A boa política está ao serviço da paz
Mensagem do Papa
Francisco para o Ano Novo
“A
paz esteja nesta casa!”
Ao enviar seus discípulos em missão, Jesus disse-lhes: “Em
qualquer casa em que entrardes, dizei primeiro: “A paz esteja nesta casa!” E,
se lá houver um homem de paz, sobre ele repousará a vossa paz; se não, voltará
para vós” (Lc 10, 5-6).
O oferecimento da paz está no coração da missão dos discípulos
de Cristo. E esta oferta é feita a todos os homens e mulheres que, no meio dos
dramas e violências da história humana, esperam na paz. A “casa” de que
fala Jesus é cada família, cada comunidade, cada país, cada continente, na sua
singularidade e história; antes de mais nada, é cada pessoa, sem distinção nem
discriminação alguma. E é também a nossa “casa comum”, o planeta onde Deus nos
colocou a morar e do qual somos chamados a cuidar com solicitude. Eis, pois, os
meus votos no início do novo ano: “A paz esteja nesta casa!”
O
desafio da boa política
A paz parece-se com a esperança de que fala o poeta Carlos
Péguy; é como uma flor frágil, que procura desabrochar por entre as pedras
da violência. Como sabemos, a busca do
poder a todo o custo leva a abusos e injustiças. A política é um meio
fundamental para construir a cidadania e as obras do homem, mas, quando aqueles
que a exercem não a vivem como serviço à coletividade humana, pode tornar-se
instrumento de opressão, marginalização e até destruição.
“Se alguém quiser ser o primeiro – diz Jesus – há de ser o último
de todos e o servo de todos” (Mc 9,
35). Como assinalava o Papa São Paulo VI, “tomar a sério a política, nos seus
diversos níveis – local, regional, nacional e mundial – é afirmar o dever do
homem, de todos os homens, de reconhecerem a realidade concreta e o valor da
liberdade de escolha que lhes é proporcionada, para procurarem realizar juntos
o bem da cidade, da nação e da humanidade”.
Com efeito, a função e a
responsabilidade política constituem um desafio permanente para todos aqueles
que recebem o mandato de servir o seu país, proteger as pessoas que habitam
nele e trabalhar para criar as condições dum futuro digno e justo. Se for
implementada no respeito fundamental pela vida, a liberdade e a dignidade das
pessoas, a política pode tornar-se verdadeiramente uma forma eminente de
caridade.
Caridade
e virtudes para uma política o serviço dos direitos humanos e da paz
O Papa Bento XVI recordava que “todo o cristão é chamado a esta
caridade, conforme a sua vocação e segundo as possibilidades que tem de
incidência na pólis. Quando o
empenho pelo bem comum é animado pela caridade, tem uma valência superior à do
empenho simplesmente secular e político. A
ação do homem sobre a terra, quando é inspirada e sustentada pela caridade,
contribui para a edificação daquela cidade universal de Deus, que é a meta para onde
caminha a história da família humana”. Trata-se de um programa no qual
se podem reconhecer todos os políticos, de qualquer afiliação cultural ou
religiosa, que desejam trabalhar juntos para o bem da família humana,
praticando as virtudes humanas que
subjazem a uma boa ação política: a
justiça, a equidade, o respeito mútuo, a sinceridade, a honestidade, a
fidelidade.
A propósito, vale a pena recordar as «bem-aventuranças
do político», propostas por uma testemunha fiel do Evangelho, o
Cardeal vietnamita Francisco Xavier Nguyen Van Thuan, falecido em 2002:
Bem-aventurado o político que tem uma alta noção e uma profunda
consciência do seu papel.
Bem-aventurado o político de cuja pessoa irradia a
credibilidade.
Bem-aventurado o político que trabalha para o bem comum e não
para os próprios interesses.
Bem-aventurado o político que permanece fielmente coerente.
Bem-aventurado o político que realiza a unidade.
Bem-aventurado o político que está comprometido na realização
duma mudança radical.
Bem-aventurado o político que sabe escutar.
Bem-aventurado o político que não tem medo.
Cada renovação nos
cargos eletivos, cada período eleitoral, cada etapa da vida pública constitui
uma oportunidade para voltar à fonte e às referências que inspiram a justiça e
o direito. De uma coisa temos a certeza: a boa política está ao serviço da paz; respeita e promove os direitos
humanos fundamentais, que são igualmente deveres recíprocos, para que se teça
um vínculo de confiança e gratidão entre as gerações do presente e as futuras.
Os
vícios da política
A par das virtudes, não faltam infelizmente os vícios, mesmo na
política, devidos quer à inépcia pessoal quer às distorções no meio ambiente e
nas instituições. Para todos, está claro
que os vícios da vida política tiram credibilidade aos sistemas dentro dos
quais ela se realiza, bem como à autoridade, às decisões e à ação das pessoas
que se lhe dedicam. Estes vícios, que enfraquecem o ideal duma vida
democrática autêntica, são a vergonha da
vida pública e colocam em perigo a paz social: a corrupção – nas suas
múltiplas formas de apropriação indevida dos bens públicos ou de
instrumentalização das pessoas –, a negação do direito, a falta de respeito
pelas regras comunitárias, o enriquecimento ilegal, a justificação do poder
pela força ou com o pretexto arbitrário da razão de Estado, a tendência a
perpetuar-se no poder, a xenofobia e o racismo, a recusa a cuidar da Terra, a
exploração ilimitada dos recursos naturais em razão do lucro imediato, o
desprezo daqueles que foram forçados ao exílio.
A
boa política promove a participação dos jovens e a confiança no outro
Quando o exercício do
poder político visa apenas salvaguardar os interesses de certos indivíduos
privilegiados, o futuro fica comprometido e os jovens podem ser tentados pela
desconfiança, por se verem condenados a permanecer à margem da sociedade,
sem possibilidades de participar num projeto para o futuro.
Pelo
contrário, quando a política se traduz no encorajamento dos talentos juvenis e
das vocações que requerem a sua realização, a paz propaga-se nas consciências e
nos rostos. Torna-se uma confiança dinâmica, que significa “fio-me de ti e
creio contigo” na possibilidade de trabalharmos juntos pelo bem comum.
Por isso, a política é a favor da paz, se se expressa no reconhecimento dos
carismas e capacidades de cada pessoa. Que há de mais belo que uma mão
estendida? Esta foi querida por Deus para dar e receber. Deus não a quis para
matar (cf. Gn 4,
1-16) ou fazer sofrer, mas para cuidar e ajudar a viver. Juntamente com o
coração e a inteligência, pode, também a mão, tornar-se um instrumento de
diálogo.
Cada um pode contribuir com a própria pedra para a construção da
casa comum. A vida política autêntica, que se funda no direito e num diálogo
leal entre os sujeitos, renova-se com a convicção de que cada mulher, cada
homem e cada geração encerram em si uma promessa que pode irradiar novas
energias relacionais, intelectuais, culturais e espirituais. Uma tal confiança
nunca é fácil de viver, porque as relações humanas são complexas.
Nestes tempos, em particular,
vivemos num clima de desconfiança que está enraizada no medo do outro ou do
forasteiro, na ansiedade pela perda das próprias vantagens, e manifesta-se
também, infelizmente, a nível político mediante atitudes de fechamento ou nacionalismos que colocam em questão aquela
fraternidade de que o nosso mundo globalizado tanto precisa. Hoje, mais do
que nunca, as nossas sociedades necessitam de «artesãos da paz» que possam ser
autênticos mensageiros e testemunhas de Deus Pai, que quer o bem e a felicidade
da família humana.
Não
à guerra nem à estratégia do medo
Cem anos depois do fim da I Guerra Mundial, ao recordarmos os
jovens mortos durante aqueles combates e as populações civis dilaceradas,
experimentamos – hoje, ainda mais que ontem – a terrível lição das guerras
fratricidas, isto é, que a paz não pode
jamais reduzir-se ao mero equilíbrio das forças e do medo. Manter o outro
sob ameaça significa reduzi-lo ao estado de objeto e negar a sua dignidade.
Por esta razão, reiteramos que a escalada em termos de intimidação, bem
como a proliferação descontrolada das armas são contrárias à moral e à busca
duma verdadeira concórdia. O terror exercido sobre as pessoas mais
vulneráveis contribui para o exílio de populações inteiras à procura duma terra
de paz.
Não
são sustentáveis os discursos políticos que tendem a acusar os migrantes de
todos os males e a privar os pobres da esperança.
Ao contrário, deve-se reafirmar que a
paz se baseia no respeito por toda a pessoa, independentemente da sua história,
no respeito pelo direito e o bem comum, pela história, no respeito pelo direito
e o bem comum, pela criação que nos foi confiada e pela riqueza moral
transmitida pelas gerações passadas.
O nosso pensamento detém-se, ainda e de modo particular, nas
crianças que vivem nas zonas atuais de conflito e em todos aqueles que se esforçam
por que a sua vida e os seus direitos sejam protegidos. No mundo, uma em cada seis crianças sofre com a
violência da guerra ou pelas suas consequências, quando não é requisitada para
se tornar, ela própria, soldado ou refém dos grupos armados. O testemunho
daqueles que trabalham para defender a dignidade e o respeito das crianças é
extremamente precioso para o futuro da humanidade.
Um
grande projeto de paz
Celebramos há pouco o septuagésimo aniversário da Declaração
Universal dos Direitos Humanos, adotada após a II Guerra Mundial. A este
respeito, recordemos a observação do Papa São João XXIII: “Quando numa pessoa
surge a consciência dos próprios direitos, nela nascerá forçosamente a
consciência do dever: no titular de direitos, o dever de reclamar esses
direitos, como expressão da sua dignidade; nos demais, o dever de reconhecer e
respeitar tais direitos”.
Com efeito, a paz é fruto
dum grande projeto político, que se baseia na responsabilidade mútua e na
interdependência dos seres humanos. Mas é também um desafio que requer ser
abraçado dia após dia. A paz é uma
conversão do coração e da alma, sendo fácil reconhecer três dimensões
indissociáveis desta paz interior e comunitária:
a)
A
paz consigo mesmo, rejeitando a intransigência, a ira e a impaciência e – como
aconselhava São Francisco de Sales – cultivando “um pouco de doçura para
consigo mesmo”, a fim de oferecer “um pouco de doçura aos outros”;
b)
A paz com o outro: o familiar, o amigo, o estrangeiro, o pobre,
o atribulado, tendo a ousadia do encontro, para ouvir a mensagem que traz
consigo;
c)
A
paz com a criação, descobrindo a grandeza do dom de Deus e a parte de
responsabilidade que compete a cada um de nós, como habitante deste mundo,
cidadão e ator do futuro.
A
política da paz, que conhece bem as fragilidades humanas e delas se ocupa, pode
sempre inspirar-se ao espírito do Magnificat que
Maria, Mãe de Cristo Salvador e Rainha da Paz, canta em nome de todos
os homens: A «misericórdia de Deus estende-se de geração em geração sobre
aqueles que O temem. Manifestou o poder do seu braço e dispersou os soberbos.
Derrubou os poderosos de seus tronos e exaltou os humildes, lembrado da sua
misericórdia, como tinha prometido a nossos pais, a Abraão e à sua
descendência, para sempre” (Lc 1,
50-55).
Vaticano, 8 de dezembro de 2018.
FRANCISCO