domingo, 31 de agosto de 2025

Jesus de Nazaré, uma boa notícia

A Boa Notícia de Deus desconhece as fronteiras

823 | 01 de setembro de 2025 | Lucas 4,16-30

Damos por concluída nossa escuta e meditação a partir do evangelho segundo Mateus, e iniciamos hoje, no início do mês que dedicamos à Palavra de Deus, com o evangelho segundo Lucas. E o texto indicado para esta segunda-feira é exatamente o anúncio programático com o qual Jesus inicia e explicita sua missão pública em sua própria terra. Esse contexto confere uma importância especial ao texto.

O enfrentamento das tentações em pleno deserto havia possibilitado a Jesus uma espécie de treinamento na escuta da Palavra de Deus, e isso é confirmado na cena que nos ocupa hoje. Jesus entende e explicita sua identidade e missão, seu projeto de vida, recorrendo à palavra profética, muito cara ao seu povo. Ele vai à sinagoga para ler a profecia de Isaías. E isso não é casual, mas costumeiro na vida de Jesus. Ele cultiva uma interessante familiaridade com a Palavra de Deus.

Essa é a primeira ação de Jesus sob o impulso do Espírito que repousara sobre ele por ocasião do batismo e o conduzira no deserto. Mas a cena descreve também a primeira rejeição e o primeiro atentado que se abate sobre ele. E isso porque Jesus não se subordina às expectativas e interesses do seu próprio povoado, nem da sua religião e da sua etnia. A Palavra de Deus é como espada que divide.

Com a ajuda do profeta Isaías, Jesus sublinha sua compreensão da missão que Deus confiou a ele: realizar a misericórdia de Deus, e não sua vingança contra o povo. Os verbos do texto citado ilustram claramente isso: anunciar e proclamar uma boa notícia, recuperar e libertar os oprimidos. Depois de ler o texto, Jesus faz um comentário conciso e lapidar: “Hoje se cumpre isso que vocês acabam de ouvir!”

Seus conterrâneos reagem inicialmente com entusiasmo, mas logo manifestam frustração, quando tomam conhecimento que o seu messianismo não é patriótico nem excludente e constatam sua origem e seus vínculos familiares. O entusiasmo se transforma em decepção, e a decepção se transforma em violência: Jesus é ameaçado e expulso da cidade pelos seus compatriotas.

Desde o início da sua missão Jesus deixa claro que a compaixão de Deus desconhece fronteiras, não se rege pela meritocracia, nem depende de publicidade. Por isso, Jesus recorda dois episódios da história que seus ouvintes conhecem: Elias abençoou uma viúva estrangeira, e Eliseu deu prioridade a um leproso também estrangeiro.

                          

Sugestões para a meditação

§ Retome pacientemente o episódio narrado por Lucas, acompanhando tudo com os olhos da imaginação

§ Sua compreensão sobre o Evangelho do Reino de Deus é essa de Jesus: uma boa notícia libertadora para todas as vítimas?

§ Você já conseguiu superar a ideia de que o Evangelho é doutrina que premia quem merece, e protege apenas cristãos, católicos e brancos?

sábado, 30 de agosto de 2025

A alegria é impagável

A verdadeira alegria é servir sem nada esperar

822 | 31 de agosto de 2025 | Lucas 14,1-14

Jesus não desperdiça nenhuma ocasião para ensinar. Hoje ele desenvolve a corajosa lição na casa de um dos chefes dos fariseus, logo depois de afirmar que as necessidades de qualquer pessoa estão acima de todas as leis. Ele propõe uma inversão radical na escala dos valores da sociedade e da religião, e não se cala nem mesmo na casa de uma autoridade, em pleno jantar para o qual havia sido convidado.

Jesus evita ficar na periferia ou na superfície das questões essenciais. Seu ensino é sobre uma questão fundamental da vida cristã: quem é o maior ou o primeiro, o mais importante ou notável na vida cristã? Jesus começa pela crítica ao orgulho e aos privilégios e passa à questão dos beneficiários da nossa atenção. Ele conhece o costume de privilegiar, tanto nas festas quanto nas decisões e projetos políticos, os familiares, parentes, amigos e vizinhos. Para Jesus, este é um círculo muito estreito.

Jesus começa falando aos hóspedes que estão com ele à mesa. Diz que “todo aquele que se exalta será humilhado, e quem se humilha será exaltado”. Depois, dirige-se ao anfitrião questionando a sua expectativa de retribuição. Orgulho e a busca de retribuição são posturas nada evangélicas. Não podemos ceder a honras e vaidades, mas buscar o lugar reservado aos servidores, superar a velha prática de servir, apoiar e defender prioritariamente as pessoas e instituições que a favorecem.

Jesus propõe a inversão da ordem dos grupos e pessoas que costumam aparecer no topo das nossas listas de honoráveis, presenças infalíveis entre os convidados das nossas festas e solenidades: os pobres, aleijados, e cegos devem ser os primeiros! É claro que Jesus não quer estragar nossa festa, mas questionar a estreiteza das fronteiras que traçamos entre ‘nós’ e ‘eles’, entre os ‘nossos’ e os ‘outros’.

A verdadeira felicidade consiste em dar generosamente. A busca de privilégios e compensações é tão desgastante quanto infantilizadora: o caminho que dá acesso a eles costuma passar pela subserviência, e é acompanhado pelo medo do anonimato e pelo apego doentio aos bens e títulos. Para quem segue o caminho de Jesus, a recompensa é prometida para ressurreição dos justos.

A felicidade que ninguém pode roubar é aquela que conquistamos entrando pela estreita porta da humildade, da generosidade e da solidariedade. É a alegria profunda que experimentamos quando ouvimos da boca dos porta-vozes da vida o convite: “Amigo, vem para um lugar melhor!”

 

Sugestões para a meditação

§ Observe atentamente a atitude e os pensamentos dos convidados à mesa, e, especialmente, o olhar e as palavras de Jesus

§ Que lugar as pessoas mais pobres e com posses limitadas têm em nossos eventos e projetos?

§ Examine com sinceridade e profundidade o que motiva aquilo que você faz: a gratuidade ou a expectativa de retorno?

Vocação laicall

Leigas e leigos católicos: uma maioria sem expressão?

As comunidades católicas dedicam a quarta semana do mês de agosto à reflexão sobre a vocação e a missão dos leigos e leigas na Igreja e no mundo. Os vários séculos do controle da Igreja concentradas pelas mãos do clero (e dos religiosos) produziu um laicato obediente, silencioso, passivo e eclesialmente inexpressivo. E acabamos acostumados com isso: o clero gera a Igreja e a governa, ensina e fala em nome dela, e, finalmente, decide por ela.

Mas seria este o único modo possível de organização e funcionamento da Igreja? Como não lembrar aqui a inovação surpreendente e auspiciosa operada pelos apóstolos no início do cristianismo? Todos os membros da Igreja, reunidos no Espírito, tomavam juntos as decisões mais importantes. E a consciência de que não havia diferença entre judeus e pagãos, homens e mulheres, senhores ou escravos, fazia da fraternidade a ‘diferença’ cristã.

Citando o Papa Francisco, o recente Sínodo dos Bispos afirmou que a sinodalidade é o quadro interpretativo mais adequado para compreender o ministério hierárquico (cf. § 33).  Creio que a natureza sinodal da Igreja, que coloca nesta perspectiva o mandato que Cristo confia a todos os fiéis, é também a perspectiva mais adequada e promissora para compreender a identidade e a missão dos leigos e leigas na Igreja e no mundo.

O ponto de partida dessa compreensão é a dignidade do Povo de Deus, do qual todos os fiéis são membros. “Não há nada mais elevado do que esta dignidade, igualmente dada a cada pessoa”. Não há nada maior que a alegria de ser povo. Pelo batismo, somos revestidos de Cristo e enxertados nele. Na identidade e na missão de cristãos está contida a graça que está na base da nossa vida e nos faz caminhar juntos como irmãos e irmãs” (cf. § 21).

Na perspectiva do Sínodo, “todos os Batizados recebem dons para partilhar, cada um segundo a sua vocação e a sua condição de vida”. As diversas vocações eclesiais são “expressões múltiplas e articuladas do único chamamento batismal à santidade e à missão”. A variedade dos carismas suscitada pelo Espírito Santo tem como objetivo a unidade da Igreja e a missão nos diversos tempos, lugares e culturas (cf. § 57).

Por isso, os leigos e leigas pedem à hierarquia que não os deixe sozinhos, que sua atuação no mundo cultural, social e político seja reconhecida pelo que é: “ação da Igreja com base no Evangelho, e não uma opção privada”, e que sejam efetivamente apoiados e reconhecidos. Isso pede que as comunidades e a hierarquia se coloquem ao serviço da missão que eles realizam na sociedade, na vida familiar e profissional, e não o inverso (cf. § 59).

O reconhecimento e a participação das mulheres na Igreja é um desafio especial. O Sínodo afirma que “não há razões que impeçam as mulheres de assumir funções de liderança na Igreja”, pois “não se pode impedir o que vem do Espírito Santo”. Por isso, a questão do acesso das mulheres ao ministério diaconal não está fechada. É preciso continuar o discernimento a este respeito (cf. § 60). O Sínodo “deixa a bola picando” na área das dioceses!

É preciso remover os obstáculos que dificultam a plena participação dos leigos na vida e missão da Igreja, assegurando: participação ampla em todas as fases dos processos de decisão; mais acesso a cargos de direção nas instituições eclesiásticas; aumento do número de leigos no ofício de juízes nos processos canônicos; reconhecimento da dignidade dos funcionários da Igreja e suas instituições e respeito dos seus legítimos direitos (cf. § 77).

Dom Itacir Brassiani msf

Bispo Diocesano de Santa Cruz do Sul

sexta-feira, 29 de agosto de 2025

O que você faz dos talentos?

s confia a nós sua missão de salvar e libertar

821 | 30 de agosto de 2025 | Mateus 25,14-30

Deus nos confia muito mais que uma doutrina a ser defendida e ensinada, ou que uma simples mensagem a ser transmitida. Ele coloca em nossas mãos a tarefa de dirigir o curso da história e nela realizar seu Projeto de Vida para todos, seu sonho e sua vontade: aquilo que ele chama de Reino de Deus. Nem mais, nem menos que isso. Jesus ilustra isso com a parábola dos talentos.

É o próprio Deus que chama seus administradores, entrega a eles seus bens e espera que cada um corresponda a esta confiança de acordo com suas próprias possibilidades. Sua confiança é tão absoluta que ele viaja sem nenhuma preocupação. Deus sabe em quem coloca sua confiança, e espera que cada servidor dê o melhor de si. Parece que ele se recusa a contar somente com os bons.

Mas é importante perguntar: o que ele espera daqueles que nele acreditam? Seria a simples multiplicação de horas de adoração, de doutrinas abstratas, de leis pesadas e de morais implacáveis? Eis o que ele pede e espera: “Vão e façam discípulos meus em todos os povos! Assim como o Pai enviou a mim, eu envio vocês!”

Trata-se de anunciar e dinamizar o Reino de Deus acolhendo os pobres, reconciliando os inimigos, consolidando a justiça, amando sem distinção e sem impor condições. E Deus espera que a confiança depositada em nós dê frutos! O que ele nos confia é um fermento, e o fermento cumpre seu destino somente quando se mistura à farinha e a faz a massa crescer. Ele nos confia o dinamismo do seu amor, e o amor morre quando é só um sentimento.

É verdade que o que se espera de nos é uma responsabilidade serena e sóbria, mas isso não significa que podemos ser impunemente passivos ou medrosos. Há aqueles que agem de forma errada, e por medo. Um dos administradores diz que age por medo e respeito, mas, na verdade, é guiado pelo medo e pela preguiça! É um servo mau e preguiçoso, que renuncia às exigências da sua missão, que não quer sujar as mãos na vida concreta.

A fé sempre nos leva a enfrentar desafios: a encarnar a esperança no coração do mundo; a amar e servir a todos e sempre, começando pelos últimos da pirâmide social; a pagar o mal com o bem; a encontrar soluções humanas e viáveis para os problemas humanos aparentemente insolúveis.

 

Sugestões para a meditação

§ Como você, sua família e sua comunidade tem feito com o sonho de Jesus, que é salvar e libertar todas as criaturas?

§ Sua vida e sua missão têm sido guiadas pela fé, pela confiança e pela responsabilidade ou pelo medo e pela ortodoxia?

§ Você percebe na sua comunidade de fé sinais da preocupação de conservar a “pureza” da fé em vez de torná-la libertadora?

quinta-feira, 28 de agosto de 2025

Martírio de João Batista

João Batista precede Jesus também no martírio

820 | 29 de agosto de 2025 | Marcos 6,17-29

A presença de João Batista nos evangelhos evidencia seus vínculos com Jesus Cristo. Além de preparar os caminhos para a missão de Jesus, o profeta do deserto e do rio Jordão antecipa em si mesmo o desfecho da missão de Jesus. Suas posições claras contra os desvios éticos do seu tempo, e a coragem com que enfrenta os poderosos de plantão, valeram-lhe a perseguição, a prisão e a decapitação.

No texto de hoje, o protagonista é Herodes. Ele é judeu, mas, como todas as elites sociais e políticas, cumpre a Lei da sua religião apenas quando lhe convém. Ele tem medo de Jesus, e pensava que ele é uma espécie de reencarnação de João Batista, a quem havia mandado matar. O delito de Herodes vai além do roubo da mulher do seu irmão e da conivência com a morte de João Batista. A presença dos grandes da Galileia na sua festa de aniversário revela a quem ele serve, e de quem depende.

Marcos nos apresenta uma caricatura deveras sarcástica de Herodes e das elites que o apoiam. As festas que promoviam davam asas às paixões incontroláveis e aos seus caprichos assassinos. Entre eles, como em toda a realeza, o casamento tinha fortes conotações de aliança para adquirir sustentação política. O juramento ou promessa de Herodes à filha da sua concubina revela o modo escuso como as elites tomam suas decisões políticas: matam para salvar a própria honra.

Diante de Herodes e seus bajuladores, João não se intimida, nem se cala, mas não é um homem apenas preocupado com o culto ou com a moralidade dos costumes. Uma leitura atenta dos evangelhos nos mostra um profeta engajado num movimento de mudança, no corte raso das instituições que encobrem ou sustentam injustiças e violências, e numa partilha radical. É nesse horizonte que ele enfrenta Herodes.

Marcos situa a narração do martírio de João Batista no capítulo 6 do seu evangelho, onde a discussão é sobre a identidade de Jesus. Com isso, o evangelista evidencia o destino de todo aquele que anuncia e testemunha uma nova ordem social e religiosa. E, além de uma antecipação do destino de Jesus, o destino de João Batista soa aos discípulos de todos os tempos e latitudes como um forte alerta. João Batista é precursor de Jesus também no seu martírio.

 

Sugestões para a meditação

§ Perceba a força política, social e religiosa da atuação corajosa de João Batista, profeta da Judeia que estende sua missão à Galileia

§ Como você e sua comunidade cristã tem se posicionado diante de um governo belicista e contrário aos avanços sociais no Brasil?

§ Como podemos evitar polêmicas religiosas parciais e estéreis, mas sem abandonar a necessária dimensão política da fé?

§ Você tem medo dos conflitos provocados pela atuação profética dos cristãos em nome do Evangelho? Por que? 

quarta-feira, 27 de agosto de 2025

Quando será?

Amemos e sirvamos, para que haja uma amanhã

819 | 28 de agosto de 2025 | Mateus 24,42-51

Estamos refletindo sobre as críticas e denúncias de Jesus contra os dirigentes do templo e do judaísmo como um todo. Depois de uma longa e dura crítica aos fariseus e mestres da lei, circulando e pregando em Jerusalém, nas proximidades do templo, Jesus anuncia a total destruição do templo e do poder dos impérios, assim como dos sinais e sofrimentos que a acompanham (23,33 a 24,35).

Mas Jesus não cede a qualquer especulação, e não fala da data em que isso acontecerá. Em vez disso, Jesus chama seus discípulos à vigilância e estar sempre devidamente preparados. Parece que, com o passar do tempo e com a demora da consolidação do Reino de Deus, a comunidade dos discípulos corria o risco de cair na excessiva penitência, ou então desanimar e relaxar.

Jesus insiste que é preciso viver o dinamismo discreto, mas efetivo, do Reino de Deus em meio a situações complexas e difíceis. Ele jamais deu a entender que a aventura de seguir seus passos e de participar da sua missão seria um mar de rosas. Esperar com lucidez o reino de Deus significa vigiar mantendo a atitude de serviço, fecundada e sustentada por essa utopia.

Para ilustrar a atitude correta, Jesus recorre à metáfora do ladrão e à parábola do servo fiel. Como o ladrão, o reino de Deus e Jesus chegam quando ninguém espera. Por isso, os discípulos precisam se comportar como o servo fiel e sensato, que, na ausência do patrão, cumpre fielmente sua missão de servir seus companheiros.

Ao mesmo tempo, Jesus reprova a postura do empregado que, diante da demora do patrão, pensa unicamente em seus próprios interesses e age com violência em relação aos demais. Tais discípulos são equiparados aos hipócritas (fariseus e mestres da lei) que Jesus denunciara anteriormente.

Os discípulos sensatos são aqueles que ouvem e praticam o Evangelho, e, assim, constroem suas casas sobre a rocha. E isso significa importar-se com a vida e o bem-estar do próximo, mantendo acesa a chama da esperança, mesmo quando parece que nada acontece ou nada vale a pena.

 

Sugestões para a meditação

§ Retome calmamente as duas comparações que Jesus oferece sobre a correta atitude em tempos de espera e demora

§ O que você pode fazer para ajudar a evitar que as comunidades cristãs fujam da sua responsabilidade de mudar o mundo e antecipar o reinado de Deus e se refugiem no culto e no moralismo?

§ Como você, sua família e sua comunidade viveram o longo tempo de isolamento e espera que da pandemia do Covid 19?

§ Lembre o exemplo de tantas pessoas, de ontem e de hoje, que esperaram e preparam responsavelmente o futuro esperado

Vocação à vida religiosa consagrada

 Vida Religiosa Consagrada: conversão e expectativa!

As comunidades cristãs católicas dedicam a terceira semana do mês de agosto à oração e reflexão sobre a vocação à vida religiosa consagrada. Esta forma de vida reúne homens e mulheres que, mantendo sua condição leiga, se consagram a Deus e vivem como eremitas ou em comunidades, tentando levar a sério o Evangelho de Jesus Cristo e, assim, ser sinais eloquentes de alguns aspectos essenciais do seguimento de Jesus Cristo, com o qual todos os cristãos estão comprometidos.

Ainda hoje há quem pergunte se a vida religiosa consagrada é uma espécie de sacrifício para reparar ou pagar os males praticados pela humanidade, se ela seria o oferecimento de algumas vidas puras a Deus para reparar os muitos males praticados pela maioria do povo. Parece que essa ideia, que vigorou em algumas espiritualidades medievais, ainda não desapareceu totalmente da mente de alguns setores sociais e eclesiais.

O sentido fundamental da vida religiosa consagrada não está na penitência ou na reparação, mas na conversão. Quem se consagra a Deus torna público seu compromisso com a conversão permanente e sempre mais profunda ao Evangelho de Jesus Cristo e se alista na construção efetiva do Projeto de Deus, que é vida plena para todos. Não se trata de uma simples conversão de costumes, mas de um projeto radical de vida.

A maioria dos fundadores entendeu sua vocação nesta perspectiva. Por isso, as pessoas consagradas precisam se perguntar se suas opções, atitudes e compromissos práticos, pessoais ou comunitários, narram de modo claro e convincente sua conversão ao reino de Deus, se demonstram que elas estão percorrendo um caminho diverso daquele da competição predatória proposta pela cultura neoliberal que predomina hoje.

Mas a vida religiosa tem também um sentido de expectativa e preparação. Com a própria vida, as pessoas consagradas e suas comunidades proclamam a transitoriedade de todas as conquistas e realizações históricas e convocam os homens e mulheres a criarem as condições necessárias para acolher Jesus Cristo e ensaiar um mundo no qual caibam todos os seres humanos e a convivência pacífica e solidária seja possível.

Ao seguimento histórico de Jesus Cristo e à conversão ao seu Evangelho correspondem uma abertura e uma expectativa radical daquilo que ainda é objeto de desejo e de esperança. A vida religiosa está orientada ao fim deste mundo e ao "outro mundo possível".  É em relação a esse horizonte sonhado, proclamado e cantado que as pessoas consagradas desejam plasmar sua própria vida e anunciar sua mensagem. Vivendo assim, recordam vivamente aquilo que desejam todos as pessoas que aderem a Cristo.

Levar a sério esta dimensão escatológica da vida religiosa consagrada e assumi­-la no coração da própria existência significa viver em tensão permanente para um futuro ainda não realizado, viver de esperança e sem contar com sólidas seguranças, assumir a provisoriedade e a incompletude de qualquer comunidade e de todas as lutas e conquistas. Em outros termos, significa viver como peregrinos de esperança, sem cair na tentação de sentar sobre os louros e glórias de um passado, frequentemente idealizado.

Dom Itacir Brassiani msf

Bispo Diocesano de Santa Cruz do Sul

terça-feira, 26 de agosto de 2025

Ainda sobre a hipocrisia

O cristão precisa ser coerente e transparente

818 | 27 de agosto de 2025 | Mateus 23,27-32

Nos últimos dias, estamos refletindo sobre as críticas e denúncias de Jesus contra os mestres da lei e fariseus. O evangelista fala dos fariseus, mas pensa nos discípulos de Jesus e nas comunidades dos anos 80 da era cristã. Ele quer alertar e chamar à conversão e à coerência os discípulos de todos os tempos. No texto de ontem, Jesus já apresentou uma série de “ais” ou maldições contra os líderes religiosos.

No texto de hoje, temos a sexta e a sétima “maldições”, que dão continuidade e completam as cinco primeiras. Na primeira das duas, Jesus denuncia a incoerência entre a aparência que ostentam e a realidade concreta da vida dos escribas e fariseus. Na segunda, afirma que, mesmo maquiando e buscando mil disfarces, eles continuam a tradição assassina dos seus antepassados, perseguindo e eliminando os profetas para depois chorar na sepultura deles ou incensa-los cinicamente.

Jesus usa uma imagem bem conhecida dos seus conterrâneos e contemporâneos. Acuados pela busca da quase impossível pureza cultual, os judeus pintavam as sepulturas para que ninguém corresse o risco de se contaminar pisando inadvertidamente sobre os cadáveres. Mas Jesus muda um pouco o sentido dessa imagem, e diz que os fariseus e mestres da lei são como sepulturas enfeitadas para esconder o mal e a podridão que eles mesmos alimentam e guardam dentro de si.

Além disso, ao enfeitar as tumbas dos profetas e recordar o destino deles, em vez de fazê-lo para honrar os profetas fazem-no para esconder a violência com a qual perseguem os profetas do seu tempo, João Batista e Jesus à frente, e os discípulos depois. Para Jesus, com esta prática eles não apenas continuam a história de violência dos antepassados, mas a completam e levam ao ponto mais alto. Por isso, Jesus associa as suas cidades aos lugares mais detestados pela memória histórica do judaísmo, símbolos de fechamento e violência: Tiro, Sidônia e Sodoma.

Ser cristão é ser discípulo de Jesus, assimilar sua escala de valores e seu modo de viver. A preocupação fundamental de quem se põe atrás de Jesus não pode ser a pureza ritual e exterior, mas a pureza de mente e de coração, a retidão nas decisões e projetos que assume. Afinal, Jesus não pede mais orações, sacrifícios e cultos, mas uma justiça maior que a dos fariseus. Ser cristão é ser diferente, transparente e coerente com Jesus Cristo e seu Evangelho. O alerta está dado!

 

Sugestões para a meditação

§ Procure ler ao contrário: o que Jesus e o Reino de Deus pedem ou esperam daqueles que seguem este caminho

§ Seguindo o que fala Jesus, você seria capaz de identificar as principais incoerências e contradições dos líderes cristãos e políticos de hoje?

§ Você seria capaz de identificar e dar nome às contradições e incoerências que rondam você, sua família e sua comunidade em relação ao Evangelho de Jesus?

segunda-feira, 25 de agosto de 2025

Hipocrisia

Nada é mais importante que a misericórdia!

817 | 26 de agosto de 2025 | Mateus 23,23-26

Estamos acompanhando a atuação de Jesus em Jerusalém, onde ele se confronta com o templo e é atacado pelos sacerdotes, pelos mestres da lei e pelos fariseus. Jesus faz uma série de críticas aos fariseus e escribas, que começa no versículo 1º do capítulo 23: eles não fazem o que ensinam e, além disso, impõem pesados fardos ao povo e estão atrás de reconhecimento e notoriedade.

O texto de hoje faz parte de uma série de sete “maldições” ou críticas que Jesus dirige a eles por excluírem o povo do Reino de Deus, por fazerem dos convertidos cidadãos e crentes piores que eles mesmos, por serem guias cegos e por falsificarem a Palavra de Deus em benefício de seus interesses. No pequeno texto de hoje temos a quarta, a quinta e a sexta maldições ou críticas de Jesus a eles.

Na quarta maldição, Jesus acusa os escribas e fariseus de praticar e ensinar uma visão parcial da vontade de Deus, pois eles fazem e ensinam muitas pequenas coisas, mas ignoram a justiça e a misericórdia, que estão no centro do coração de Deus. Assim, eles não são como cegos que se oferecem para guiar outros cegos. Dão importância aos detalhes e fazem menos caso da compaixão.

A quinta e a sexta maldição acusam esses líderes de incoerência e hipocrisia, pois vivem de aparências e disfarçam a ambição, o roubo e a violência que se escondem dentro deles que movem tudo o que fazem. Roubo significa pilhagem violenta, e cobiça é descontrole na posse, no sexo e nas acusações injustas. Segundo Jesus, o centro da vida dos fariseus e doutores da lei está nas coisas e não nas pessoas.

A dura crítica de Jesus é originalmente dirigida aos fariseus e mestres da lei, mas, muitos anos depois, quando Mateus escreve o evangelho, quem está em questão são os discípulos e discípulas de Jesus. É uma crítica recordada e atualizada “para o consumo interno” da comunidade, visando a conversão e a coerência de vida dos discípulos do final do primeiro século e de hoje.

Na condição de discípulos missionários, precisamos estar atentos ao risco da incoerência e da hipocrisia, pois elas não são privilégio dos fariseus. Ou será que às vezes, por trás de palavras formais e gentis, não se esconde um arrogante desprezo? E será que tantas picuinhas e regras que apregoamos não matam a compaixão?

 

Sugestões para a meditação

§ Procure ler ao contrário: o que Jesus e o Reino de Deus pedem ou esperam daqueles que seguem este caminho

§ Seguindo o que fala Jesus, você seria capaz de identificar as principais incoerências e contradições dos líderes cristãos e políticos de hoje?

§ Você seria capaz de identificar e dar nome às contradições e incoerências que rondam você, sua família e sua comunidade em relação ao Evangelho de Jesus?

domingo, 24 de agosto de 2025

Cegos desorientados

A fé não é maquiagem para salvar as aparências!

816 | 25 de agosto de 2025 | Mateus 22,13-22

No capítulo 23 do evangelho segundo Mateus, Jesus de Nazaré instrui seus discípulos no caminho do Reino de Deus criticando e desmascarando o modo de viver e ensinar a fé dos fariseus e doutores da lei. Depois de pedir que seus discípulos e discípulas não sejam como eles (cf. 23,1-12), Jesus os enfrenta proclamando sete maldições ou “ais” num tom claramente polêmico. No texto de hoje, temos as três primeiras expressões dessa espécie de julgamento escatológico.

As duas primeiras ‘maldições’ destacam o resultado danoso da influência da elite religiosa sobre a vida do povo de Deus. Na primeira, eles são deslegitimados porque não acolhem o Reino de Deus anunciado por Jesus e, por seu ensino, impedem que outros entrem no seu dinamismo. E isso acontece porque impõem sobre o povo o pesado fardo de leis e prescrições das quais excluem a misericórdia, a justiça e a fé.

A segunda afirmação crítica também enfatiza o impacto prejudicial da prática e do ensino religioso dos doutores da lei e dos fariseus sobre outros. A razão é que eles não compreendem a vontade de Deus e, por isso, convertem as pessoas ao judaísmo, mas são incapazes de apresentar a elas um caminho de vida coerente com a fé. Como eles não conseguem ou se recusam a reconhecer em Jesus o enviado de Deus, acabam levando os convertidos a fazerem o mesmo.

Na terceira lamentação, Jesus muda o foco, que não é mais o mal causado nos outros, mas a própria prática religiosa atabalhoada da elite do judaísmo. Jesus inicia cada uma das duas críticas citando as próprias palavras dos fariseus e escribas, e condena o mau uso da prática popular do juramento, como uma espécie de atalho para desviar das exigências da vontade de Deus. O juramento também costuma esconder a falta de credibilidade e a enviesada de quem jura.

Jesus ridiculariza as distinções casuísticas e arbitrárias, assim como as filigranas do ensino dos fariseus e escribas, um ensino e uma prática que não têm nada a ver com o Reino de Deus. Eles não passam de guias cegos que não fazem mais que desencaminhar e colocar em risco a salvação de quem se deixa guiar por eles. Na lógica do Reino de Deus não faz sentido distinguir entre juramentos que obrigam e juramentos que não obrigam, pois Deus é um só, e está presente em tudo.

 

Sugestões para a meditação

§ Releia atentamente as três críticas de Jesus em relação aos fariseus e doutores da lei, e procure entender exatamente o que Jesus está reprovando neles

§ Hipócritas são as pessoas que “recitam um papel”, como os atores que representam um personagem, mas não são aquilo que representam, e guias cegos são uma espécie de contrassenso e um perigo muito sério

§ Deixe que Jesus avalie suas práticas religiosas e sua pregação: será que não estão eivadas de hipocrisia, de distinções sutis que mais atrapalham que ajudam?

sábado, 23 de agosto de 2025

São muitos os que se salvam?

A perseverança no amor nos mantém no caminho

815 | 24 de agosto de 2025 | Lucas 13,22-30

O evangelho de hoje nos apresenta uma cena na qual alguém questiona Jesus em relação ao número de pessoas que se salvam, à quantidade daquelas que chegam à plena realização humana e espiritual. Quem pergunta não se interessa pelo caminho que leva à salvação, mas pelo número dos que seriam beneficiados por ela.

Na sua resposta, Jesus sublinha que a salvação não dispensa o esforço pessoal contínuo. O caminho da salvação passa pela exigente conversão. Jesus destaca também que este engajamento é tarefa para o tempo presente, e não pode ser adiado indefinidamente. Comparando o processo de salvação a uma porta estreita, Jesus ressalta que chegará o tempo em que o dono da casa fechará a porta e não será mais possível entrar. Portanto, é preciso desfrutar com responsabilidade das possibilidades de crescimento que cada momento nos oferece. O tempo propício da salvação é agora, e aqui é o lugar para semear Reino de Deus e ajudá-lo a florescer.

Há gente que pensa que somente a religião pode salvar, que as pessoas realizadas e plenamente humanas ou santas seriam aquelas que rezam bastante, que observam as prescrições religiosas, que regem a vida por uma moralidade estrita, que vivem neste mundo suspirando pelo céu. Mas a religião não pode se divorciar da ética, nem do mundo, inclusive das coisas materiais. A religião propõe uma forma específica de viver no mundo e de se relacionar com as pessoas e coisas. Àqueles que reduzem a religião a um conjunto de prescrições Jesus adverte: “Não sei de onde sois...” Em lugar deles, entram no Reino de Deus muitos que eles ignoram e desprezam.

Respondendo à pergunta sobre o número dos que se salvam, Jesus diz que “virão muitos do oriente e do ocidente, do Norte e do Sul, e tomarão lugar à mesa do Reino de Deus”. Em outras palavras: alguns daqueles que as religiões e instituições descartam ou colocam em último lugar, aos olhos de Deus são os mais importantes e ocupam os primeiros lugares. Todos os homens e mulheres são chamados à salvação e, de um modo que só o Espírito de Deus sabe, participam do mistério pascal de Jesus Cristo. E, mais ainda: “Há últimos que serão primeiros, e primeiros que serão últimos”! Esta é uma verdade que coloca em cheque nossos pretensos méritos e certezas. Quem está de pé, cuide para não cair, diz Jesus noutro lugar.

 

Sugestões para a meditação

§ Retome o episódio, não perca as nuances da pergunta e das respostas de Jesus; saboreie aquilo que mais ressoa ou atrai você

§ Em que medida também nós, Igreja de hoje, estamos mais preocupados com o número de fiéis que “entram” na Igreja que com o testemunho?

§ Será que ainda conservamos uma mentalidade segundo a qual pessoa boa é a que frequenta as missas e paga o dízimo?

§ Como entender hoje a imagem da “porta estreita”, evitando que signifique exclusão daqueles que creem diversamente de nós?