O olhar compassivo vê, reconhece e cuida a vida ameaçada.
No evangelho deste
domingo, João nos coloca, com Jesus, diante de um judeu que nasceu cego, é
pobre e precisa mendigar para sobreviver. Ao mal físico da cegueira se
acrescenta a chaga social da pobreza e o mal espiritual de quem pensa que o
mendigo cego ou sua família são os culpados por seu sofrimento. Parece que os
próprios discípulos pensam assim. E é malvisto e suspeito quem ousa ver ou pensar
diferente, mudar esta condição considerada natural e atuar contra os costumes e
leis que cimentam esta ordem social! “Este homem não pode vir de Deus... Nós
sabemos que este homem é um pecador”, dizem de Jesus.
O olhar de Deus é outro,
e seus caminhos são alternativos. Este olhar diverso e inverso, próprio de Deus
e daqueles que nele acreditam, se mostra de forma claríssima em Jesus de
Nazaré. Para ele, nem o cego mendigo nem sua pobre família são culpados de
qualquer coisa. Jesus não explica as causas da cegueira do mendigo, mas, diante
dela, chama todos e cada um a tomar uma posição responsável. “Temos que
realizar as obras daquele que me enviou...” Estamos diante de uma pessoa
necessitada que pede uma ação solidária, e não diante de alguém que está aí
para ser julgado. E a ação deve ser imediata, não há tempo a esperar!
Em Jesus de Nazaré
temos a Luz que ajuda a ver e compreender a realidade assim como ela é.
“Enquanto estou no mundo, eu sou a luz do mundo...” Trata-se de ver o
sofrimento e a opressão dos empobrecidos e excluídos e de chamá-los a ocupar os
primeiros lugares, de recuperar a visão daqueles que não conseguem ver e de
devolver-lhes a cidadania. Jesus cura o cego, justifica sua família e
desmascara a culpa da elite religiosa. Assim, questiona a ordem estabelecida e
quem a sustenta. Enquanto as elites, inclusive as religiosas, se comprazem em culpar
as vítimas e inocentar os algozes, Jesus desmascara suas cínicas mentiras.
Como discípulos e
discípulas de Jesus, precisamos desenvolver um olhar que transcende as
aparências, agir de modo a derrubar os muros construídos pela exclusão e
mantidos pela indiferença globalizada, vencer o medo que acomoda e nos leva a
duvidar de que existam pessoas e grupos excluídos. “Não acreditaram que ele
tinha sido cego...” Toda ideologia,
instituição ou sistema fechado em si mesmo, com pretensões de totalidade – seja
ele partido, nação, empresa, Igreja ou academia – tem vocação totalitária e,
portanto, cai na tentação das práticas de indiferença e de exclusão.
Nesta quaresma, somos
convidados à conversão pessoal e a defender a vida ameaçada. Somos interpelados
pelo Samaritano, que “viu, sentiu compaixão e cuidou”. Para mudar
verdadeiramente nossa vida, precisamos “aprender a configurar o nosso olhar com
o de Jesus”, que, do alto da cruz, viu, perdoou nossos pecados e nos salvou por
sua misericórdia (cf. Texto-Base, nº 26; 84). No seguimento de Jesus Cristo,
não há lugar para um olhar que incrimina, ou que vê com indiferença e se afasta.
O olhar compassivo conduz à aproximação, a “uma presença que salvaguarda, cuida
e transforma a vida de quem mais precisa” (idem, nº 83).
Paulo pede que nos
comportemos como “filhos da luz”, o que significa ser bom com todos, reconhecer
e afirmar a dignidade dos sem dignidade, lutar pela justiça, reestabelecer a
verdade. E o ponto de partida é despertar do sono e praticar a necessária
autocrítica: “Será que também somos cegos?” Os passos seguintes são a
perseverança no caminho de Jesus de Nazaré, a incorporação do seu ponto de
vista, a colaboração generosa com sua ação libertadora. E isso sem se deixar
enganar com a aparência ou a estatura dos grandes.
Mas este é um caminho
sempre cercado de ameaças e incompreensões. O cego e mendigo que recuperou a
capacidade de ver e discutir com as autoridades enfrentou sentenças ferozes e
condenações inapeláveis: “Você nasceu inteirinho no pecado e quer nos ensinar?”
E o próprio Jesus, por ter ousado retirar o véu dos olhos do cego e levantar o
manto ideológico da exclusão que o vitimava, não tardou a ser carimbado como
pecador. Não é novidade que muitos pastores e profetas de hoje sejam
demonizados e execrados por aqueles que se comprazem em rotular e excluir as
vítimas para continuar desfrutando delas.
Jesus, humano
e divino profeta de Nazaré, Luz do nosso olhar e razão do nosso caminhar: Tu
nos ensinas que abrir os olhos e ver as coisas na tua perspectiva é um caminho
que nunca termina de começar. Ajuda-nos a reconhecer que tu és a Luz que revela
a dignidade das pessoas que são vistas como mercadoria ou reduzidas a
consumidoras. Guia-nos a uma vida realmente sábia e generosa, como fizestes com
a mulher da Samaria e com o anônimo mendigo e cego. E ensina-nos a superar o
olhar indiferente dos oficiais da religião (do sacerdote e do levita) e a exercitar
a compaixão que restitui e promove a vida. Assim seja! Amém!
Itacir
Brassiani msf
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