1. Quem bebe desta água…
Viagem,
sol escaldante, cansaço, sede… “Dá-me de beber!” É um pedido de toda pessoa
humana! Deus, que se fez gente em Cristo e se esvazia para compartilhar nossa
humanidade (Fl 2, 6-7), é capaz de pedir à mulher samaritana: “Dá-me de beber!”
(Jo 4,7). Ao mesmo tempo, esse Deus que vem ao nosso encontro oferece a água
viva: “ A água que eu lhe darei se tornará uma fonte que jorrará para a
vida eterna.” (Jo 4,14)
O
encontro entre Jesus e a mulher samaritana nos convida a experimentar água de
um poço diferente e também a oferecer um pouco da nossa própria água. Na
diversidade, nos enriquecemos uns aos outros. A Semana de Oração pela Unidade
dos Cristãos é um momento privilegiado para oração, encontro e diálogo. É uma
oportunidade para reconhecer a riqueza e o valor que estão presentes no outro,
no diferente, e para pedir a Deus o dom da unidade.
“Quem
bebe desta água sempre volta” – diz um provérbio brasileiro, utilizado quando
uma pessoa que nos visita vai embora. Um copo refrescante de água, chimarrão,
tereré são sinais de acolhimento, diálogo e convivência. O gesto bíblico
de oferecer água a quem chega (Mt 10,42), como forma de acolhida e partilha, é
algo que se repete em todas as regiões do Brasil.
O
estudo e a meditação propostos neste texto para a Semana de Oração têm o
objetivo de ajudar as pessoas e comunidades a perceber a dimensão dialogal do
projeto de Jesus, que chamamos de Reino de Deus. O texto afirma a importância
de uma pessoa conhecer e compreender sua própria identidade para que a
identidade do outro não seja vista como uma ameaça. Se não nos sentimos
ameaçados, estaremos capacitados para experimentar o outro como algo
complementar: sozinha, uma pessoa ou uma cultura não se basta! Por isso,
a imagem que emerge das palavras “dá-me de beber” é algo que nos fala de
complementaridade: beber água do poço de alguém é o primeiro passo para
experimentar o modo de ser do outro. Isso leva a uma partilha de dons que nos
enriquece. Quando os dons do outro são recusados, há prejuízo para a sociedade
e para a Igreja.
No
texto de João 4, Jesus é um estrangeiro que chega cansado e com sede. Ele
precisa de ajuda e pede água. A mulher está na sua própria terra; o poço
pertence a seu povo, à sua tradição. Ela é dona do balde e é ela que tem acesso
à água. Mas ela também está com sede. Eles se encontram e esse encontro oferece
uma inesperada oportunidade para ambos. Jesus não deixa de ser judeu porque
bebeu água oferecida por uma mulher samaritana. A samaritana permanece sendo
ela mesma ao acolher o caminho de Jesus. Quando reconhecemos que temos
necessidades recíprocas, a complementaridade acontece em nossas vidas de modo
mais enriquecedor. Esse “Dá-me de beber” nos impulsiona a reconhecer que
pessoas, comunidades, culturas, religiões e etnias precisam umas das outras.
Dizer
“Dá-me de beber” supõe que Jesus e a Samaritana se perguntam mutuamente sobre
aquilo de que têm necessidade. Dizer “Dá-me de beber”, leva-nos a reconhecer
que as pessoas e as populações na sua diversidade, as comunidades, as culturas
e as religiões têm necessidade uns dos outros.
“Dá-me
de beber” traz consigo uma ação ética que reconhece a necessidade que temos uns
dos outros na vivência da missão da Igreja. É algo que nos impele a mudar nossa
atitude, a nos comprometer com a busca da unidade no meio de nossa diversidade,
através de nossa abertura para uma variedade de formas de oração e
espiritualidade cristã.
2. O contexto eclesial e religioso do Brasil
O
Brasil pode ser considerado um país muito religioso. É tradicionalmente
conhecido como um país em que uma certa “cordialidade” caracteriza as relações
entre classes sociais e grupos étnicos. No entanto, o Brasil está vivendo um
tempo de crescente intolerância manifestada em altos níveis de violência,
especialmente contra minorias e os mais vulneráveis: pessoas negras. Jovens,
homossexuais, praticantes de religiões afro-brasileiras, mulheres e indígenas.
Essa intolerância esteve escondida por muito tempo. Tornou-se mais explícita e
revelou um Brasil diferente quando, em 12 de outubro de 1995, na festa de Nossa
Senhora Aparecida, a padroeira do país, um dos bispos de uma Igreja
neo-pentecostal chutou uma estátua de Nossa Senhora Aparecida durante uma
apresentação de nível nacional na TV. Desde então, temos tido outros incidentes
de intolerância religiosa a partir de grupos cristãos. Tem havido também
situações similares de intolerância cristã em relação a outras religiões,
particularmente quando se trata de tradições indígenas e afro-brasileiras.
A
lógica que está por baixo desse tipo de comportamento é a competição pelo
mercado religioso. De modo crescente, no Brasil, alguns grupos cristãos adotam
uma atitude competitiva de uns com os outros: é uma competição por um lugar na
comunicação de massa, por novos membros e fundos públicos para grandes eventos.
O papa Francisco aponta para esse mesmo fenômeno quando escreve: “O mundanismo
espiritual leva alguns cristãos a estar em guerra com outros cristãos que
se interpõem na sua busca pelo poder, prestígio, prazer ou segurança
econômica.” (EG 98)
Essa
situação de competição religiosa tem afetado a vida tradicional das confissões
cristãs, que têm experimentado uma redução ou estagnação no número de seus
membros. Isso tem impulsionado a idéia de que uma Igreja forte e dinâmica é uma
Igreja que tem um número elevado de membros. Como resultado, há uma tendência
no meio de setores significativos de Igrejas tradicionais de afastamento da
busca da unidade visível da Igreja cristã.
Essa
cristandade voltada para o mercado investe em políticas partidárias e, em
alguns casos, cria seus próprios partidos políticos. Tem se alinhado com
interesses específicos de grupos, como o dos latifundiários, os ligados ao
agro-negócio e aos mercados financeiros. Alguns observadores chegam a falar que
há uma força confessional na vida política, que ameaça a separação entre o
Estado e a religião. Assim, a lógica ecumênica da derrubada das paredes da
divisão é substituída por uma lógica “corporativista” e pela proteção de
interesses de algumas denominações.
Embora
o Censo oficial de 2010 mostre que 86,8% dos brasileiros se identificam como
cristãos, o país tem taxas bem altas de violência. Assim, a alta percentagem de
filiação cristã não parece se traduzir em atitudes não violentas e respeito
pela dignidade humana. Essa afirmação pode ser ilustrada pelos seguintes dados:
Violência
contra as mulheres: Entre 2000 e 2010, 43.700 mulheres
foram assassinadas no Brasil. Quarenta e uma por cento dessas mulheres que
sofrem violência são violentadas em suas próprias casas.
Violência
contra povos indígenas: A violência contra a população
indígena freqüentemente está relacionada com o desenvolvimento de
hidroelétricas e a expansão do agro-negócio. Esses dois projetos expressam o
modelo de desenvolvimento que prevalece hoje no país. Eles contribuem
significativamente para a lentidão nos processos de demarcação e reconhecimento
de territórios indígenas. Em 2011, o relatório “Violência contra povos
indígenas no Brasil”, da Comissão Pastoral da Terra (CPT), um organismo ligado
à Conferência de Bispos da Igreja Católica do Brasil, identificou 450 projetos
econômicos a serem desenvolvidos em terras indígenas no Brasil. Esses projetos
acontecem sem a adequada consulta aos povos indígenas, que está prevista na
Convenção 189 da Organização Internacional do Trabalho. O relatório da CPT
denuncia o assassinato de 500 indígenas entre 2003 e 2011; 62,7% dessas mortes
aconteceram no estado de Mato Grosso do Sul. A média anual de assassinatos é de
55,8 indígenas.
A
dominante intolerância, em suas variadas formas, deveria ser enfrentada de
maneira positiva: respeitando a legítima diversidade e promovendo o diálogo
como um caminho permanente de reconciliação e paz, como fidelidade ao
evangelho.
3.
Opção hermenêutica
A
metodologia adotada pelo CEBI, e largamente posta em prática na América Latina,
é chamada de Leitura Contextual da Bíblia. Trata-se de uma abordagem do texto
que é, ao mesmo tempo, acadêmica e popular. Nessa metodologia, o ponto de
partida para qualquer teologia e interpretação bíblica é a vida cotidiana.
Adotamos a abordagem que vemos em Jesus no caminho de Emaús (cf Lc 24,13-24):
Que está acontecendo? De que vocês estão falando? Partindo do contexto, vamos
ao texto bíblico. Nessa viagem metodológica, a Bíblia é uma lâmpada para os
nossos pés, uma luz para o nosso caminho (Sl 119,105). Tomamos a Bíblia como um
raio de luz a iluminar o caminho de nossas vidas. O texto bíblico nos ensina e
nos transforma para que possamos dar testemunho da vontade de Deus no contexto
em que vivemos.
4.
A caminhada através dos dias
A
caminhada que estamos propondo para os oito dias começa com uma proclamação,
que conduz a denúncia, renúncia e testemunho. A Semana começa com a proclamação
de um Deus que nos criou à sua própria imagem, que é a imagem do Deus Triuno,
unidade na diversidade. A diversidade é parte do plano de Deus. A seguir,
algumas situações de pecado que levam à injustiça são denunciadas. Em terceiro
lugar, a renúncia a essas atitudes pecaminosas que levam à exclusão se
apresenta como um passo na direção da unidade do Reino de Deus. Finalmente,
damos testemunho da gratuidade de Deus, que está sempre disposto a nos acolher
apesar de nossa imperfeição, com seu Santo Espírito nos animando na direção da
reconciliação e da unidade. Assim vivemos a experiência de Pentecostes, com os
múltiplos dons do Espírito que levam a tornar realidade o Reino de Deus.
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