diz que,
mesmo que falemos a língua dos homens e dos anjos, a comunhão e a comunicação
são impossíveis se formos incapazes de amar. O amor é a língua universal. O
reconhecimento e a afirmação da dignidade do Outro, do diferente, é o que faz a
missão ser um empreendimento divino, e não uma conquista interesseira e
deplorável.
O que você disse?
Ao chegar no aeroporto de Johannesburgo, vindo de
São Paulo, todo meu português, espanhol, alemão e inglês (idiomas que domino
razoavelmente) se mostraram obsoletos. Eu entendia muito pouco do que as pessoas
falavam, e até mesmo dos anúncios nos alto-falantes do aeroporto. Por sorte, a
escrita era a mesma do Brasil... Foi a minha salvação!
Mas a África é um continente muito plural, não só em
termos de línguas oficiais, mas principalmente na questão dos dialetos e
línguas tribais, que se espalham e diversificam por todo o continente, podendo
haver mais de uma em determinadas regiões.
No distrito de Mecubúri, onde estou vivendo, o idioma
falado é o macúa. Não entendo nada! Ao menos por enquanto, pois no dia 19/02
irei começar o curso básico de cultura e língua macúa. Se eu já havia tido dor
de cabeça nos primeiros dias do meu ano de noviciado no Chile, consequência do
esforço para entender alguma palavra, agora então, a dificuldade aumentou um
pouquinho... Eis um primeiro e grande desafio: aprender a língua macúa!
Com licença, senhor!
Na sexta, 16 de fevereiro, participei da graduação
de 19 jovens da Escola Familiar Rural. Eles participaram do curso de manejo e
criação de aves de corte. Quanta formalidade! Em cada uma das falas era
necessário, para não dizer obrigatório, pedir licença aos representantes do
governo, presentes na mesa de honra. Quando o representante da administração do
distrito se pronunciou, fez toda uma saudação, e em até certo ponto “puxou o
saco” do atual presidente da república.
Cenas como essa me deixam muito constrangido e
intrigado. Para mim, denotam a submissão das pessoas perante a outrem que
possua um cargo superior a ela, independentemente de quem seja. As pessoas são
muito prestativas, mas me pergunto até que ponto isso é gentileza ou uma cega e
medrosa obediência, uma ferrenha estratificação social.
Outras cenas da mesma festa
Terminada a cerimônia de graduação, tivemos um
almoço, no qual tive outro choque de realidade, e não somente em relação à
comida (que não é muito diferente da comida do Brasil, apenas não é tão
fortemente temperada, de modo que sente-se o gosto natural dos alimentos). Os
jovens que se graduaram, que na sua maioria eram moças, fizeram os três meses
de curso carregando seus filhos nas costas.
Sim, aqui as mulheres carregam os filhos nas costas,
presos por um pano (capulana). Elas trouxeram os filhos para a cerimônia, e estes
eram os únicos familiares presentes à celebração. O colégio não teria condições
de oferecer almoço para todos os convidados... Aqui o habito é que, quando se
estipula um determinado número, as pessoas acabam levando mais gente, o que
torna inviável oferecer um almoço para todos.
Como esta é uma sociedade na qual ainda existe a
separação de classes, para o almoço foram organizadas duas mesas: uma para as
autoridades e outra para os graduandos. Antes do almoço ser servido uma dupla
de rapazes passou com uma bacia de água e uma toalha para que todos lavassem as
mãos. Muitos não utilizam talheres, ou usam apenas colheres. Para para dar de
comer às crianças, as mães utilizam as mãos...
O que mais me surpreendeu foi a quantidade de
comida que aquelas jovens serviram em seus pratos. Eram verdadeiras montanhas.
O que ocorre é que a maioria delas não teria um rico almoço desses em suas
casas. Percebia-se a alegria no olhar de cada uma delas, estavam satisfeitas.
Estrangeiro e estranho
Não é incomum sentir-se um estranho por essas
terras. Ao andar pelas redondezas da missão, todos os olhares se voltam para
mim, ou para quem estiver ao meu lado. Realmente, ser observado não é uma experiência
que possa ser dita agradável. Mas sinto que não é por desdém ou por medo que eles
me observam. É por pura curiosidade, como se dissessem: “Apareceu uma novidade
no meio de nós!”
Enquanto eu esperava pelo início da cerimônia de graduação
na Escola, um grupo de crianças que estudam na escola pública, ao lado da nossa
missão, começaram a gritar e me cumprimentar, obviamente no idioma macúa. É
claro que eu não entendia o que eles diziam, e até fiquei com vergonha. Até que
um deles gritou “bom dia!”, e eu respondi com outro “bom dia” e um aceno de
mão. E então o grupo saiu correndo, às gargalhadas. É imperativo aprender o idioma
macúa!
Como no Brasil...
A política é, para variar, um dos grandes problemas
deste belo país. A corrupção rola solta, a violência e o assassinato de
políticos ou de pessoas que denunciam injustiças é bastante comum. Recentemente
o prefeito da cidade de Nampula foi assassinado, segundo o que se diz, porque
havia feito muitas denúncias contra a corrupção e estava trabalhando para o bem
do povo. Quem deveria assumir sua função era o presidente da câmara, pois aqui não
há a figura do vice-governador. Entretanto, ele não poderia assumir pois está
condenado por corrupção, e novas eleições foram realizadas. O povo aguarda o
segundo turno, que acontecerá no mês de março. Parece que os colonizadores
portugueses deixam a política que é uma merda em todos os lados!
Uma diversa divisão do trabalho
Nossa moradia não está muito longe do centro do
distrito. Na vila, os mercados são em sua maioria a céu aberto, e neles se
vende de tudo, principalmente alimentos. As lojas são um pouco maiores, e grande
parte pertence a indianos. Fomos comprar arroz, e o menor saco que eu vi era de
25 kg! A base da alimentação gira em torno do milho, do arroz e do feijão, mas
aqui na missão temos uma maior diversificação de alimentos, graças à produção
própria. Nestes dias carneamos um porquinho!
Pela primeira vez na minha vida, hoje utilizei a
bomba manual de água, pois precisava lavar minha roupa. Eis mais uma coisa interessante por aqui: os
trabalhos domésticos, tanto nas próprias casas como no emprego, são realizados
pelos homens! As mulheres são responsáveis pelas machambras, os pedaços de
terra que elas cultivam. A nossa missão é uma exceção: nossa cozinheira é a “mamá”
Albertina. Mas o lavador de roupa e o cozinheiro da escola são jovens. E é
preciso reconhecer eles tem uma ótima mão para a cozinha...
Ao lado de nossa casa passa a principal estrada de
ligação com Nampula, a capital do estado. Durante o dia inteiro, pode-se ver circular
mulheres com grandes feixes de lenha sobre a cabeça. Geralmente elas precisam
caminhar muitos quilômetros com esses fardos na cabeça.
Reaprender é preciso!
Aqui estou tendo que reaprender a dormir! Não se
trata mais de simplesmente vestir o pijama e se jogar na cama. Agora visto o
pijama, ou não, por que a noites moçambicanas são bem quentes, e então arrumo o
mosquiteiro. Por causa do risco de malária, toda precaução é pouca. E então, a
qualquer momento, para um pequeno cochilo (e quem me conhece sabe que não são
tão pequenos) ou para longas horas de sono, é preciso instalar o mosquiteiro.
Por estes dias tem escurecido um pouco mais tarde, pelas
18 horas. Daqui a alguns meses, já me informaram, que escurecerá lá pelas 17
horas! E o dia estará claro, com o sol raiando, já pelas 5:30h da manhã. Meu
relógio biológico precisa se adaptar!
Não quero parecer saudoso, melancólico, ou
reclamão, mas está sendo tudo diferente. Cada experiência é nova e rica. Mas
podem ter certeza de que estou muito alegre e aprendendo muito.
Fr. Ricardo Klock msf
17 de fevereiro de 2018
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