O evangelho
do primeiro domingo da quaresma nos coloca frente a frente com as tentações de
Jesus. A questão central que este conhecido texto se propõe a responder é a
seguinte: Quem orienta e determina as ações de Jesus, ou a quem ele serve? Para
os discípulos de Jesus, a questão pode ser expressa de modo semelhante: A quem
hipotecamos nossa lealdade, ou a serviço de quem nos colocamos? Qual é o
horizonte que dá sentido ao que fazemos e sonhamos? Seguimos nossos próprios
interesses e tentamos construir nossa vida relativizando tudo, inclusive Deus?
Por
ocasião do seu batismo no rio Jordao, Jesus havia dito a João que era preciso
cumprir toda a justiça, assumir a condição humana com todas as consequências.
Ele fizera a experiência de ser Filho querido, precioso aos olhos do Pai (cf.
Mt 3,15-17), mas parece que lhe parecia difícil assumir a condição humana, como
o é para nós: a impotência, a carência, a falta de imagens concretas e
palpáveis de Deus nos inquieta e deixa inseguros. E aqui está a tentação:
manipular Deus em benefício próprio, criar um deus à medida dos nossos medos e
interesses e viver indiferentes a tudo e todos.
O
Evangelho diz que Jesus foi tentado pelo
diabo. Este personagem está nos evangelhos para assustar ou impor medo. Ele
simboliza o espírito invisível do império romano, de todos os impérios, e das
elites religiosas do judaísmo e de todas as instituições. As lideranças
políticas e religiosas são a forma institucional e histórica deste dinamismo
misterioso e potente que opõe resistência aos propósitos de Deus e impõe seus
caminhos por meio da indiferença, da injustiça e do medo. E esta força
tentadora está presente inclusive no templo, e não apenas no monumental templo
de Jerusalém ou de Salomão...
A lógica
do poder questiona e desafia Jesus sobre o modo mais correto e eficaz de viver
sua filiação divina, sua lealdade do Pai. E a primeira tentação é esta: aproveitar-se da condição de filho para
exibir o poder de Deus e saciar a própria fome, agindo em benefício próprio,
como costumam fazer as elites. Jesus supera esta tentação afirmando que a nossa
sobrevivência depende da obediência a Deus e à sua Palavra vivificadora, e não
da submissão interesseira aos poderosos.
A segunda tentação ocorre no centro
político, social e religioso do judaísmo. Jerusalém e o seu templo, construídos
para servir e louvar a Deus e para ser asilo aos perseguidos, se transformam em
obstáculo à lealdade a ele. Aqui a tentação é exigir provas da proteção de Deus
sem a contrapartida da fidelidade, pedir uma exibição grandiosa e capaz de
impressionar. Jesus se recusa a chamar Deus em causa própria, confia
filialmente no Pai, age de acordo com a sua vontade e não cede às tentações
típicas do poder.
Na terceira tentação, o tentador tira as
máscaras e revela seu rosto como poder. Ele leva Jesus a um lugar alto e demonstra
sem sutilezas quem controla os impérios e poderes do mundo: é do diabo, do
tentador, que os tiranos recebem o poder, é a ele que servem. Por que Jesus não
poderia fazer o mesmo, demonstrar que é filho de Deus agindo segundo a lógica
do poder? Mas Jesus permanece fiel à sua identidade de filho do Pai e demonstra
a supremacia de Deus sobre todos os poderes.
Como
Jesus, nossa tentação hoje é fugir da bela e terrível vulnerabilidade humana.
Como desejaríamos ser uma espécie de deuses!
Jesus relativiza as tentativas e vence a tentação de renegar a condição
humana e realizar a vontade de Deus pelas vias do poder, e demonstra que nossa
fome radical de vida só pode ser saciada pela Palavra que sai da boca de Deus,
pela Utopia para a qual acena reiteradamente. E ensina que Deus vem em nosso
auxílio exatamente quando renunciamos a pô-lo à prova.
Na carta
aos Romanos, Paulo nos lembra que o cristianismo nasce de uma libertadora: no
encontro pessoal com Jesus Cristo descobrimos que fomos justificados profundamente
e para sempre. Se de Adão herdamos a fraqueza, o fechamento e a condenação, em
Jesus Cristo nos é oferecida a acolhida incondicional que nos redime, a
libertação da nossa liberdade, o dinamismo gratuito do Espírito Santo que vence
todas as tentações de fechamento autossuficiente e de indiferença mortífera.
Deus querido, Pai e Mãe de todas as criaturas: em
Jesus, teu filho e nosso irmão, revelaste quão profunda e vivificante é tua materna
paternidade. Que teu Espírito nos conduza nas muitas travessias, nos ajude a
superar as tentações do poder e a não transformar a religião numa espécie de
asilo ou condomínio fechado da indiferença. Que ele nos sustente na missão respeitar
e cuidar dos biomas e nos liberte do medo da fragilidade, do desejo de ser
sempre o primeiro, o príncipe, o melhor, o superior. Assim seja! Amém!
Itacir Brassiani msf
(Livro do Gênesis 2,7-9;
3,1-7 * Salmo 50 (51) * Carta de Paulo aos Romanos 5,12-19 * Evangelho de São Mateus
4,1-11)
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