Espiritualidade vivida no dia-a-dia
É mais fácil entregar a vida num gesto heróico do que na
fidelidade diária, na obscuridade do anonimato e das pequenas coisas de cada
dia. É mais fácil amar as grandes causas do que encarná-las em nosso
compromisso diário. “É mais fácil conquistar a liberdade do que administrá-la
cada dia”, dizia Simón Bolívar.
A espiritualidade libertadora não é um espírito de
libertinagem, de anarquia. Essa seria uma falsa libertação. A nossa
espiritualidade é disciplina. Vive-se no dia-a-dia. Disciplina nos horários,
dando tempo a cada coisa: ao trabalho, ao estudo, ao descanso, à convivência, à
oração...
É impossível alcançar a autenticidade sem disciplina,
sem auto-controle. A ascese do controle de si, da maturidade psíquica, da
harmonia nos relacionamentos: família, grupo de trabalho, pastoral, militância
sindical e política, ecumenismo, descanso e lazer... Este é um requisito
necessário para a veracidade e a autenticidade de toda pessoa, para a santidade
de todo cristão. É ascese manter-se aberto à crítica, à democracia no modo de
trabalhar e conviver com o povo e com o próprio grupo.
No dia-a-dia é que é mais difícil superar as incoerências
pessoais, o egoísmo na convivência, a falta de co-responsabilidade nas pequenas
coisas (como a gula, a imaturidade sexual, o álcool, as atitudes viciosas, o
desejo de protagonismo e personalismo, o orgulho, a utilização dos outros, a
irresponsabilidade). A harmonia pessoal pede coerência interior estrutural da
pessoa: uma profunda harmonia e coesão entre a opção fundamental, as atitudes
fundamentais e os atos concretos. Somente quando há coerência entre estes três
planos é que existe harmonia, autenticidade e veracidade na pessoa.
O dia-a-dia é o teste mais confiável para mostrar a
qualidade de nossa vida e o espírito que a inspira: “ser o que se é; falar o
que se crê; crer no que se prega; viver o que se proclama, até as últimas
consequências e nos detalhes de cada dia”. O dia-a-dia é uma das principais
formas de ascese de nossa espiritualidade. O heroísmo do cotidiano, do
doméstico, do rotineiro, da fidelidade até nos detalhes obscuros e anônimos. A
espiritualidade engloba todo o viver cotidiano, e não somente o tempo destinado
à oração, à meditação da Palavra de Deus, à celebração da Eucaristia, às
atividades pastorais, aos encontros e reuniões dos grupos de militantes, etc.
A espiritualidade do dia-a-dia inclui, e dela fazem
parte: o horário de levantar e a higiene matinal; o estender a cama, a ordem no
quarto de dormir; o “Bom dia!” que se dá aos companheiros de casa, de escola e
de trabalho; o modo de abrir e fechar as janelas e portas; a maneira de
caminhar na casa; a limpeza do banheiro, da pia e da cozinha; o modo de
servir-se e de servir à mesa; o jeito de saborear os alimentos; o modo de
assumir o estudo, a oração, o trabalho e o lazer do grupo; o jeito de passar a
roupa, a vassoura e o pano pela casa; o modo de trabalhar a horta, o jardim; a
iniciativa de pôr um cartaz ou uma flor na sala, no refeitório ou na capela; o
empenho em preparar a oração e as liturgias do grupo... Tudo isso faz parte do “Amai-vos
uns aos outros como eu vos amei!” São gestos gratuitos de solidariedade às
pessoas de casa e de fora. São as obras, os gestos concretos di dia-a-dia.
Espiritualidade não é apenas tratar de ser coerente
com aquilo que somos diante de Deus e dos homens: discípulo de Jesus, batizado,
votos religiosos, estado matrimonial, etc. Espiritualidade é fazer tudo – do levantar-se
ao deitar-se – não por rotina, mas estando bem presente e atento ao que se diz e
faz, ao que se fala, se sente, se ouve, pois “tudo o que fizerdes ao menor dos
irmãos, é a mim que o fazeis”. E ninguém é mais próximo do que aquele que
comigo vive. Este é, no dia-a-dia, o meu irmão, a minha irmã!
Pe. Rodolpho Ceolin msf
(Estas notas manuscritas são um resumo e uma adaptação
de um capítulo do livro Espiritualidade da Libertação, de Dom Pedro Casaldáliga, preparadas pelo Pe. Ceolin para a formação
dos junioristas, no início da década passada.)
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