Nada está acima
do amor a Deus e aos pobres, nos quais ele vive!
A cena oferecida
hoje à nossa meditação neste domingo, mesmo parecendo bastante tranquila e
isenta de provocações, faz parte das armadilhas que os chefes do judaísmo
colocam a Jesus com a intenção de acusá-lo, e das tensas disputas teológicas e
políticas com ele. Não esqueçamos que estas perguntas e discussões ocorrem no
ambiente do templo, do qual Jesus já havia expulsado os comerciantes (cf.
11,13-19) e fora duramente questionado pelos doutores da lei e pelos anciãos.
Este é o último confronto de Jesus antes de ser preso, ser submetido a um
julgamento falso e viciado que o condenou à morte.
O temor, a
reverência e o amor a Deus, qualquer que seja a imagem que se faz dele, faz
parte das prescrições de todas as religiões. Quando falamos em amor, queremos
expressar, em geral, afeição ou apego voluntário a algo ou alguém. A tradição
judaica enfatiza o aspecto de temor ou respeito devido a Deus, que deve estar
muito acima de outras reverências. Este amor está no contexto da aliança que
Deus tomou a iniciativa de selar com seu povo, e se mostra na prática concreta
dos mandamentos que decorrem dessa aliança. Por isso, é um amor forte,
inteligente, consequente e fiel.
No centro da
disputa de hoje está a questão do primeiro ou do principal mandamento da ética
judaica. Quem questiona Jesus e o chama ao debate é um mestre da lei, que
disfarça sua intenção ardilosa falando num tom bastante simpático. Ele pergunta
pelo “primeiro de todos os mandamentos”. Jesus responde no horizonte de uma
ortodoxia cautelosa, mas se atreve a juntar ao mandamento de amar a Deus (cf.
Dt 6,4-13), conhecido e aceito por todas as tradições do judaísmo, o mandamento
de amar ao próximo (cf. Lv 19,18). “Não existe outro mandamento maior que
estes!” Daquilo que estava dividido Jesus faz uma unidade!
É importante
perceber ainda que o mandamento “ame ao seu próximo como a si mesmo” não vem
isolado, mas está situado num conjunto mais amplo de normas que se opõem às
práticas de opressão, exploração e indiferença (cf. Lv 19,9-18), que segundo
Jesus, são violadas abertamente pelos escribas. Fazemos um grande mal quando
ignoramos esse contexto e essa inclusão. Para Jesus, o céu precisa vir à terra,
e a terra é o único caminho para o céu. Não há lugar para escapismos e
espiritualismos de qualquer espécie.
Na verdade, não
existem dois amores que se limitam um ao outro, mas um único amor com duas
expressões. Para os cristãos, não existe nada – lei, costume ou instituição –
que esteja acima do amor concreto a Deus e à pessoa humana necessitada, na qual
Deus vive. E esse amor se desdobra e concretiza em desejar o bem, dizer o bem e
fazer o bem. Em outras palavras, amar significa reconhecer e defender a
dignidade do outro como outro, dar primazia ao atendimento de suas necessidades
em relação à nossa comodidade, à nossa honra e aos nossos interesses. Isso está
acima e vem antes da oração, das devoções, do culto e dos sacrifícios.
O doutor e mestre
a lei parece concordar com Jesus, quando diz: “Muito bem, mestre. Na verdade, é
como disseste”. Por isso, recebe de
Jesus o reconhecimento e uma promessa: “Tu não estás longe do Reino de Deus.”
Mas, segundo Jesus, os fariseus e mestres da lei violam constantemente estes
dois mandamentos, colocando acima deles outros costumes. Ao dizer ao escriba
que ele “não está longe do Reino de Deus”, Jesus deixa claro que a simples
ortodoxia não é suficiente, e deve ser acompanhada pela justiça com o próximo.
E Jesus não o convida a seguir seus passos.
O texto termina dizendo que ninguém mais se
atrevia a apresentar armadilhas a Jesus. Ele venceu todos os seus opositores:
expulsou os comerciantes do templo, enfrentou as ciladas de fariseus e saduceus
sem cair nelas, questionou a legitimidade e os privilégios dos chefes, assumiu
seu papel de mestre. Em síntese, “amarrou o homem forte e reconquistou sua
casa” (cf. Mc 3,27). No caminho da conversão precisamos decidir quem manda em
nós: Jesus e seu Fvangelho da fraternidade, ou o Mercado, que incensa o individualismo
consumista e predatório e vive do angue produzido pela intolerância e pela
agrassividade.
Jesus,
amor apaixonado de Deus, solidário amante da humanidade! Ajuda-nos a manter a
primazia do amor a Deus, que em ti nos adotou como filhos e filhas,
sacramentalizado na afirmação da dignidade dos pobres e vitimados nos quais ele
vive. Que não nos contentemos em estar perto do Reino pela nossa ortodoxia, mas
entremos nele e nos deixemos conduzir por ele em tudo o que somos e fazemos.
Faz-nos capazes de amar com perspicácia, força e paixão, pois só assim amaremos
de verdade. Amém! Assim seja!
Itacir
Brassiani msf
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