voto, urna e cidadão
Ninguém em sã
consciência ousaria negar que o voto constitui um instrumento secreto e decisivo
do cidadão. Mas também ninguém em sã consciência afirmaria que o simples ato de
votar, a cada dois anos, esgote em si mesmo os “direitos e deveres” de uma
verdadeira cidadania. Esta, quando real e eficaz, inclui outros compromissos
bem mais complexos e empenhativos que o fato de depositar o voto na urna. Fato
que, nas chamadas democracias ocidentais, em lugar de uma participação livre,
consciente e decisiva, cumpre não raro uma função meramente simbólica e
emblemática.
É assim que
entre as três formas de voto – voto de cabresto, voto de transferência e voto
consciente – podemos dizer que enquanto a primeira vai diminuindo e a última
crescendo, prevalece ainda a segunda forma de voto. Isto é, muitos eleitores
votam e voltam para casa, como se a urna fosse o lugar para transferir aos
representantes eleitos o exercício da própria cidadania. Cidadania é coisa que
não se transfere: embora o político eleito, pelo fato de sê-lo, adquira maior
visibilidade na administração pública, compete a cada eleitor buscar espaços
alternativos de participação.
Isso porque toda
democracia está impregnada de certa ambiguidade, contra a qual é preciso estar
alerta. Se é verdade que o sufrágio universal é uma forma de escolher os
candidatos representativos através da vontade da maioria, não é menos certo que
o eleitor sofre previamente, por parte da mídia, um bombardeamento de informações
sobre os mesmos. Quem garante a idoneidade das fontes e, consequentemente, o
valor veraz de semelhantes informações? Não é à toa que os meios de comunicação
adquirem a fama de “quarto poder”! Ao lado da possibilidade de manipular e
maquear os dados sobre os candidatos elegíveis, exercem um fascínio e um poder
da sedução nada desprezíveis.
Tal poder pode
ser utilizado de duas maneiras opostas e complementares. Em termos negativos, o
uso incontrolado e incontrolável das palavras, imagens e efeitos especiais
serve muitas vezes para desfigurar o perfil dos adversários, diminuindo-lhes a
possibilidade de autodefesa. Do ponto de vista positivo, os mesmos recursos
servem para envernizar e engrandecer artificialmente a figura do candidato que
possui melhores condições de pagamento. Quem paga escolhe o cardápio – diz o
provérbo popular! Em breves palavras, como em outros âmbitos da vida social,
também nas eleições o binômio poder/riqueza constitui a verdadeira força motriz
do processo de escolha. Por mais informado que esteja o cidadão e por mais que
procure se defender da avalanche publicitária, torna-se difícil (senão
impossível) separar o real da falso, o joio do trigo.
Tudo isso se
agrava com a força do marketing e da propaganda eleitoral. Bem sabemos que,
hoje em dia, os “marqueteiros” exercem uma função de alta importância e
inegável incidência no decorrer da campanha eleitoral. Da mesma forma que às
mercadorias estrategicamente expostas nas vitrines, podem sim fazer com que a
embalagem dissimule um produto medíocre, reciclado ou de baixa qualidade. Como
nos filmes, a expressão
“luz-câmera-ação” torna-se uma espécie de varinha mágica que reveste o
candidato de uma luminosidade sorridente e colorida, falseando-lhe a trajetória
e os feitos concretos. Não sem razão, o marqueteiro constitue atualmente uma
das profissões mais bem remuneradas.
Feitas esas
ressalvas, retomemos os compromissos da cidadania. O primeiro deles tem um
alcance limitado e local, mas de forma alguma negligenciável. E a pergunta é
muito simples: em que maneira cada cidadão acompanha a administração pública de
sua rua, de seu bairro, de seu município? Qual o estado da escola local, do
sistema de saúde e de segurança, do transporte coletivo e de outros serviços
públicos. Em poucas palavras, o Estado, em seus mais variados órgãos e
instâncias, se faz presente no cotidiano da vida?
Num segundo
momento, e sempre em articulação com o primeiro, faz-se necessário ampliar o
raio de ação. Outras perguntas tomam lugar no cenário da atividade política: como
se comportam as pessoas públicas eleitas, seja no âmbito do poder executivo
(municipal, estadual e nacional), seja nas atividades do poder legislativo,
como vereadores, deputados e senadores? Em geral, no programa do partido notar-se-á
sempre uma discrepância entre as “promesas do candidato” durante a campanha
eleitoral e a “realizações do político” eleito no exercício do mandato. Até que
ponto vai esse desequilíbrio: permanece minimamente suportável ou foi elevado a
um grau irreconhecível? Até onde vai a distância entre o “antes” e o “depois”
das eleições? Há possibilidades de
diminuí-la através da pressão popular? Até que ponto o político mantém os pés
firmes na realidade social que o projetou ou, ao contrário, criou asas e
decolou da vida com seus problemas e clamores?
Por fim, mas não
em último lugar, chegamos à tarefa mais exigente da cidadania numa efetiva
prática democrática. Além de escolher os candidatos através do voto e
fiscalizar a presença (ou não) do poder público na vizinhança, todo cidadão tem
“o direito e o dever” de acompanhar de perto a ação múltipla e plural do
Estado. O que significa participar ativamente das decisões que orientam os
destinos do país, especialmente no que se refere à sua política econômica,
social e cultural? Aqui a informação e a formação correta exercem um papel de
fundamental importãncia. Em síntese, político representativo, de um lado, e
eleitor cidadão, do outro, constituem duas faces da mesma moeda, dois pólos da
prática política. São portanto indissociáveis, indivorciáveis!
Em síntese, não
basta o voto puro e simples. Não basta a visita periódica à urna, seguida de um
“lava-mãos”: fiz a minha parte, os políticos que façam o resto! Não basta a
fidelidae do eleitor. É preciso que o cidadão o seja de fato, assumindo o
direito e o dever de exercer a cidadania. Nessa perspectiva, faz-se necessário
criar e/ou fortalecer outros canais, instâncias e mecanismos de participação
popular. São instrumentos que podem ajudar não somente no controle sobre o
comportamento público dos eleitos, mas também no acompanhamento das finanças
públicas. Concretamente, no controle efetivo do orçamento do município, do
estado e da União. E mais, na pressão consciente e organizada para implementar
ou melhorar os serviços públicos.
Convém não
esquecer, a esse propósito, que a atividade política (como outras, de resto)
tende à inércia e à comodidade do continuísmo. A descupa vem em geral do
futebol: “em time que ganha não se mexe!” Num país onde esse esporte tem ampla
divulgação e aceitação, o argumento torna-se tanto mais forte quanto mais
perigoso. Por isso é que a pressão popular no sentido de “ocupar ruas e praças
por liberdade e direitos”, como lembra o lema da 20ª edição do Grito dos
Excluídos (2014), em sintonia com o Plebiscito por uma Constituinte Soberana e
pela reforma política, tem a função primordial de sacudir, despertar e
impulsionar as autoridades responsáveis para as mudanças mais urgentes e
necessárias.
É esse o papel,
por exemplo, dos Conselhos Populares, sempre que não estejam manipulados pela
mão visível ou invisóvel do prefeito e outros políticos e oligarcas de plantão;
das consultas populares feitas à população, sobre temas referentes a decisões
que envolvem o futuro de tudo e de todos; dos partidos políticos, se e quando
não se deixam instrumentalizar por idelogias centralizadoras, autoritárias e
excludentes; dos movimentos e lutas sociais, no esforço por buscar melhores
condições de trabalho e vida; das campanhas, mobilizações, organizações não
governamentais; de entidades que exercem destacada influência na sociedade,
tais como Igrejas, escolas e universidades, a OAB, entre um punhado de ouras, do
trabalho de base, em termos de sensibilidade e conscientização, bem como de uma
infinidae de iniciativas populares... Enfim, de tantas outras formas de
participação viva e ativa. Vale deixar aberta a pergunta: além de votar e de
assistir pela telinha o desenrolar dos fatos políticos, você participa
ativamente de algum tipo de organização?
Pe. Alfredo J. Gonçalves, CS
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