A peste
(Artigo de Raí, dirigente do São Paulo e ex-jogador adorado pela torcida
do Paris Saint Germain, publicado no jornal francês Le Monde em maio de 2021.)
Que me
perdoem Camus, seus estudiosos e milhões de admiradores, peço licença para
repetir aqui algumas de suas palavras, do clássico “A Peste”, de reivindicar
tua audácia, uma ousadia à imagem das tuas, para me ajudar neste momento de
súplica rebelde, deste espasmo de “combat” e de “combattant”, diante de atos
desumanos e suas terríveis consequências.
Como
brasileiro, como tantos outros e perante o mundo, assumo aqui que estamos
habitados, sitiados, nestes tempos sombrios de nossa história, por mais de uma terrível
peste. Este duplo flagelo, cujas devastações são apenas o acréscimo de nossos
próprios erros coletivos, que pode contaminar muito além de nossas fronteiras.
Além da
“Peste” biológica, epidemia pessimamente gerida, causadora da maior crise
sanitária da história do Brasil, temos outro mal, que no longo prazo pode
deixar terríveis sequelas ainda mais profundas. A peste antidiplomática que nos
isola, a peste que corrói a Amazônia, o meio ambiente e persegue os que a
protegem, o mal que distancia a vigilância e permite passar a boiada, aceita
garimpos em reservas indígenas, que prefere troncos deitados a vê-los em pé,
vivos, pragas cúmplices dos responsáveis por estes crimes. Também a peste que
castra liberdades, ameaça a democracia e resgata a censura, a peste
preconceituosa que promove a intolerância, a homofobia, o machismo e a
violência.
Enfim, a
Peste que nos destrói, destrói a razão e o bom senso, que perturba nossa
essência, nossa consciência e nega a ciência. A Peste que promove o ódio é
inimiga das artes e da cultura. Ela, que tem suas próprias variantes, é obra de
um clã. Associada ao distanciamento, ao negacionismo, a desinformação, a
mentira, acaba por reprimir, mesmo que temporariamente, nossa revolta,
resistência e indignação.
Citamos
Camus: “Os flagelos, na verdade, são uma coisa comum, mas é difícil acreditar
neles quando se abatem sobre nós. Quando estoura uma guerra, as pessoas dizem:
‘Não vai durar muito, seria estúpido’. Sem dúvida, uma guerra é uma tolice, o
que não a impede de durar. A tolice insiste sempre, e nós a compreenderíamos se
não pensássemos sempre em nós”
Sim, aqui
do outro lado do Atlântico, este oceano que nos separa e nos aproxima, amigo
francês, vemos de tudo. Da “ocupação” de boa parte de nosso espírito, até
ideias muito próximas de um nazismo medíocre, ao menos de um ideal genocida de
poder, que se pretende genocida de ideias, mesmo que para isso a morte de
concidadãos enteja no caminho, nem que para isso aconteça um massacre
humanitário, desnecessário, com centenas de milhares de mortes evitáveis.
O mal está
espalhado: meio ambiente, relações internacionais, Fundação Palmares, direitos
humanos. Chegamos ao cúmulo de assistirmos um certo secretário de Cultura
parafraseando em rede nacional o discurso de Joseph Goebbels, ministro de Adolf
Hitler antissemita, maldita alma da pior das ideologias.
“Tinham
visto morrer crianças, já que o terror, há meses, não escolhia, mas nunca lhes
tinham seguido o sofrimento minuto a minuto, como faziam desde essa manhã”.
No nosso
caso (que revoltaria ainda mais os personagens de Camus), morrem inocentes por
falta de oxigênio, e/ou por falta de leitos.
É preciso
então, mais que resistir. Contra este peste brasileira que veste um terno
sombrio com seu sorriso astuto, ataca seus adversários com repressão, agressão
e perseguição, resgatando “sobras legais” herdadas da ditadura, como a lei de
segurança nacional. Nosso Brasil, depois de ter passado por 20 anos de
torturas, assassinatos, censuras, pensávamos nunca mais sofreríamos deste mal.
Ainda Camus:
“O padre dizia que a virtude da aceitação total de que falava não podia ser
compreendida no sentido restrito que lhe era habitualmente atribuído, que não
se tratava da banal resignação, nem mesmo da difícil humildade“. “Era por isso
– e Paneloux afirmou ao seu auditório que o que iria dizer não era coisa fácil
– preciso querê-la, porque Deus a queria”.
“O Brasil
acima de tudo e Deus acima de todos” Este era o slogan da última campanha
presidencial, esta que acompanhou a vitória do inominável. Alguns de nós já
imaginávamos que por detrás destas palavras, se escondia a carne do mal coberta
pela fake pele de um fake salvador da pátria, uma clara tentativa de iludir
cidadãos de boa-fé, evangélicos, fiéis e crentes de Deus, já feridos e traídos
em sua cidadania, querendo fazer crer que toda e qualquer atitude de seu
governo segue princípios divinos.
Pois me
diga, que Deus seria este que destrói e coloca a vida humana em um plano tão
desprezível?
“Porque
ele sabia o que essa multidão eufórica ignorava e se pode ler nos livros: o
bacilo da peste não morre nem desaparece nunca, pode ficar dezenas de anos
adormecido nos móveis e na roupa, espera pacientemente nos quartos, nos porões,
nos baús, nos lenços e na papelada. E sabia, também, que viria talvez o dia em
que, para desgraça e ensinamento dos homens, a peste acordaria seus ratos e os
mandaria morrer numa cidade feliz”.
E me
permita completar, e em meu país, perigosamente distraído.
O Brasil
que queremos e que o mundo precisa, também negou o horror que se aproximava. E,
portanto, há décadas os ratos já estavam aqui mostrando seus rostos e dentes,
de olhos revirados, afiando suas unhas. E não nos atentamos. Será que nós,
concidadãos, e sobretudo nosso parlamento, também somos
negacionistas/cúmplices, ao não querer enxergar o tamanho do perigo, ao nos
sujeitarmos a este poder já manchado de sangue e de crimes?
Eu sei que
longo prazo, e seja qual for o país, o homem corajoso, o cientista, o
resistente, conseguirão juntos derrotar o mal. Aqui, não será tão simples assim,
porque carregamos nas nossas costas a histórica extrema desigualdade,
econômica, social e educacional que esteriliza alguns comportamentos e aniquila
a vontade de ruptura.
Toda Peste
causa separações profundas e dolorosas. E olhem nós aqui, já isolados, tratados
como pária do mundo… mas, sobretudo, separados de nós mesmos, desviados do
Brasil que viemos para ser, da nossa essência, da nossa natureza, do país do
futuro e de um mundo mais humano e justo. Do país exuberante, da alegria de
viver que faz sonhar, que dança, brinca, canta e encanta. Porém, ao nos
rendermos ao mal, passivos, mostramos o que temos de pior. O país da
miscigenação não pode ser o da negação do seu próprio destino!
“O flagelo
não está à altura do homem; diz-se então que o flagelo é irreal, que é um sonho
mau que vai passar. Mas nem sempre ele passa e, de sonho mau em sonho mau, são
os homens que passam?”
Como fazer
para se livrar deste pesadelo? Sobretudo não fiquemos anestesiados, amordaçados
por esta “angústia muda”. Fora com este mal maior, fora a estupidez que
desencoraja o uso de máscaras, que dificulta o combate ao vírus, que mata e
deixa morrer, e ainda insiste!
Vacinemo-nos
uma vez por todas! Vacinemo-nos também para expulsar de nós o mal maior, que
vai muito além do agente infeccioso microscópico, que gangrena nosso “corpus
social”.
Porque não
basta identificar o sequenciamento do vírus que nos impõe suas leis e viola
nossos direitos, devemos agora encontrar o antídoto. Vacina sim! Ele não! Ele
nunca mais! Fora Bolsonaro! Caso contrário, nos tornaremos a nossa própria
peste.
“A partir desse momento, pode-se dizer que a peste se tornou um problema comum a todos nós”.
Nenhum comentário:
Postar um comentário