DESCER
ÀS ÁGUAS DE SILOÉ
Tem-se dito, e com razão, que a espiritualidade cristã é uma espiritualidade
de olhos abertos. Na realidade, isso vale para toda espiritualidade
genuína, ou, em outras palavras, não seria verdadeira aquela espiritualidade
que nos alienasse ou nos isolasse da realidade, em particular da
realidade mais dolorida e sofredora. Há motivos para suspeitar de uma
espiritualidade que não desemboca na compaixão, entendida esta como a
capacidade de entrar em sintonia com o outro que sofre, e que se traduz numa
ação eficaz a seu favor.
A Campanha da Fraternidade deste ano nos apresenta o samaritano como
personagem inspirador na nossa vivência da espiritualidade cristã: “Viu, sentiu compaixão e cuidou dele”. Todos nós, de uma maneira ou de outra,
somos cegos de nascimento, porque nascemos e crescemos em meio a sistemas
sociais e religiosos que domesticaram nosso olhar, nos educaram a ter um olhar
avesso e atrofiado. A cura do cego de nascimento, apresentado pelo
evangelista João, é o sinal que nos fala daquilo que o Senhor nos oferece:
caminhar na claridade do dia.
Este homem está cego, já que nasceu no mundo fechado e ao longo de toda
a sua vida aprendeu a ver com o olho cego da sinagoga. Jesus vai
curá-lo através de um gesto de íntima proximidade; não realiza um espetáculo
para provocar espanto, nem diz palavras ininteligíveis. Simplesmente agachou-se,
cuspiu no chão e com sua própria saliva fez um pouco de barro; com a gema de
seus dedos tocou com ternura os olhos do cego e o enviou a lavar-se na piscina
de Siloé. É uma cena de reconstrução de uma pessoa quebrada e que nos recorda
o primeiro barro com que Deus oleiro criou o primeiro ser humano. No
cego curado se revela a ação permanente de Deus: despertar a luz escondida em
nosso interior, ativar a vida para dar-lhe amplitude maior.
Com o relato do cego de nascença, o evangelista João está propondo
um processo catecumenal que conduz o ser humano das trevas à luz, da opressão
à liberdade, da identidade ferida à identidade reconstruída, da exclusão à
participação. Mas, para isso, é preciso deslocar-se, fazer a travessia e descer
em direção a Siloé, lugar das águas
re-criadoras. Este texto remete à experiência fundante da vida. O
caminho de “descida” é o caminho da vida. Siloé
está situada na parte baixa da cidade, afastada daqueles que, na parte alta,
controlam e manipulam religião e as pessoas, através da centralidade da lei, do
culto, da tradição. Ali não há possibilidade da vida se expandir e se expressar
em todas as suas potencialidades.
O reservatório de Siloé estava situado fora das muralhas, na parte
baixa de Jerusalém e recolhia a água da fonte de Guijón e que chegava até ele
conduzida por um canal-túnel (daí o nome aramaico de “siloah” = emissão-envio,
água emitida-enviada). Era uma maravilha de engenharia, mandado construir pelo
rei Ezequias no ano 700 ac, para fazer a água chegar à cidade.
No final daquele túnel o cego se faz presente, lava-se, assume sua
vida, torna-se independente: um novo nascimento. Agora
ele começa a acreditar em si mesmo, em seu valor como ser humano, em sua
capacidade de ver e de dar direção à sua vida; assume sua condição humana e
deixa de se sentir escravo dos outros, controlado por pais e mestres, como um
mendigo inútil; na sua liberdade, ele agora pode assumir sua vida, decidir,
dizer, afirmar-se.
Inspirados no evangelista João poderíamos dizer: a doença é a
manifestação da perda do contato do ser humano com sua fonte divina. As duas
narrativas de cura mais importantes no quarto evangelho, ocorrem no tanque de
Betesda e no reservatório de Siloé. Quando o ser humano é separado de sua fonte
divina, ele adoece, e a cura acontece, quando esse contato com a fonte interior
é reestabelecido. Para que isso aconteça, Jesus não precisa levar o doente
até a piscina de Siloé; bastam o encontro com Ele e a força de Sua palavra para
reconectar o enfermo com sua fonte profunda, da qual estivera separado.
Jesus reconstrói o cego quebrado em sua dignidade, mas motiva-o
a assumir sua responsabilidade, deslocando-se ao reservatório de água de Siloé
e rompendo sua dependência para com os fariseus e sacerdotes que o oprimiam,
mantendo-o preso à sua situação de cegueira existencial. O apelo de Jesus é
para que o cego seja ele mesmo, em liberdade; com seus gestos e com a força de sua palavra, Jesus despertou no cego a mobilidade e independência.
Nesse sentido, caminhar em direção a Siloé é descer em
direção à própria humanidade, ao mais profundo de si mesmo, para lavar-se no
manancial das águas puras. O
cego seguiu as instruções, recuperou a vista e atingiu a integridade humana: passou da morte à vida, da
opressão à liberdade.
Todos sabemos que o ser humano é dotado de recursos internos
inesgotáveis.Cada um possui dentro de si uma fonte de forças reconstrutoras, renováveis,
resilientes. Mas, muitas vezes, é preciso de um estímulo externo para
reconectar-se com essa fonte. Sabemos e sentimos, no mais profundo, o que
é mais saudável e vital para nós, porém precisamos do encorajamento externo
para voltar a confiar em nossas próprias potencialidades.
O evangelho deste domingo nos
ensina o caminho através do qual descemos a uma dimensão mais profunda e
assim chegamos à corrente subterrânea; aqui experimentamos a unidade de nosso
ser; aqui é o lugar da transcendência, onde nossa transformação realmente
acontece. Tal experiência significa abertura, dilatação do
coração, expansão da consciência ao ver que tudo parte de Deus (Fonte do
rio da vida) e tudo volta para Deus (rio que mergulha no Mar).
A experiência de oração, junto à Piscina de Siloé, nos conduzirá à outra
fonte, aquela que brota do coração, e que estava ressequida, impedindo-nos de
reconhecer o murmúrio da água viva. Sentados à beira da fonte silenciosa, poderemos,
também nós, atingir experiências imprevistas e surpre-endentes, ou reconhecer, através
do murmúrio das águas, “vozes novas” que nos incitam a
peregrinar para as regiões desconhecidas do nosso próprio interior. Só assim,
poderemos vislumbrar o outro lado e tocar as raízes mais profundas que
dão sentido e consistência ao nosso viver.
O manancial de nosso ser essencial constitui nossa autêntica vida.
Descobri-lo, abrir-nos a ele, fazer-nos transparentes a ele e vivê-lo cada dia,
constituem a plenitude de nossa realização. A “descida” até o
mais profundo de nós mesmos, requer que deixemos para trás um contexto de
competição, de rivalidade e vazio, de fechamento e rigidez, de superficialidade
e isolamento. O encontro com a “água viva” abre futuro novo, motivando-nos à tomada de decisões, a assumir um estilo de vida coerente
com aquilo que encontramos no fundo do nosso próprio coração.
Pe. Adroaldo Palaoro sj
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