“E que nada no mundo separe um casal sonhador!...”
Não é bom
que a pessoa humana viva sozinha: isso está inscrito no mais profundo do nosso
ser. E uma das formas de evitar o isolamento e de promover a socialização é o
matrimônio. Antes de ser um sacramento ou uma instituição, o matrimônio é uma
realidade antropológica: duas pessoas, geralmente homem e mulher, sentem-se
atraídos um pelo outro e selam uniões que recebem diversos nomes, conforme a
linguagem e a cultura que as batiza, mas diferem amplamente em relação às
obrigações recíprocas que estabelecem.
A
história concreta deste dinamismo que se torna vínculo é, porém, como uma rosa
com espinhos abundantes. Muito antes e para além da dolorosa tragédia da
separação, conhecemos o exercício violento da dominação do mais forte sobre o
mais fraco, a violência física e moral, a exploração despudorada e ilimitada do
corpo do outro, a dependência costurada com os fios nada dourados da ameaça. As
separações que, infelizmente, crescem em número com o passar do tempo, são
apenas uma das faces da falência que pode se abater sobre as relações
matrimoniais.
Quando os
fariseus, com o ardiloso objetivo de questionar a prática libertária de Jesus,
perguntam se a lei permite que um homem
se divorcie da sua mulher, querem fundamentalmente garantir os direitos de uma
das partes: a parte masculina, a mais forte. Todos sabiam o que dizia a
tradição: “Quando um homem se casa com uma mulher e consuma o matrimônio, se
depois ele não gostar mais dela, por ter visto nela alguma coisa inconveniente,
escreva para ela um documento de divórcio e o entregue a ela, deixando-a sair
de casa em liberdade” (Dt 24,1).
Jesus
sabe perfeitamente que a lei de Moisés é androcêntrica e patriarcal. Para
abandonar a mulher bastava não gostar mais dela, ou encontrar nela algo de
inconveniente. Por isso, Jesus situa a lei no seu contexto original: diante da
fraqueza e da maldade dos homens, Moisés tentou ao menos dar um salvo-conduto à
mulher abandonada pelo marido. “Foi por causa da dureza do coração de vocês que
Moisés escreveu esse mandamento.” Mas este não é o projeto original e atual de
Deus, para quem “eles já não são dois,
mas uma só carne”. Portanto, “o que Deus uniu, o homem não deve separar.”
Entretanto,
Jesus reconhece que as separações são um fato, muitas vezes doloroso e trágico,
no qual as responsabilidades e os direitos precisam ser divididos igualmente
por ambas as partes. É correto repetir, que nada e ninguém deve separar aqueles
que Deus uniu mediante o amor, mas é preciso também reconhecer que nunca
deveríamos marcar com o selo da lei ou do sacramento decisões imaturas e
baseadas em tudo menos no amor. Movidos por um comodismo irresponsável, podemos
criar facilidades que colocam as pessoas numa gaiola cujas chaves estão nas
nossas mãos...
Não seria
tempo de superar o moralismo mórbido que pensa que a falência de um matrimônio
sempre se deve à maldade culpável de alguém, de admitir que existem casamentos
que não têm caráter sacramental nenhum, que são como cadáveres que esperam
autópsia e sepultura? Não seria urgente desmascarar o legalismo virulento que
isola e cristaliza uma frase de Jesus como lei imutável e relativiza o restante
da vida e da prática do mesmo Jesus? Quando Paulo diz que Jesus não se
envergonha de nos reconhecer como irmãos e irmãs, está se referendo apenas aos
‘bem-casados’?
Depois de
responder aos fariseus e de aprofundar com os discípulos a questão do casamento
e do divórcio, algumas crianças são apresentadas a Jesus. A dominação e as
barreiras impostas às crianças irritam-no. Quando determina que ninguém impeça
que as crianças se aproximem dele, Jesus está enfatizando que Deus não despreza
nem violenta os mais fracos, como alguns o fazem, inclusive em nome de frias
doutrinas e leis pouco cristãs. Como antes havia defendido as mulheres diante
do direito que pendia para o lado dos homens, agora acolhe e abençoa as
primeiras vítimas dos relacionamentos fracassados. “Deixem que as crianças
venham a mim, e não as impeçam de fazê-lo!...”
Jesus de Nazaré, irmão das vítimas e defensor
dignidade de todo ser humano: também hoje, mulheres e crianças são dominadas,
desprezadas e violentadas. Ajuda-nos a descobri-las como chave que dá acesso ao
teu Reino, a entender que ninguém se torna cidadão do teu Reino a partir do
centro ou de cima, mas desde baixo e da periferia, acompanhando aqueles que não
contam. Que as crianças aprendam isso enquando sorvem o leite no seio da mãe e
são carregadas nos ombros de um pai. Confirma e sustenta nossas comunidades e
famílias cristãs nesta bela e irrenunciável missão. Assim seja! Amém!
Itacir Brassiani msf
(Livro
do Gênesis 2,18-24 * Salmo 127 (128) * Carta aos Hebreus 2,9-11 * Evangelho de
São Marcos 10,2-16)