quarta-feira, 1 de maio de 2019

São José Operário


José, um operário

A festa de são José Operário fui instituída pelo Papa Pio XII, em 1955. Com isso, a Igreja católica quis reafirmar a dignidade dos trabalhadores e trabalhadoras e, ao mesmo tempo, dar uma marca católica à celebração civil e classista do dia 1° de maio. O próprio Pio XII havia dito, por ocasião do Natal de 1942: “Todo trabalho possui uma dignidade inalienável e, ao mesmo tempo, uma íntima ligação com a pessoa em seu aperfeiçoamento: nobre dignidade e prerrogativa que não são de modo algum aviltadas pela fadiga e pelo peso, que devem ser suportados como efeito do pecado original em obediência e submissão à vontade de Deus.”
Antes de Pio XII, o Papa Leão XIII havia escrito “Os porletários e operários têm o direito especial de recorrer a São José e de imitá-lo. José, que, de fato, pertence a uma família real, uniu-se em matrimônio com a mais santa e a maior entre todos as mulheres, é considerado o pai do Filho de Deus, e, não obstante tudo isso, passou a vida toda a trabalhar e tirar do seu trabalho de artesão tudo o que era necessário ao sustento da família.” E introduzindo o nome de São José no cânon da missa, o Papa João XXIII, e, mais recentemente, o Papa Francisco, quiseram homenageá-lo como exemplo de vida cristã, homem trabalhador e honesto, fiel e obediente à palavra de Deus.
O pai de Jesus era um carpinteiro
Em geral a afirmação de que Jesus foi carpinteiro não causa hoje nenhum problema para os cristãos, se bem que muitos parecem lamentar secretamente o fato de Jesus não ter sido descendente da família nobre ou de uma dinastia sacerdotal. Mas, no contexto das primeiras comunidades cristãs, especialmente no ambiente do judaísmo e do império romano, a origem social de Jesus atraía suspeita e desprezo sobre seu ensino e suas ações.
Ouvindo o ensino de Jesus na sinagoga, seus conterrâneos se perguntavam perplexos: “De onde vem essa sabedoria e esses milagres? Esse homem não é o filho do carpinteiro?” Nomeando de cor os membros de sua humilde família, eles não conseguiam entender e ficaram escandalizados (cf. Mt 13,53-58). A condição social de José, e a profissão braçal que ele exercia, eram causa de menosprezo e dificultavam a aceitação da mensagem de Jesus por parte do seu próprio povo.
Mas este é um dado que não podemos esquecer ou diminuir: José é um homem que viveu do próprio trabalho. No século XIX, o Pe. Berthier, fundador dos Missionários da Sagrada Família, escrevia: “José era um pobre artesão: ele não recebeu outra herança senão as mãos, outro capital senão a carpintaria, outros recursos senão o próprio trabalho” (Le prêtre II, p. 802). E esse trabalho não foi obstáculo à santidade, mas o caminho que o levou à integridade nas suas relações com Maria, com Jesus, com seu povo e com Deus.
Um trabalhador pode alcançar a sabedoria?
A expressão grega tektôn, que aparece nos evangelhos e normalmente é traduzida por carpinteiro, expressa também o ofício do pedreiro e do ferreiro. De qualquer maneira, designa sempre trabalhos artesanais, ou braçais. Assim, podemos supor com bastante fundamento histórico e literário que José e Jesus foram trabalhadores braçais experimentados no ofício da carpintaria e bastante conhecidos nas vilas da região circunvizinha da Galileia.
Podemos presumir também que, seguindo o costume da época e da região segundo o qual o pai devia ensinar sua profissão aos filhos, José ensinou Jesus a distinguir os diversos tipos de madeira e suas qualidades específicas: plátano, terebinto, cipreste, sicômoro, acácia, oliveira, zimbro, pinheiro, etc. Ensinou-o também a usar adequadamente as ferramentas de trabalho: machado, martelo, serra, plaina, cinzel, etc. E observando o jeito de José trabalhar, Jesus aprendeu o valor de um trabalho bem feito.
É certo que a Sagrada Escritura em geral mantém o apreço pelo trabalho humano. Mas é preciso notar também que o livro do Eclesiástico registra uma certa reserva e até menosprezo frente aos trabalhadores manuais. “Aquele que está livre de atividades torna-se sábio. Como poderá tornar-se sábio aquele que maneja o arado e cuja glória consiste em manejar o ferrão? Como pode tornar-se sábio aquele que guia bois, não abandona o trabalho e só sabe falar de crias de vacas? O mesmo acontece com todo carpinteiro e construtor, e com qualquer pessoa que trabalha dia e noite...” (Eclo 38,24-27).
Com base nesta visão, podemos concluir que, como os demais trabalhadores braçais do Oriente Médio daquela época, José e Jesus “não são requisitados no conselho do povo, não têm lugar especial na assembléia, não se assentam na cadeira do juiz, nem conhecem as disposições legais. Eles não brilham pela cultura nem pelo julgamento, e não entendem de provérbios”, como diz o livro do Eclesiástico. “Entretanto, são eles que sustentam as necessidades básicas, e a oração deles consiste em realizar o próprio trabalho” (Eclo 38,34).
A dignidade dos trabalhadores
A festa de São José Operário foi estabelecida com o objetivo de celebrar o valor do trabalho humano e proclamar a dignidade dos trabalhadores e trabalhadoras frente ao capital e seus controladores. São José nos ajuda a voltar nosso olhar àqueles e aquelas que hoje necessitam do próprio trabalho para sobreviver e, ao mesmo tempo, realizam através dele sua vocação de construir o bem comum.
Nossa fé sublinha que Deus assumiu a condição humana, inclusive a condição de trabalhador braçal. “Pela sua encarnação, o Filho de Deus, de certo modo, uniu-se a todos os seres humanos. Trabalhou com mãos humanas, pensou e agiu como qualquer ser humano, amando com um coração humano. Nascido da Virgem Maria, foi realmente um dos nossos em tudo, exceto no pecado” (Gaudium et Spes 22).
O mesmo documento conciliar recomenda gratidão e alegria aos cristãos  que “seguindo o exemplo de Cristo, que trabalhou como operário, exercem todas as suas atividades unificando os esforços humanos, domésticos, profissionais, científicos e técnicos numa síntese vital com os bens religiosos, sob cuja direção tudo se orienta para a glória de Deus” (Gaudium et Spes 43). Assumindo  trabalhos  braçais humildes em Nazaré, Jesus conferiu uma dignidade especial ao trabalho e aos trabalhadores/as (cf. Gaudium et Spes 67).
Mudar os sistemas iníquos
Em tempos de crise econômica de dimensoes globais, como esta que estamos atravessando, as saídas apresentadas pelos chefes de plantão como mais razoáveis e urgentes normalmente trazem prejuízos aos trabalhadores e trabalhadoras. Fala-se sempre em flexibilizar os direitos trabalhistas e oferecer segurança jurídica aos investidores, mas pouco se fala em flexibilizar os índices de lucro dos empresários e banqueiros e em assegurar previdência e segurança alimentar e social aos trabalhadores. A precarização do trabalho, especialmente a terceirização e a aprovação do trabalho intermitente e a limitação ao trabalho sindical, acrescenta mais preocupações à insegurança. A Igreja afirma sem rodeios que “é iníquo e desumano” organizar a produção e a economia “em detrimento dos trabalhadores”.  “Nenhuma lei econômica o justifica” e, nesses casos, “a greve deve ser reconhecida como um direito de defesa dos trabalhadores” (Gaudium et Spes 68).
Muita gente, inclusive cristãos, preferem imaginar José trazendo nas mãos o lírio da pureza, jamais as ferramentas que representam o trabalho. E gostam de contemplar Jesus trazendo na cabeça uma coroa de rei e nas mãos o pergaminho ou o cajado, a patena e o cálice, mas nunca uma foice, uma chave ou uma enxada! E o mundo viria abaixo se alguém ousasse representar José e Jesus inseridos numa manifestação social pela redução da jornada de trabalho, contra a flexibilização das leis trabalhistas ou por uma nova ordem internacional.
Que o trabalho não seja em vão
Paulo Coelho confessou que gosta de pensar que Jesus celebrou sua última ceia numa mesa fabricada na marcenaria de José. Mesmo que isso não seja historicamente provável, é importante sublinhar os laços que unem José e Jesus, sejam eles de trabalho, de ambiente social, de fé ou de missão. Jesus será sempre o filho e o herdeiro do carpinteiro de Nazaré, e dele aprendeu a relevância da utopia do reino de Deus, o valor do trabalho e a dignidade dos trabalhadores e trabalhadoras.
De minha parte, concedo-me o direito de imaginar José e Jesus envolvidos no trabalho em mutirão para a construção de casas no povoado de Nazaré. À noite, depois da modesta janta, vejo José puxando de memória o Salmo 127: “Se Javé não constrói a casa, em vão labutam os construtores. Se Javé não guarda a cidade, em vão vigiam os guardas. É inútil que vocês madruguem e se atrasem para deitar, para comer o pão com duros trabalhos: aos seus amigos ele o dá enquanto dormem.”
Imagino José interrompendo a prece, fixando demoradamente seu olhar terno no rosto de Jesus, e depois continuando: “A herança que Javé concede são os filhos, seu salário é o fruto do ventre: os filhos da juventude são flechas na mão do guerreiro.” E então vejo Maria envolvendo José com um abraço carinhoso e completando: “Feliz o homem que enche sua aljava com elas; não será derrotado na porta da cidade quando litigar com seus inimigos. Maria sabia que seu marido não brilhava pela cultura e não entendia de provérbios, mas também sabia muito bem que das mãos dele vinha boa parte do sustento da família, e que seu trabalho subia ao céu como oração.
Pe. Itacir Brassiani msf

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