Maria, filha do seu povo,
é bendita entre as mulheres!
Procissão de Nossa Senhora em Nazaré, na Galiléia (maio de 2013) |
A festa de hoje lembra
o nascimento de Maria de Nazaré. É a celebração do aniversário de Maria! E isso
nos lembra que ela nasceu, teve pais, teve infância, cresceu, fez escolhas,
casou, viveu a fé no interior da fé do seu povo. A seu modo, Maria também foi
discípula do filho que educou. Por isso, a festa da natividade é a festa da
humanidade e da normalidade de Maria. Ela não é um ponto desconexo no universo
da fé, não aparece como uma espécie de meteoro, sem origem e sem concretude.
Maria não faz parte dos entes extra-terrestres, tão a gosto de piedades
ultrapassadas e mitos requentados.
Sabemos muito pouco
sobre a vida de Maria. Os evangelhos falam pouco dela. Tudo o que nos é dado
saber está orientado à compreensão do mistério e da missão do fruto do seu
ventre. E isso não é propriamente um problema, pois a ênfase desequilibrada na relevância
das biografias individuais não passa de um doce e ilusório mito moderno. Somos
o que somos pelas relações que vivemos – aquelas que nos antecedem e nos deram
à luz e à vida e aquelas que estabelecemos por livre escolha! –, porque fazemos
parte de um povo, porque assumimos uma missão na arena pública.
A liturgia da Palavra
da festa de hoje nos convida a imaginar e situar Maria de Nazaré na história do
seu povo e na história desencadeada por Jesus. É a busca de uma espécie de
duplo nascimento! Com a ajuda de uma releitura do profeta Miquéias, a Igreja
nos convida a situar o parto que deu Maria à luz no horizonte das esperanças
messiânicas do povo hebreu, desterrado e humilhado. Seu nascimento coincide com
sua maternidade. Maria nasce quando, mediante o filho que nasce do seu ventre,
os povos irmãos se reconciliam e procuram reencontrar e conservar a paz.
Com o auxílio do
evangelho de Mateus, fazendo bom uso da genealogia – esta espécie de documento
de cidadania marcadamente patriarcal e excludente – somos levados a situar
Maria de Nazaré na ambivalente história do povo hebreu. Numa árvore genealógica
onde só aparecem homens, o nome e a memória de Maria se junta a outras quatro mulheres
que rompem com esta exclusividade: Raab, Tamar, Rute, a mulher de Urias. Aos
olhos da cultura e da religião hegemônicas elas eram estrangeiras, pagãs, prostitutas,
simples peças sem autonomia e sem dignidade; aos olhos de Deus, são sujeitos
privilegiados e escolhidos para conduzir à história à sua plenitude.
Mesmo na segunda parte
do relato de Mateus, Maria de Nazaré só aparece na condição de esposa de José e
de Mãe de Jesus. Sua condição de mediação do Espírito Santo a coloca em
situação de risco e vulnerabilidade: poderia ser abandonada e denunciada
publicamente. É a escuta da Palavra e o discernimento dos incríveis caminhos de
Deus que levam José a perder o medo e a vergonha de acolher Maria como esposa,
pois ela, como uma nova arca da aliança, gerou no seu ventre e acolheu no seu
corpo aquele no qual Deus vem viver conosco.
Na festa do
aniversário de Maria, e à luz deste relato de Mateus, podemos até ousar uma
pequena complementação à alegre e profética proclamação de Isabel por ocasião
da visita de Maria de Nazaré. Maria não é apenas bendita entre as mulheres, mas também abençoada e bendita com as mulheres, de modo especial, com o
grupo de mulheres que, mesmo ostentando as feridas do anonimato e da exclusão
imposta por um mundo e uma religião de homens, escrevem páginas magníficas e
abrem caminhos absolutamente indispensáveis à realização da libertadora vontade
de Deus na história.
Evitemos dar asas a
uma imaginação pueril, obsecada pela busca de informações sobre o nascimento, a
infância e a ‘vida privada’ de Maria. Este desejo, além de ser infantil, é
também fadado ao fracasso e ao ridículo. Recordando o nascimento e festejando o
aniversário de Maria de Nazaré – uma mulher entre as mulheres, a esposa de
José, a mãe de Jesus, a primeira discípula e mãe dos crentes – celebremos a
humanidade concreta e a normalidade daquela que nossa piedade um pouco
exagerada corre o risco de transformar em um ser misterioso e mitológico, sem
carne, sem relações e sem história.
A ti dirigimo-nos, Maria de Nazaré, neste dia em que,
um pouco contra tua vontade, recordamos o aniversário do teu nascimento.
Ensina-nos a valorizar agradecidos o nosso próprio nascimento, este fato que nos
diz que somos um dom, que fomos dados à luz. Ajuda-nos a viver nossa humanidade
num tecido de relações, inseridos na controversa história do nosso povo. E acompanha-nos
na bela aventura de assimilar o Evangelho do teu filho, seguindo seus passos,
participando da sua missão, descendo aos infernos onde tantos padecem a
exclusão, e ressurgindo com eles para a vida. Assim seja! Amém!
Itacir
Brassiani msf
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