Quem vem a mim nunca mais terá
fome! (João 6,22-40)
Situando
Neste discurso
do Pão da Vida (Jo 6,22-71), por meio de um conjunto de sete diálogos, o evangelista explica para os leitores e as leitoras
o significado profundo da multiplicação dos pães como símbolo da Ceia
Eucarística. É um diálogo bonito, mas exigente. O povo fica chocado com as
palavras de Jesus. Mas Jesus não cede nem muda as exigências. O discurso parece
um funil. Na medida em que avança, é cada vez menos gente que sobra para ficar
com Jesus. No fim, só sobram os doze, e nem assim pode confiar em todos eles.
Quem lê o
Quarto Evangelho superficialmente pode ficar com a impressão de que João repete
sempre a mesma coisa. Lendo com mais atenção, perceberá que não se trata de
repetição. O Quarto Evangelho tem um jeito próprio de repetir o mesmo assunto,
mas é num nível cada vez mais alto ou mais profundo. Parece uma escada em
caracol. Girando você volta ao mesmo lugar, mas num nível mais alto. Assim é o
discurso sobre o Pão da Vida. É um texto que exige toda uma vida para meditá-lo
e aprofundá-lo. Por isso, não se preocupe se não entender logo tudo. Um texto
assim devemos ler, meditar, ler de novo, repetir, ruminar, como se faz com uma
bala gostosa. Vai virando e virando na boca, até se gastar.
Comentando
Comentando
1º Diálogo: O
povo procura Jesus porque quer mais pão (João 6,22-27)
O povo viu o
milagre, mas não o entendeu como um sinal de algo mais alto ou mais profundo.
Parou na superfície: na fartura de comida. Buscou pão e vida, mas só para o
corpo. Para o povo, Jesus fez o que Moisés tinha feito no passado: deu alimento
farto para todos. Indo atrás de Jesus, queria que o passado se repetisse. Mas
Jesus pediu que o povo desse um passo. Além do trabalho pelo pão perecível,
deveria trabalhar também pelo alimento não perecível. Este novo alimento é que traz
a vida que dura para sempre.
2º Diálogo:
Jesus pede para o povo trabalhar pelo pão verdadeiro (João 6,28-33)
O povo
pergunta: “O que fazer para realizar este trabalho (obra) de Deus?” Jesus
responde: “Acreditar naquele que Deus enviou!”, isto é, crer em Jesus. O povo
reage: “Então, dê-nos um sinal para a gente saber que você é o enviado de Deus!
Nossos pais comeram o maná que foi dado por Moisés!” Para eles, Moisés é o
grande líder do passado, no qual acreditam. Se Jesus quer que o povo acredite
nele, deve fazer um sinal maior que o de Moisés... Jesus responde que o pão
dado por Moisés não era o pão verdadeiro, pois não garantiu a vida para
ninguém. Todos morreram. O pão verdadeiro de Deus é aquele que vence a morte e
traz vida. Jesus tenta ajudar o povo a se libertar dos esquemas do passado.
Para ele, fidelidade ao passado não significa fechar-se nas coisas de
antigamente e recusar a renovação. Fidelidade ao passado é aceitar o novo que
chega como fruto da semente plantada no passado.
3º
Diálogo: O pão verdadeiro é fazer a vontade de Deus (João 6,34-40)
O povo pede:
“Senhor, dá-nos sempre desse pão!” Pensavam que Jesus estivesse falando de um
pão especial. Então Jesus responde claramente: “Eu sou o pão da vida!” Comer o
pão do céu é o mesmo que crer em Jesus e aceitar o caminho que ele ensinou, a
saber: “O meu alimento é fazer a vontade do Pai que está no céu!” (Jo 4,34).
Este é o alimento verdadeiro que sustenta a pessoa, dá rumo e traz vida nova.
4º Diálogo:
Quem se abre para Deus aceita Jesus e a sua proposta (João 6,41-51)
A conversa se
torna mais exigente. Agora são os judeus, os líderes do povo, que murmuram:
“Esse não é Jesus, o filho de José, cujo pai e mãe conhecemos? Como é que ele
pode dizer que desceu do céu?” Eles pensam conhecer as coisas de Deus. Na
realidade, não é nada disso. Se fossem realmente abertos e fiéis a Deus,
sentiriam dentro de si o impulso de Deus atraindo-os para Jesus e reconheceriam
que Jesus vem de Deus (Jo 6,45). Na celebração da Páscoa, os judeus lembravam o
pão do deserto. Jesus os ajuda a dar um passo. Quem celebra a Páscoa, lembrando
só o pão que os pais comeram no passado, vai acabar morrendo como todos eles. O
verdadeiro sentido da Páscoa não é lembrar o maná que caiu do céu, mas sim
aceitar Jesus como o Pão da Vida e seguir pelo caminho que ele ensinou. Não é
comer a carne do cordeiro pascal, mas sim comer a carne de Jesus, que desceu do
céu para a vida do mundo!
5º
Diálogo: Carne e sangue: expressão da vida e da doação total (João 6,52-58)
Os judeus
reagem: “Como esse homem pode dar-nos a sua carne para comer?” Eles não
entenderam as palavras de Jesus, porque tomaram tudo ao pé da letra. Era perto
da Páscoa. Dentro de poucos dias, todos iam comer o cordeiro pascal na
celebração da noite da páscoa. Comer a carne de Jesus significava aceitar
Jesus como o novo Cordeiro Pascal, cujo sangue os libertaria da
escravidão. Por respeito à vida, o AT proibia comer sangue (Dt 12,16.23; At
15,29). Sangue era o sinal da vida. Beber o sangue de Jesus significava
assimilar a mesma maneira de viver que marcou a vida de Jesus. O que traz vida
não é celebrar o maná do passado, mas sim comer este novo pão que é Jesus, a
sua carne e o seu sangue. Participando da Ceia Eucarística, assimilamos a sua
vida, a sua doação e entrega.
6º
Diálogo: Sem a luz do Espírito não se entendem estas palavras (João 6,59-66)
Aqui termina o
discurso de Jesus na sinagoga de Cafarnaum. Muitos discípulos achavam que Jesus
estava indo longe demais, que acabava com a celebração da Páscoa, que se
colocava no lugar mais central de nossa religião. Por isso, muita gente se
desligou da comunidade e não ia mais com Jesus. Jesus reagiu dizendo: “É o
espírito que dá vida, a carne para nada serve. As palavras que vos disse são
espírito e vida.” Não devem tomar ao pé da letra as coisas que ele diz. Só
mesmo com a ajuda da luz do Espírito Santo é possível entender o sentido pleno
de tudo que Jesus falou (Jo 14,25-26; 16,12-13).
7º
Diálogo: Confissão de Pedro (João 6,67-71)
No fim sobram
só os doze. Jesus diz a eles: “Se quiserem, podem ir embora!” Jesus não fazia
questão de ter muita gente. Nem mudava o discurso quando a mensagem não
agradava. Jesus falava para revelar o Pai e não para agradar a quem quer que
fosse. Preferia permanecer só do que estar acompanhado por pessoas que não se
comprometiam com o projeto do Pai. A resposta de Pedro foi bonita: “A quem
iremos? Você tem palavras de vida eterna!” Mesmo sem entender tudo, Pedro
aceitou Jesus e creu nele. Apesar de todos os seus limites, Pedro não era como
Nicodemos que queria ver tudo bem claro de acordo com as suas próprias ideias.
E, mesmo assim, entre os doze havia gente que não aceitava a proposta de Jesus.
Alargando
O Sinal do
Novo Êxodo
O sinal da
multiplicação dos pães aconteceu próximo da Páscoa (Jo 6,4). A Festa da Páscoa
era a memória perigosa do Êxodo, a libertação do povo das garras do faraó.
Assim, todo o episódio narrado neste capítulo tem um paralelo com os episódios
relacionados com a Festa da Páscoa, tanto com a libertação do Egito quanto com
a caminhada do povo no deserto em busca da terra prometida. Apresentaremos este
paralelo nos pequenos blocos que formam o capítulo 6 do Evangelho de João:
A
multiplicação dos pães (Jo 6,1-15)
Jesus tem
diante de si a multidão faminta e o desafio de garantir o alimento para todos.
Da mesma maneira, Moisés enfrentou este desafio durante a caminhada do povo
pelo deserto (Ex 16,1-35; Nm 11,18-23). Depois de comer, a multidão saciada
reconhece Jesus como o “Profeta que devia vir ao mundo” (Jo 6,14) dentro do que
pede a Lei da Aliança (Dt 18,15-22).
Jesus caminha
sobre o mar (Jo 6,16-21)
Para o povo da
Bíblia, o mar era o símbolo do abismo, do caos, do mal (Ap 13,1). No Êxodo, o
povo faz a travessia para a liberdade enfrentando e vencendo o mar. Deus divide
o mar com seu sopro, e o povo atravessa com pé enxuto (Ex 14,22). Em outras
passagens, a Bíblia mostra Deus vencendo o mar (Gn 1,6-10; Sl 104,6-9; Pr
8,27). Vencer o mar significa impor-lhe os seus limites e impedir que ele
engula toda a terra com suas ondas. Nesta passagem, Jesus revela sua divindade,
dominando e vencendo o mar, impedindo que a barca de seus discípulos seja
tragada pelas ondas.
O discurso
sobre o Pão da Vida (Jo 6,22-58)
Este longo
discurso feito na sinagoga de Cafarnaum está relacionado com o capítulo 16 do
livro do Êxodo. Vale a pena ler todo este capítulo de Êxodo, percebendo as
dificuldades que o povo teve que enfrentar na sua caminhada, para podermos
compreender os ensinamentos de Jesus aqui no capítulo 6 do Evangelho de João.
Quando Jesus fala de “um alimento que perece” (Jo 6,27), ele está lembrando Ex
16,20. Da mesma forma, quando os judeus “murmuram” (Jo 6,41), fazem a mesma
coisa que os israelitas no deserto, quando duvidaram da presença de Deus junto
com eles durante a travessia (Ex 16,2; 17,3; Nm 11,1). A falta de alimentos
fazia com que o povo duvidasse que Deus estivesse com eles, de que Deus fosse
Javé, resmungando e murmurando contra Deus e contra Moisés. Aqui também os
judeus duvidam da presença de Deus em Jesus de Nazaré (Jo 6,42).
Carlos Mesters, Francisco Orofino e
Mercedes Lopes
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