quarta-feira, 12 de fevereiro de 2014

Ir. Dorothy Stang

“Minha arma é a Palavra de Deus...”

Hoje recordamos os 9 anos do assassinato da Ir. Dorothy Stang, em Anapu (PA). Irmã Dorothy Mae Stang era uma religiosa norte-americana naturalizada brasileira. Pertencia às Irmãs de Nossa Senhora de Namur, congregação religiosa fundada em 1804. Iniciou sua missão no Brasil no ano de 1966.
Desde a década de 1970, Irmã Dorothy estava presente na Amazônia,  junto aos trabalhadores rurais da Região do Xingu. Sua atividade pastoral e missionária buscava a geração de emprego e renda com projetos de reflorestamento em áreas degradadas, junto aos trabalhadores rurais da área da rodovia Transamazônica. Seu trabalho focava também a minimização dos conflitos fundiários na região.
A religiosa participava da Comissão Pastoral da Terra (CPT), desde a sua fundação, e acompanhou com determinação e solidariedade a vida e a luta dos trabalhadores do campo. Defensora de uma reforma agrária justa e consequente, Irmã Dorothy mantinha intensa agenda de diálogo com lideranças camponesas, políticas e religiosas, na busca de soluções duradouras para os conflitos relacionados à posse e à exploração da terra na Região Amazônica.
Irmã Dorothy recebeu diversas ameaças de morte, sem deixar intimidar-se. Pouco antes de ser assassinada declarou: "Não vou fugir e nem abandonar a luta desses agricultores que estão desprotegidos no meio da floresta. Eles têm o sagrado direito a uma vida melhor numa terra onde possam viver e produzir com dignidade sem devastar".
Foi assassinada com seis tiros, um na cabeça e cinco ao redor do corpo, aos 73 anos de idade, no dia 12 de fevereiro de 2005, às sete horas e trinta minutos da manhã, em uma estrada de terra de difícil acesso, a 53 quilômetros da sede do município de Anapu, no Estado do Pará. Segundo uma testemunha, antes de receber os disparos que lhe ceifaram a vida, ao ser indagada se estava armada, Ir. Dorothy afirmou: "eis a minha arma!", e mostrou a bíblia. Leu ainda alguns trechos deste livro para aquele que logo em seguida lhe balearia.
No cenário dos conflitos agrários no Brasil, seu nome associa-se aos de tantos outros homens, mulheres e crianças que morreram e ainda morrem sem ter seus direitos respeitados. O corpo da Missionária está enterrado em Anapu, onde recebeu e recebe as homenagens de tantos que nela reconhecem as virtudes heróicas da fé cristã.

segunda-feira, 10 de fevereiro de 2014

Desafios atuais à Vida Religiosa (4)

Desafio 4: Ser espaço e laboratório de fraternidade

A organização da vida em parâmetros de irmandade e de comunhão faz parte da conversão ao Evangelho de Jesus Cristo. Desde cedo, a aventura da Vida Religiosa levou isso a sério e consagrou esse desejo nos apelativos que adotou: Irmão, Irmã, Frei, Frade. Os títulos de padre, madre, abade, prior, abadessa, por um momento vitalícios, foram cedendo lugar à transitoriedade e recebendo o caráter de serviço. E surgiu o instituto da eleição temporária dos Superiores. Mesmo com denominações diversas, o ideal comunitário progressivamente recebeu força institucional em todas as formas de vida religiosa.

Num momento cultural e político no qual construir muros que discriminam pessoas e impedem movimentos e encontros é bem mais que uma tentação, a substancial abertura a relações de acolhida e reconhecimento das diferenças é um evangelho que enriquece e fala com eloquência. Numa cultura que prima pelo individualismo e vê o outro como incômodo a ser evitado ou personagem a ser descartado, a busca positiva de comunidades de iguais é fator de uma humanidade renovada e reconciliada.

Quando a vida é apresentada como uma espécie de mercado onde tudo se compra e se consome, e no qual cada um faz o que quer com os bens dos quais se apropria privadamente, a comunhão de bens, a universalização da gratuidade e a busca da sobriedade vivida em comunidade são uma urgência e uma forma de evitar a ruína total do mundo e de apressar o nascimento do outro mundo possível. É claro que, enquanto valor evangélico e dinamismo espiritual, a comunhão é muito mais que a sua estruturação em comunidades.

Mas a fraternidade e a comunhão precisam evitar a tentação da simples redução a uma comunidade de trabalho e de acúmulo, ou, em outra versão, numa espécie de asilo afetivo, no qualos indivíduos procuram alargar o próprio Eu e desfrutar ao máximo a acolhida incondicional que espera e exige do outro. A comunidade de vida e de bens, quando de matriz evangélica, traz as marcas da missão e da pádcoa: urge criar e recriar permanentemente comunidades na missão e para a missão, nas quais os membros são dinamizados pelo dom de si mesmos e os pobres se sintam cidadãos e sejam beneficiados em primeira mão.

Então, o desafio é dar vida a comunidades que revelem o frescor e a eloquência do evangelho, verdadeiras escolas de iniciação mística e de aprendizado profético. Ou seja: comunidades com uma leveza evangélica e uma força testemunhal capaz de atrair e dinamizar a vontade de comunhão e de solidariedade que pulsa na história; comunidades nas quais os membros possam experimentar uma Presença misteriosa que faz memória do melhor do nosso passado comum e antecipa o mais belo daquilo que esperamos para o futuro; comunidades nas quais a submissão infantil a autoridades (mal) constituídas dê lugar ao radical discipulado de iguais.

Itacir Brassiani msf

Reflexões do Pe. Ceolin msf (4)

Hoje o Pe. Ceolin estaria completando 84 anos de vida e, amanhã, 63 anos de vida consagrada. Fazendo memória da sua longa e fecunda existência, proponho a releitura deste belíssimo texto, publicado em abril de 2003. Creio que hoje podemos dizer ao Rodolpho: “Descanse em paz, querido amigo, pois os seus descendentes são incontáveis e saberão honraro seu exemplo...”

Sejam fecundos, eternamente fecundos!

Um belo dia de fevereiro, ao celebrar as exéquias de uma paroquiana, ouvi o seguinte: “Ao partir, nossa irmã Tereza deixa a pranteá-la nove filhos, setenta e oito netos e vinte e seis bisnetos…” (Nessas ocasiões, quase nunca são mencionados or irmãos, cunhados, genros e noras… Qual seria o motivo?!)

Naquele momento, lembrei-me do tema da Campanha da Fraternidade de 2003, fraternidade e pessoas idosas, e de mim mesmo, varão com meus setenta e três verões de vida. E, por uns instantes, pensei: “Puxa! Dentro de algum tempo estarei num esquife, sendo recomendado à misericórdia de Deus! Terei deixado alguém? E quem será esse alguém a chorar minha partida?” Suspendi a ligeira distração e tratei de concentrar-me na liturgia que estava presidindo.

Na meditação do dia seguinte, com o texto-base da Campanha da Fraternidade na mão, voltou-me è memória a falecida Tereza. Lembrei-me então que meus avós maternos já têm em torno de setecentos descendentes. E então lembrei-me de Adão e Eva: “Crescei e multiplicai-vos! Sede fecundos e enchei a terra!” (Gn 1,28). E também Abraão me veio à mente: “Você será pai de muitas nações... Farei a sua descendência tão numerosaq que ninguém poderá contar...” (Gn 17,5).

E cheguei a José, Maria e Jesus, ao Pe. João Berthier, aos confrades Aloísio Weber, Pedro Klaus, Ernesto Greiner, Luiz Muhl, Otto Massmann, Jerônimo Finkler e muitos outros. Lembrei-me de mim, de vocês que estão na missão, na inserção, nas paróquias, nas casas de formação, no Provincialado, no Lar de Nazaré...

Então escutei: “Eu te abençoarei!... Eu multiplicarei teus descendentes como as estrelas do céu e a areia da praia, porque não me recusaste o teu filho único, porque por amor a mim e ao Reino renunciaste à paternidade carnal...” Entendi que a realização e a glória de um homem ou de uma mulher não provêm apenas ou acima de tudo do número de descendentes gerados genitalmente.

Como é consolador sentir que, após setenta, oitenta ou noventa anos ainda continuamos férteis, capazes de gerar e proteger a vida, de construir pessoas, de gerar novos cristãos, novos Missionários da Sagrada Família. Que maravilha é poder tomar consciência de que ainda na velhice, até à morte e mesmo após ela, somos fecundos e podemos ser “pais” de muitos.

A confirmação disso tudo eu encontro na Palavra de Deus. Paulo escreve: “Fui eu quem gerou vocês em Jesus Cristo, através do Evangelho” (1Cor 4,15). A Timóteo, ele chama de “verdadeiro filho na fé” (1Tm 1,2). “A você, Tito, meu verdadeiro filho na fé, graça e paz” (Tt 1,4). São João evangelista, repetidamente chama as pessoas das comunidades de “meus filhinhos”. E o nosso venerável Pe. Berthier dirigia-se a seus discípulos com a carinhosa e afetuosa expressão “mes enfants”, isto é, “meus meninos, meus filhos”.

É tão bom sentir-se, em qualquer idade, um religioso realizado por saber-se continuamente gerador de fé, de cidadãos conscientes e doados ao povo. É bom demais ser um Missionário da Sagrada Família promovendo vida digna e abundante “entre aqueles que estão longe”. É tão bonito ver os irmãos entregues generosamente à formação dos novos missionários em nossas casas de formação e seminários. Sigamos multiplicando-nos, eternamente fecundos!

Pe. Rodolpho Ceolin msf


(Artigo publicado em O Bertheriano, Ano XXV, n° 78, abril/2003, p. 13)o

sexta-feira, 7 de fevereiro de 2014

Fatos & Personagens: Sepé Tiaraju


Sepé Tiarajú, herói do Brasil

(http://sandroandradelivrearte.blogspot.it/2011/07)

Celebrado no Rio Grande do Sul, Sepé Tiarajú, desde 2005, é herói nacional. Lei sancionada pelo presidente em exercício José Alencar colocou o índio missioneiro no mesmo patamar em que estão personalidades como Tiradentes, Santos Dumont e Zumbi dos Palmares. O nome do guarani passou a figurar no Livro dos Heróis Nacionais por ocasião dos 250 anos de sua morte.

Nascido em um dos aldeamentos jesuíticos dos Sete Povos das Missões, Sepé foi batizado com o nome latino cristão de Joseph, mas passou à história como Sepé. José Tiaraju foi uma espécie de prefeito da Redução Jesuítica de São Miguel. Em 1750, os reinos de Portugal e Espanha assinaram o Tratado de Madri, obrigando cerca de 50 mil índios cristãos a abandonar suas cidades, igrejas, lavouras, fazendas, gado e terras nas Missões. Insurgindo-se contra esse tratado, Sepé Tiaraju liderou a resistência dos índios guaranis. “Esta terra tem dono!” – teria dito, segundo a tradição.

Sepé Tiaraju tombou em combate no dia 7 de fevereiro de 1756, enfrentando tropas portuguesas e espanholas em Batovi, hoje município de São Gabriel. Três dias depois, 1,5 mil índios foram trucidados na batalha do Caiboaté. O povo do Rio Grande do Sul, por conta própria, viu no herói missioneiro um santo, São Sepé, que virou até nome de cidade. Poucos meses depois, nada mais existia do sonho missioneiro de uma sociedade cristã. Mas o povo do Rio Grande do Sul, por sua própria conta, canonizou o herói guarani missioneiro como São Sepé, nome dado ao arroio, à margem do qual passou sua última noite, na atual cidade de São Sepé.

Como herói ou como mito, desde sempre Sepé é presença marcante no cancioneiro riograndense. Numa de suas canções, o poeta missioneiro Noel Guarani diz: “Evoco a santo cacique o imortal Tiaraju / Que deu pra esse Xirú a sublime inspiração  / De lutar por esse chão no mais sério patriotismo  / Da lança para o lirismo, da tradição ao presente  / Da incertidão ao consciente pra o puro brasileirismo.

E Jayme Caetano Braum, broto da mesta terra vermelha onde cresceu Sepé, poetiza: “Hás de contar-me o que viste / Na tua ronda infinita, / Desde a povoação jesuíta / Ao reduto Guaiacurú, / Quando Sepé Tiaraju / Morrendo de lança em punho, / Dava um guasca testemunho / Da fibra continentina, / E quando, nesta campina, / O velho pendão farrapo / Cruzava altaneiro e guapo / Como uma benção divina!

quinta-feira, 6 de fevereiro de 2014

Qunto Domingo do Tempo Comum (Ano A - 2014)

Ser sal e luz  é nossa bela e exigente vocação

As metáforas do sal e da luz se prestam a diversas leituras, mas quando este ensino de Jesus é isolado do contexto literário acaba perdendo muito do seu sentido profundo e provocador. Por isso, é importante não esquecer que o breve texto do evangelho proposto para este domingo está situado na sequência das bem-aventuranças e antes da reflexão sobre o sentido permanente das escrituras. Faz parte do conjunto literário conhecido como “Sermão da montanha”.
O sal dá sabor, purifica e conserva os alimentos desaparecendo, como ocorre com o fermento na massa. O sal realiza plenamente aquilo que dele se espera quando se faz desaparecer: o que se experimenta é o sabor, o que se vê é que o alimento não se arruína, o que se percebe é a limpeza e a esterilização. Algo semelhante ocorre com a luz: nosso olhar não se volta à luz mas às coisas que ela ilumina. Não olhamos para o sol, mas nos deleitamos com as paisagens e rostos que ele desvela. Um punhado de sal fora dos alimentos não é comestível e olhar que se volta para a luz acaba cego...
Os discípulos e discípulas que vivem uma condição bem concreta de injúria e perseguição, que são os destinatários da última bem-aventurança, são agora chamados de sal da terra e luz do mundo. Dizendo isso, Jesus afirma que são as pessoas que promovem a paz, as sendentas de justiça, as misericordiosas e coerentes, as mansas e lutadoras, e todas as que por isso sofrem perseguição aquelas que iluminam caminhos, dão sabor à vida e conservam sua qualidade. Estas vidas bem-aventuradas purificam a história e mostram uma direção.
As imagens do sal e da luz lembram a identidade testemunhal, missionária e proativa dos discípulos e discípulas de Jesus. A luz deles deve brilhar para todos os homens e mulheres, vendo o Reino de Deus em ação, glorifiquem a bondade de Deus. Ter fome e sede de justiça, promover a paz e enfrentar perseguições refletem um posicionamento ativo, uma ação que incide sobre as nefastas forças das culturas e instituições que tendem a oprimir e marginalizar. Na visão do profeta Isaías, nossa luz brilha quando demonstramos compaixão e solidariedade com os oprimidos.
Por sua vez, Paulo, no texto da Carta aos Coríntios proposto para este domingo, nos recorda que o brilho do anúncio do mistério de Deus não está na linguagem elevada e exata, nem se alimenta do prestígio social ou das estratégias do poder. A luz do Evangelho brotam de Jesus Crucificado por amor, da sua generosidade e compaixão com os últimos da sociedade. E é também na proximidade que se faz presença solidária, mesmo quando acompanhada de fraqueza, receio e medo, que a pregação cristã brilha como luz e cumpre sua função de sal.
A história testemunha que nem sempre os cristãos estiveram à altura dessa vocação. Efetivamente, o sal pode perder o sabor e a luz pode ser escondida. E a pregação pode adquirir ares de arrogância e de imposição que intimida e oprime. Mais que uma possibilidade, isso é fato historicamente comprovado e tentação que nos ronda permanentemente. Não é por acaso que já as primeiras comunidades cristãs, através do evangelista Mateus, fazem questão de nos lembrar e advertir: que se pode fazer e esperar quando o próprio sal perde sua qualidade?
Quando a comunidade dos discípulos e discípulas de Jesus esquece sua responsabilidade com a tranformação do mundo e com o bem-estar da comunidade humana, ou quando, por medo ou por preguiça, deixa de viver a ética das bem-aventuranças, perde o sabor e não serve para mais nada, nem para aquilo que dizem ser santificação pessoal. É como sal arruinado ou como uma lanterna escondida debaixo de uma caixa. Infelizmente temos muito sal insosso e muita luz que se esconde...
Deus querido, Pai e Mãe! Nós te agradecemos porque nos destes Jesus, Sal que dá sabor à nossa vida, a Luz que revela a beleza e a dignidade de todas as tuas criaturas. Envia teu Espírito para suscitar e manter a missão e o testemunho da tua Igreja em todas as circunstâncias, especialmente quando a perseguição assusta e o medo a leva a esconder tua preciosa luz. Ajuda nossas lideranças eclesiais a não fazerem média com quem oprime e a não privar teu Evangelho do sal e do fogo que purificam. E concede às nossas comunidades aquela lucidez profética que lança luzes sobre os muitos sinais do teu Reino, que continua se aproximando teimosamente. Assim seja! Amém!

Pe. Itacir Brassiani msf
(Isaías 58,7-10 * Salmo 111 (112) * Primeira Carta aos Coríntios 2,1-5 * Mateus 5,13-16)

terça-feira, 4 de fevereiro de 2014

Desafios atuais à Vida Religiosa (3)

Desafio 3: Reencontrar a eloquência do testemunho


Há mais de 50 anos o Concílio Vaticano II insiste que a natureza da vida religiosa é de ordem simbólica, que sua vocação é ser sinal (da vida cristã, da Igreja, do Evangelho, de Jesus, do Reino futuro, de uma humanidade reconciliada e renovada). Mas um dos fatores da crise experimentada diante envelhecimento e da diminuição numérica da Vida Religiosa, e também de outras situações que deprimem, é a ambiguidade ou o hermetismo das mensagens que temos passado à Igreja e à sociedade.

Precisamos admitir que faz tempo que, por mais que multipliquemos e modernizemos as mensagens explícitas, nossos contemporâneos não conseguem decifrar um sentido forte e atraente nas mensagens indesejavelmente criptografadas que passamos. Alguns até apreciam a vida religiosa por sua contribuição social ou cultural, mas a vêem como são vistos os edifícios históricos: estão ali, destacados, como memória de um passado que não existe mais; são interessantes para visitas e como museus, mas ninguém deseja habitá-los...

A saída não é, obviamente, restaurar fachadas de época, envernizar móveis antigos, usar meios modernos e tecnicamente eficientes para transmitir uma velha mensagem. O desafio é rever o fundamento sobre o qual construímos o edifício, seu projeto arquitetônico; ou avaliar a seiva que circula (ou não) no tronco e nos galhos: é o Evangelho da simplicidade, da solidariedade e da alegria que circula nas suas veias? Se é a seiva do evangelho que circula em nós, deveria dar mais verdor às folhas e mais cor e sabor aos frutos...

Um dos aspectos ou elementos da Vida Religiosa que precisa de uma urgente ressignificação são os votos. Quem não prova um certo desconcerto quando deve explicar a familiares e, especialmente, ao povo comum, o que significam os votos de castidade, pobreza e obediência? Por um lado, temos a impressão de que o conteúdo que colocamos dentro destes conceitos são pouco evangélicos. E, por outro lado, temos a sensação de que o essencial do Evangelho para o nosso tempo não cabe mais nestas três palavras...

Ou os votos que professamos são sonhos que descobrimos na alma e nas mais secretas e vitais utopias do povo e assumimos e antecipamos em nossas comunidades, ou são resquícios de um tempo que não existe mais e, pior ainda, obstáculos que se interpõem entre nós e o Evangelho da humanização. Se não tiverem raízes e ressonâncias na vida real do nosso povo e no Evangelho, os votos aparecerão aos olhos  nossos e dele como uma mensagem incompreensível e desprezível. E a Vida Religiosa perderá irremediavelmente sua eloquência e significado para os homens e mulheres de hoje.
Itacir Brassiani msf

domingo, 2 de fevereiro de 2014

Reflexões do Pe. Ceolin msf (3)

Pedro, tu me amas?

Declarei o ano 1986 Ano da Espiritualidade, após demoradas reflexões e análises. Perguntava-me: neste momento histórico, qual é o aspecto mais importante, qual é a grande necessidade pessoal e comunitária sobre a qual devemos centrar as nossas atenções e buscar um cultivo peculiar? Escolhido o tema do ano, selecionamos subsídios bibliográficos. Por fim, nos decidimos pelo livro “Os caminhos da espiritualidade na América Latina”. Concomitantemente, a entidade máxima dos religiosos do Brasil – a CRB – fazia de 1986 o Ano do Profetismo. Muito se pensou e se falou no país inteiro sobre o tema “Os profetas bíblicos interpelam a Vida Religiosa”, condensado em opúsculo pela Comissão Teológica da CRB nacional.
Anteriormente a tudo isto, vinha percebendo que meu discurso e principalmente o de muitos outros já não era mais o mesmo. Em todo lado se ouviam hinos e cânticos cuja letra e melodia estufavam o peito de alguns e cerravam a garganta de outros. Viam-se pessoas cada vez mais envolvidas com sindicatos e com os Sem-Terra, atuando contra as barragens, clamando ostensivamente por eleições diretas e por reforma agrária, apoiando acampamentos, pichando muros e calçadas... Não tardaram os confrontos, as acusações e incriminações: “Você é pelego!” E o outro devolvia o troco: “E você é uma criançola, um agitador, um esvaziador de igrejas...” Esta ladainha de epítetos foi crescendo, e hoje é maior que a ladainha de todos os santos...
É inegável a necessidade de profetismo na Igreja. A Vida Religiosa é sem dúvida de natureza carismática e profética. Isso nem se discute. A questão que isso suscitava em mim mesmo era: Tudo o que se vem fazendo e dizendo em nome do profetismo é profetismo mesmo? Como se deve exercer acertadamente o profetismo hoje? Posso arvorar-me sem mais nem menos em profeta? O profetismo em voga é segundo os moldes dos profetas bíblicos, mormente do profeta do Pai, Jesus de Nazaré? O que move atualmente as pessoas a denunciar, a enfrentar os poderosos? Que espírito os compele? De que espírito estão possuídos? Posso eu calar-me diante da realidade anti-humana e anti-cristã que me cerca? Não estou sendo covarde e traidor da missão a mim confiada por Cristo? Pode ser tido como profeta quem pouco reza e medita?
Enquanto em minha mente bailava todo este questionamento resolvi declarar 1986 como Ano da Espiritualidade. Espiritualidade não como fuga e alienação, nem como retorno ao pietismo e às sacristias. Espiritualidade não como ensimesmação nem afrouxamento da evangelização libertadora. Mas uma espiritualidade cristã e bíblica, missionária, capaz de provocar conversão profunda, de tornar-nos religiosos autênticos, profetas de verdade. Profetas cuja vida seja permanente anúncio dos valores do Reino e denúncia verbal e não-verbal convincente. Profetas que tratam primeiro de arrancar a trave de seu próprio olho, em processo de cultivo assumido perseverantemente.
À medida que estudava, refletia e meditava sobre o opúsculo da CRB “Os profetas bíblicos interpelam a Vida Religiosa”, fui obtendo respostas ao farto questionamento que me fazia e me faziam outros. Já na introdução, dei de cara com a definição de profeta bíblico (é este tipo que eu estava interessado em definir e entender): crítico religioso da realidade. Três palavras apenas, mas que constituem um todo, que trataremos de desdobrar a seguir.
O profeta é especialmente um crítico
É alguém que anuncia e denuncia. É uma pessoa cheia de paixão (combatividade). É alguém que enfrenta os poderosos e defende os pequenos. É alguém que é perseguido. Portanto, quem não contesta, não questiona, não admoesta, é profeta? Quem evita criticar e desmascarar as causas e os causantes do pecado, das idolatrias hodiernas, das injustiças; os dominadores e exploradores que usam o poder, o ter e o saber em proveito próprio ou de uma minoria; quem não os enfrenta, é fiel à sua missão profética? Basta denunciar para estar sendo profeta?
O profeta é alguém que propõe mudanças de comportamentos, a conversão do povo. Anuncia um mundo novo, homens novos, uma nova sociedade. Propõe como devem ser as atitudes novas. Diz como mudar o coração e o espírito. Orienta como devem ser usados o poder, o ter e o saber, segundo os desígnios do criador e de Cristo. Então, isso é ser profeta? Basta isso? A muita gente parece que basta denunciar para se considerarem enviados de Javé e estarem falando as palavras de Jesus e de Deus, para se arvorarem em porta-vozes do Senhor... Do lado de quem mesmo estou eu? Dos pequenos ou dos poderosos? Já assumi e encarnei as opções da Igreja e da Vida Religiosa da América Latina? Ou minha voz se soma ao coro infernal dos matadores de profetas?
Mais de uma vez quase chorei quando na Província se erguiam barreiras e eram feitas críticas ligeiras aos jovens que solicitavam maior inserção nas periferias, desejosos de viver o novo social e geográfico da Vida Religiosa. Buscava-se abafar a voz desse profetismo silencioso mas questionante. Apontavam-se incoerências dos inseridos, exigindo deles suprema perfeição, enquanto apenas engatinhavam na caminhada renovadora da Vida Religiosa. Que espírito estava nos habitando e falando por nossa boca? Profetas são necessários dentro da própria Igreja, que a denunciam dos seus pecados. Profetas são indispensáveis dentro da Congregação, da Província, das Comunidades religiosas. Ai de nós se não os tivermos! E ai daqueles que os perseguem, que os matam!
O profeta é um crítico religioso
A segunda parte do referido opúsculo da CRB veio clarear e responder alguns dos questionamentos anteriormente explicitados. O profeta é um homem de Deus. O profeta é uma pessoa possuída e compelida pelo Espírito.
Profetas há e houve não só entre os israelitas e na Igreja católica. Determinadas pessoas carismáticas talvez nem tenham religiosidade alguma. Não é porém a estes que estamos interessados em definir. O profetismo que desejamos entender e viver melhor é diferente, é específico: profetas bíblicos, profetas do Reino, religiosos profetas é o que nos cabe ser. Esta é a tipologia de profeta que condiz e se adequa à nossa realidade de cristãos consagrados.
Na primeira parte ficou dito que o profeta é um crítico. Críticos da sociedade há muitos: economistas, políticos, filósofos, sociólogos e outros. O crítico religioso usa a ótica de Deus, é porta-voz de Deus, “fala o que ouve”, pronuncia “oráculos do Senhor”, é um confidente de Deus. Para melhor inteirar-se disso, basta ler na bíblia as passagens “vocação do profeta”.
Na raiz da missão profética há uma profunda experiência de Deus”, afirma o documento da CRB aqui já mais vezes mencionado. Diante disso, instituir na Província um ano acentuadamente dedicado à espiritualidade, em meio aos candentes debates acerca do profetismo, não teria sido providencial? Afinal, o que nos toca fazer para ser “homens de Deus, pessoas possuídas e compelidas pelo Espírito”? Denúncia acirrada sem uma sólida espiritualidade, sem uma experiência de Deus, ao menos em andamento, não seria uma ousadia, uma pretensão? Que é mesmo ser profeta do Reino? Todo mundo que vive falando alto por aí é mesmo profeta?
É sintomático o episódio narrado por Lucas (4,14-22), quando Jesus comparece à sinagoga de Nazaré e declara: “O Espírito do Senhor está sobre mim. Ele me consagrou e me enviou para anunciar a boa nova aos pobres, sarar os contritos de coração, anunciar aos cativos a redenção, aos cegos a restauração da vista, pôr em liberdade os cativos e publicar o Ano da Graça do Senhor.”
Em João 21,15-17 encontramos outro episódio que nos faz pensar: “Pedro, tu me amas mais do que estes?... Sim, Mestre, tu sabes que eu te amo!... Apascenta os meus cordeiros... Apascenta minhas ovelhas...”  Isto soa aos meus ouvidos mais ou menos assim: “O amor apaixonado pelo Cristo, pelo Reino, pelo seu Projeto, é a base, o ponto de partida, a exigência e a necessidade primordiais para abraçar e exercer a missão profética e pastoral.”
Concluindo, aproveito-me do slogan do próximo Encontro Latino-Americano dos Missionários da Sagrada Família (“Eu formo? Tu formas? Nós formamos? Somos Província formadora?”): “Eu sou profeta? Tu és profeta? Nossa comunidade é profética? Nossa Província é profética? Como vir a ser? Você já tem resposta? Então, não espere mais, e que o Senhor lhe dê forças e combatividade para suscitar MSF novos, comunidades renovadas, uma Província de Deus e arrojada na construção da nova sociedade.
Pe. Rodolpho Ceolin msf

(Reflexão publicada em O Bertheriano, Ano VIII, N° 24, setembro/1986, p. 1-2)