Conversa de
girassol
Nasci, senhoras e senhores. Nasci e, ao abrir os
olhos, deparei-me de imediato com a face radiosa do sol. Seu brilho iluminou e
aqueceu meu corpo. Transmitiu-lhe vida. Foi amor à primeira vista, paixão
recíproca. Logo pus-me a acariciar os raios dessa cabeleira dourada, seguindo
sua rota diurna. Daí a origem do meu nome: Girassol! Sou, vivo e caminho em
função desse amor. É ele que confere razão, significado e profundidade à minha
existência.
Desde
nosso primeiro encontro, o amor só faz crescer e reforçar entre nós os laços. A
cada dia, desde a aurora, o grande astro rejuvenesce meu ser. Toda manhã sinto
na pele o toque caloroso seus dedos apaixonados. Nossa relação torna-se, ao
mesmo tempo, sempre mais íntima e sempre mais nova. Novidade que não envelhece,
reencontro diário que não esgota a vontade de estar juntos. Proximidade
que não degenera em tédio, não satura e nem enferruja a rotina. De minha parte,
procuro vestir-me com as melhores roupas que pude encontrar. Eu mesmo as teço
com os fios mais coloridos, entrelaçando cores e tons. Enfeito minha cabeça com
o que há de mais belo e perfumado. Meu corpo se mimetiza ao verde vivo da
natureza. Tudo faço acompanhar de perto a trajetória cotidiana do amado. Nossa
existência consiste em um misto de alegria, troca de beijos e festa. Pouco me
importa o quanto durará, ou quando terei de voltar ao pó da terra. Importa
que, enquanto vivos, sejamos inteiros um para o outro.
Antes
de nascer, entretanto, senhoras e senhores, passei por sofrimentos inauditos.
Conheci nas entranhas as dores e contrações do parto. Depois aprendi que, além
de nascer, também o ato de crescer é doloroso. Exige escolhas e renúncias,
aproximações e despedidas. Meus primeiros passos tropeçaram no terreno
acidentado do ciúme e da vingança. Mal conseguia balbuciar, era difícil juntar
palavra com palavra. Até que entendi a linguagem muda da cor e do gesto, do
olhar e do sorriso, dos braços abertos, do estar lado a lado com quem se
ama.
Verdade
que existem as noites, longas e por vezes vazias. O amado se retira, se
ausenta. Mas sua ausência, ao deixar-me só, permite que minha memória seja
povoada com nossas mais belas recordações. A noite então se reveste de
estrelas. E estas viram pérolas de nosso comum. Curvo a cabeça e admiro o
brilho e a beleza de cada pérola. Assim, não me sinto só em meio ao
deserto. Além disso, sei que ele voltará com o passar da madrugada. Volta mais
quente e renovado. E encontra igualmente renovada a minha vida pois, no
silêncio, pude visitar o íntimo de minha alma, descobrindo nela novos segredos
que hão de enriquecer a ligação.
Dia
e noite, a paixão toma o coração, a mente e o espírito. Ao calor do sol, acabei
por murchar e queimar minhas vestes. Meu corpo franzino e alquebrado ficou
exposto à luz crua do meio dia. Em lugar de vergonha, porém, tive ocasião de
penetrar mais fundo o mistério da vida. Descobri as sementes que em mim se
ocultam. Trazem em germe meu corpo recriado. Aos punhados, atirei-as ao vento,
certo de que uma ou outra cairá em terra fértil. Haverei, pois, de renascer
para reencontrar o sol e retomar nosso amor temporariamente
interrompido…
Mas
a breve interrupção, senhoras e senhores, não deixa de ser penosa. Antes de
erguer-me do chão, tenho que mergulhar as raízes na terra fria, escura e úmida.
Antes de levantar a cabeça em direção ao ar livre, tenho que dobrar os joelhos
diante dos vermes que, sobre o próprio ventre, rastejam no pó e na lama. Antes
de correr nas asas do amor ao encontro do sol, tenho que ver com os olhos e
tocar com as mãos inúmeros seres vivos que não sabem o que é um dia de júbilo.
Antes
de encontrar o amado, tenho que levar esperança aos pobres, migrantes e
excluídos, que nunca ouviram falar de amor, nunca foram tocados pelo brilho de
um rosto amigo. Por isso, teimosamente aguardam um toque de solidariedade.
Tenho que submergir nos “infernos do sofrimento humano” e visitá-los, para que
possam levantar-se. Nessa tentativa de subir com eles, ou parte deles,
será bem mais festivo meu reencontro com a face radiante do sol.
Pe. Alfredo J. Gonçalves, cs
São Paulo, 14 de
abril de 2019
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