A pedagogia libertadora de Jesus desvela o sentido profundo
e as implicâncias concretas das Escrituras na nossa vida cotidiana. Jesus nos propõe
uma justiça mais séria e mais humana que aquela ensinada e praticada pelos
escribas e fariseus. “Não penseis que eu vim abolir a Lei e os Profetas. Não
vim para abolir, mas para dar-lhes pleno cumprimento.” Diante de João Batista,
Jesus já antecipara sua visão da lei e dos costumes: “Devemos cumprir toda a justiça!” (3,16). Paulo chama
isso de “misteriosa sabedoria de Deus, sabedoria escondida”, sabedoria que
nenhum dos poderosos deste mundo conheceu...
No evangelho deste domingo, Jesus propõe duas ênfases
na leitura e na interpretação das Escrituras Sagradas. A primeira é a
vinculação das Escrituras ao sonho de Deus, ao seu projeto de vida abundante
para todos, com clara prioridade aos que são tratados como ‘últimos’ na escala
social. Quando este vínculo é rompido ou enfraquecido, as Escrituras podem
produzir o contrário daquilo que Deus quer transmitir: justificação do poder
dos poderosos; ocultamento das relações de opressão; aumento do fardo que
penaliza os mais fracos da sociedade; afirmação orgulhosa dos crentes diante do
próprio Deus.
A segunda ênfase proposta por Jesus é a estreita
ligação entre escutar, ensinar e praticar as Escrituras. Para Jesus, estava
claro que os escribas e fariseus tinham se apropriado da compreensão das
Escrituras mas não estavam dispostos a fazer a passagem da compreensão
intelectual à ação responsável. E esta continua sendo a grande tentação que
ronda os teólogos e dirigentes religiosos. A advertência de Jesus Cristo é
clara e inequívoca: “Se vossa justiça não for maior que a dos escribas e dos
fariseus, não entrareis no Reino dos Céus.”
E, dito isso, Jesus passa a alguns exemplos concretos.
Um primeiro
exemplo da radicalização da Lei e da concretização das
bem-aventuranças há pouco proclamadas solenemente está no campo das tensões nas
relações interpessoais. Esta questão era já contemplada pelo mandamento “Não
matarás!” Mas, para Jesus, o conteúdo desta lei não se resume em evitar o
homicídio. O projeto de Deus é muito mais amplo, e passa pela pacificação das
relações e pela superação das posturas raivosas e da linguagem eivada de
desprezo, preconceito e violência, como aquela usada recentemente nas redes
sócias em relação à enfermidade e morte da esposa do Lula...
Uma segunda área de demonstração é a liturgia. Jesus
critica o culto que ignora as rupturas nas relações humanas e não impulsiona à
reconciliação. Para ele, a vida concreta é mais importante que os ritos
religiosos, e a percepção das tensões e rupturas relacionais tem primazia sobre
a ortodoxia. “Deixa a tua oferenda diante do altar e vai primeiro
reconciliar-te com teu irmão.” E que ninguém se engane, sentindo-se justificado
por não ter matado ninguém ou postergando para um futuro indefinido a
reconciliação. É preciso fazer isso antes de chegar ao tribunal do incerto fim
da vida...
Jesus prossegue com duas novas exemplificações da
ética do Reino, agora no âmbito das relações homem-mulher. O primeiro exemplo
focaliza a questão do adultério, e afirma que a lei tem a função de educar para
uma relação que não seja possessiva. “Quem olhar para uma mulher com o desejo
de possuí-la, já cometeu adultério...” Jesus sabe que o dinamismo que sustenta
comportamentos sexuais descontrolados é sutil: passa do olhar viciado e
interesseiro, que não reconhece a dignidade da pessoa, à mão que se apossa e
manipula. Jesus insiste que é preciso cortar o mal pela raiz...
Ainda nesse âmbito da relação de gênero, Jesus
reprova a dominação masculina sobre a
mulher, mesmo quando vem sancionada pela cultura e pela lei. Dizer que a
lei permite ou que é costume não desculpa nem justifica. Este é o horizonte da proposta
de Jesus no caso do divórcio. A
permissão legal do divórcio legitimava o descompromisso do marido com a ex-companheira
e garantia ele o direito de maltratá-la e execrá-la publicamente, mas a ética
do Reino de Deus restringe o poder ilimitado e violento dos homens. E Jesus
prossegue, com exemplos no âmbito da comunicação, sublinhando que a sinceridade
deve estar acima de tudo, que é melhor uma amarga verdade que uma doce mentira
ou falsidade...
Jesus Cristo, mestre na
formação de uma nova mentalidade e na construção de um mundo mais humano:
ensina-nos a colocar as leis e tradições no seu devido lugar, e a não
transformá-las em instrumentos de dominação ou descompromisso. Guia as tuas
igrejas a uma justiça maior que o cinismo e a ostentação herdadas do
farisaísmo. Que teu ensino e teu exemplo desenvolvam em nós relações
pacificadoras, igualitárias e solidárias. E que teu Espírito suscite em nossas
comunidades cristãs a criatividade livre e a liberdade fiel, sendas que levam à
uma justiça radical e humanizadora. Assim seja! Amém!
Itacir Brassiani msf
(Livro do Eclesiástico 15,16-21 * Salmo 118 (119)
* 1ª. Carta aos Coríntios 2,6-10 * Evangelho de São Mateus 5,17-37)
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