Na reflexão do
evangelho a ser meditado no próximo domingo, 06 de setembro, veremos como Jesus
atende a uma mulher estrangeira de outra raça e de outra religião, o que era
proibido pela lei religiosa daquela época. Inicialmente, Jesus não queria
atendê-la, mas a mulher insistiu e conseguiu o que queria: a cura da filha.
Situando
Jesus vai
tentando abrir a mentalidade dos discípulos e do povo para além da visão
tradicional. Na multiplicação dos pães, ele tinha insistido na partilha (Mc
6,30-44). Na discussão sobre o puro e o impuro, tinha declarado puros todos os
alimentos (Mc 7,1-23). Agora, neste episódio da mulher Cananeia, ele ultrapassa
as fronteiras do território nacional e acolhe uma mulher estrangeira que não
era do povo e com a qual era proibido conversar. Estas iniciativas de Jesus,
nascidas da sua experiência de Deus como Pai, eram estranhas para a mentalidade
do povo da época. Cresce para eles o mistério, aparece o não-entender.
A abertura
crescente de Jesus era uma ajuda muito importante para as comunidades do tempo
de Marcos. Elas eram um grupo pequeno, perdido naquele mundo hostil do Império
Romano. Quando um grupo é minoria, sofre a tentação de se fechar sobre si
mesmo. A atitude de abertura de Jesus era um estímulo para as comunidades não
se fecharem, mas manterem bem viva a consciência missionária de anunciar a
Boa-nova de Deus a todos os povos, como Jesus tinha pedido com tanta
insistência.
Comentando
Marcos 7,24:
Jesus sai do território
Em Mc 7,1-23,
Jesus tinha criticado a incoerência da “Tradição dos Antigos” e tinha ajudado o
povo e os discípulos a sair da prisão das leis de pureza. Aqui, em Mc 7,24, ele
sai da Galileia. Parece querer sair da prisão do território e da raça. Estando
no estrangeiro, ele não quer ser conhecido. Mas a sua fama já tinha chegado antes.
O povo ficou sabendo e faz apelo a Jesus.
Marcos
7,25-26: A situação
Uma mulher
chega perto e começa a pedir pela filha doente. Marcos diz explicitamente que
ela era de outra raça e de outra religião. Isto é, era uma pagã. Ela se lança
aos pés de Jesus e começa a suplicar pela cura da filha que estava possuída por
um espírito impuro. Os pagãos não tinham problema em recorrer a Jesus. Os
judeus é que tinham problemas em conviver com os pagãos!
Marcos 7,27: A
resposta de Jesus
Fiel às normas
da sua religião, Jesus diz que não convém tirar o pão dos filhos e dar aos
cachorrinhos. Frase dura... A comparação vinha da vida em família. Até hoje,
criança e cachorro é o que mais tem nos bairros pobres. Jesus afirma uma coisa
certa: nenhuma mãe tira o pão da boca dos filhos para dar aos cachorrinhos. No
caso, os filhos eram o povo judeu e os cachorrinhos, os pagãos. Nos outros
evangelhos, Jesus explica o porquê da sua recusa: “Não fui enviado a não ser
para as ovelhas perdidas da casa de Israel” (Mt 15,24). Ou seja: “O Pai não quer
que eu atenda a senhora!”
Marcos 7,28: A
reação da mulher
Ela concorda
com Jesus, mas amplia a comparação e a aplica ao caso dela: “É verdade, Jesus!
O senhor tem razão, mas os cachorrinhos comem as migalhas que caem da mesa das
crianças!” Ela simplesmente tirou as conclusões da parábola que Jesus contou e
mostrou que, até na casa de Jesus, os cachorrinhos comiam das migalhas que
caíam da mesa das crianças. E na “casa de Jesus”, isto é, na comunidade cristã,
a multiplicação do pão para os filhos foi tão abundante que estavam sobrando 12
cestos para os “cachorrinhos”, isto é, para os pagãos!
Marcos
7,29-30: A reação de Jesus
“Pelo que
disseste: Vai! O demônio saiu da tua filha!” Nos outros evangelhos se explicita:
“Grande é a tua fé! Seja feito como queres!” (Mt 15,28). Se Jesus atende ao
pedido da mulher, é porque compreendeu que, agora, o Pai queria que ele
acolhesse o pedido dela. Este episódio ajuda a perceber algo do mistério que
envolvia a pessoa de Jesus e como ele convivia com o Pai. Era observando as
reações e as atitudes das pessoas que Jesus descobria a vontade do Pai nos
acontecimentos da vida. A atitude da mulher abriu um novo horizonte na vida de
Jesus. Através dela, ele descobriu melhor que o projeto do Pai é para todos os
que buscam a vida e procuram libertá-la das cadeias que aprisionam a sua
energia.
Marcos
7,31-36: Abrir o ouvido e soltar a língua
O episódio da
cura do gago é pouco conhecido. Jesus está atravessando a região da Decápole.
Decápole significa, literalmente, Dez Cidades. Era uma região de dez cidades ao
sudeste da Galileia, cuja população era pagã. Um surdo gago é levado a Jesus. O
jeito de curar é diferente. O povo queria que Jesus apenas impusesse as mãos
sobre ele. Mas Jesus foi muito além do pedido. Ele levou o homem para longe da
multidão, colocou os dedos nas orelhas e com saliva tocou na língua, olhou para
o céu, fez um suspiro profundo e disse: “Éffata!”, isto é, “Abra-se!” No mesmo
instante, os ouvidos do surdo se abriram, a língua se desprendeu e o homem
começou a falar corretamente. Jesus quer que o povo abra o ouvido e solte a
língua! Todo o povo ficou muito admirado e dizia: “Ele fez bem todas as
coisas!” (Mc 7,37). Esta afirmação do povo faz lembrar a criação, onde se diz:
“Deus viu que tudo era muito bom!” (Gn 1,31).
Marcos 7,37:
Jesus não quer publicidade
Ele proibiu a
divulgação da cura, mas não adiantou. Quem teve experiência de Jesus vai contar
para os outros, queira ou não queira! As pessoas que assistiram à cura
começaram a proclamar o que tinham visto e resumiram a Boa Notícia assim: “Ele
fez bem todas as coisas!”
Às vezes, se
exagera a atenção que o Evangelho de Marcos atribui à proibição de divulgar a
cura, como se Jesus tivesse um segredo a ser preservado. Na maioria das vezes
que Jesus faz um milagre, ele não pede silêncio. Uma vez até pediu publicidade
(Mc 5,19). Algumas vezes, porém, ele dá ordem para não divulgar a cura (Mc
1,44; 5,43; 7,36; 8,26), mas obtém o resultado contrário. Quanto mais proíbe,
tanto mais a Boa-nova se espalha (Mc 1,28.45; 3,7-8; 7,36-37). Não adianta
proibir! Pois a força interna da Boa-nova é tão grande que ela se divulga por
si mesma!
Alargando
Abertura para
os pagãos no Evangelho de Marcos
Na época do
Antigo Testamento, na rivalidade entre os povos, um povo costumava chamar o
outro povo de “cachorro” (1Sm 17,43). Isto fazia parte da relação conflituosa
que eles tinham entre si, na terra de Canaã, para formar um povo novo com
direito à terra, à vida e à identidade própria. O enfrentamento entre Golias, o
gigante filisteu, e Davi, o pastorzinho israelita, é uma amostra desta
situação. Para Davi, vencer o filisteu pagão era salvar a honra tanto do povo
israelita como do Deus vivo (1Sm 17,26). Quando Davi se aproxima para a luta
sem as armas tradicionais, mas apenas com um bastão, Golias pergunta: “Será que
sou um cachorro?” (1Sm 17,43).
Ao longo das
páginas do Evangelho de Marcos, há uma abertura crescente em direção aos outros
povos. Assim, Marcos leva os leitores e as leitoras a abrir-se, aos poucos,
para a realidade do mundo ao redor e a superar os preconceitos que impediam a
convivência pacífica entre os povos. Eis alguns exemplos: A mulher que Marcos
nos apresenta era uma pagã, siro-fenícia de nascimento (Mc 7,26). No passado,
nos tempos da rainha Jezabel e do profeta Elias, tinha havido rivalidade entre
Israel e o povo da Fenícia ou de Canaã. Mas agora, a mulher não está preocupada
com as rivalidades do passado. Ela busca a libertação para a sua filha,
dominada por um demônio (Mc 7,26). Ouve falar de um judeu que tem o poder de
Deus para libertar do mal. Aqui, já não importam os preconceitos raciais. O que
importa é a vida ameaçada da filha, vida oprimida que precisa ser libertada.
Na sua
passagem pela Decápole, região pagã, Jesus atende ao pedido do povo do lugar e
cura um surdo gago. Ele não tem medo de contaminar-se com a impureza de um
pagão, pois, ao curá-lo, toca-lhe os ouvidos e a língua. Enquanto as
autoridades dos judeus e os próprios discípulos têm dificuldades de escutar e
entender, um pagão que era surdo e gago passa a ouvir e a falar pelo toque de
Jesus. Lembra o cântico do servo: O Senhor Iahweh abriu-me os ouvidos e eu não
fui rebelde (Is 50,4-5).
Ao expulsar os
vendedores do templo, Jesus critica o comércio injusto e afirma que o templo
deve ser casa de oração para todos os povos (Mc 11,17). Fazendo assim, ele
resgata a profecia de Isaías que estendia a salvação aos estrangeiros e manda
abolir as restrições da lei que proibia a participação de eunucos, bastardos e
estrangeiros na assembleia de Iahweh (Dt 23,2-9).
Na parábola
dos vinhateiros homicidas, Marcos faz alusão ao fato de que a mensagem será
tirada do povo eleito, os judeus, e será dada aos outros, aos pagãos (Mc
12,1-12). Depois da morte de Jesus, Marcos apresenta a profissão de fé de um
pagão ao pé da cruz. Ao citar o centurião romano e seu reconhecimento de Jesus
como Filho de Deus, está dizendo que o pagão é mais fiel do que os discípulos e
mais fiel do que os judeus (Mc 15,39). A abertura para os pagãos aparece de
maneira muito clara na ordem final dada por Jesus aos discípulos, depois da sua
ressurreição: Ide por todo o mundo, proclamai o Evangelho a toda criatura (Mc
16,15).
Carlos Mesters
http://www.cebi.org.br/noticias.php?noticiaId=5925
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