sexta-feira, 16 de agosto de 2013

20° Domingo do Tempo Comum

Tu, pescador de outros lagos...
(Jer 38,4-10; Sl 39/40; Hb 12,1-4; Lc 12,49-53)

Na terceira semana do mês vocacional, celebrado pelas comunidades católicas do Brasil no mês de agosto, recordamos o chamado à vida consagrada. Ultimamente, vem sendo sublinhado que a vida consagrada é convocada a buscar no enraizamento místico um renovado dinamismo profético. Mas é importante lembrar que a profecia não é um concurso de popularidade: trata-se de anunciar e testemunhar, com verdade e coerência, o projeto de Deus. E isso pode provocar divisão, pois este é uma proposta exigente e radical, que costuma despertar a oposição de muitos. Cristo – que nunca cedeu ao mais fácil ou ao mais agradável, mas enfrentou a morte para realizar o projeto do Pai – é o modelo que orienta a caminhada das comunidades consagradas, e é nele que todos devem fixar seus olhos.
“Esse homem não busca o bem do povo...”
A vida do profeta Jeremias foi um constante arriscar a si mesmo por causa da Palavra de Deus e da missão profética. Sentindo-se seduzido por Deus, ele se colocou incondicionalmente a serviço da Palavra de Deus, mesmo quando isso parecia violentar sua própria maneira de ser e levá-lo a viver à margem, a afastar-se dos familiares, dos amigos, dos conhecidos, a atrair o ódio dos poderosos. É sempre assim: a experiência do Deus vivo e compassivo nos leva a relativizar tudo, começando pela própria segurança.
A missão profética não é um percurso fácil, uma carreira marcada pelo êxito, um caminho atapetado pelo entusiasmo e pelo aplauso das multidões. A profecia é um caminho de cruz, de luta, de incompreensão e, frequentemente, de morte. Implica o confronto com a injustiça, com a alienação, com a opressão, com o poder daqueles que pretendem construir o mundo sobre o egoísmo, a prepotência, a indiferença e a insjustiça. É um caminho de denúncia e de anúncio, de crítica e até de destruição.
Mas a história de Jeremias nos mostra claramente que, mesmo quando incompreendido, humilhado, esmagado e abandonado, os profetas e profetizas nunca estão sozinhos. O senhor Deus se faz presente na vida de Jeremias, defendendo-o e sustentando-o de muitos modos. No relato de hoje, o faz através do sentido de justiça, da compaixão e da coragem de um escravo estrangeiro. Assim, Jeremias faz sua a experiência expressa pelo salmista: “Esperei no Senhor com toda a confiança e Ele atendeu-me.”
“Eu vim para lançar fogo sobre a terra.”
As palavras de Jesus que o evangelho de hoje nos apresenta fazem parte dos textos mais obscuros e difíceis de todo o Novo Testamento. Para poder entendê-las adequadamente, precisamos situá-las no contexto literário no qual se encontram, ou seja: no caminho de Jesus para Jerusalém. Estas frases fazem parte da catequese que com a qual Jesus explica aos discípulos sua missão, a radicalidade do Reino de Deus e as exigências para quem adere à sua proposta de vida.
Para tanto, Jesus recorre a duas imagens: o fogo e o batismo. Em algumas tradições de Israel o fogo era símbolo da intransigência de Deus frente ao pecado. Alguns profetas usam a imagem do fogo para descrever a ira de Deus (cf. Am 1,4; 2,5) ou o castigo imposto às nações pecadoras e ao próprio Israel (cf. Is 30,27.30.33). Mas, ao mesmo tempo em que castiga, o fogo também faz desaparecer o pecado (cf. Is 9,17-18; Jer 15,14; 17,4.27), é elemento de purificação e transformação (cf. Is 6,6; Eclo 2,5; Dan 3).
É neste horizonte que podemos entender o sentido do fogo neste trecho da pregação de Jesus. Ele vem revelar a santidade de Deus – destruir o egoísmo, a injustiça, a opressão que arruínam o mundo – a fim de que surja o mundo novo marcado pelo amor, pela partilha, pela fraternidade e pela justiça. E essa transformação acontece inicialmente através da Palavra e da ação de Jesus e, mais tarde, mediante a ação do Espírito Santo que o Pai enviará por ele aos discípulos. Ele é mesmo “pescador de outros lagos”.
Quanto à imagem do batismo, está muito claro que está referida à morte de Jesus. Em Mc 10,38 Jesus pergunta a João e Tiago se eles estão dispostos a “beber do cálice que Ele vai beber” e a “receber o batismo que Ele vai receber”. São claramente imagens complementares usadas para descrever sua paixão e morte de cruz. Para que o fogo transformador e purificador se manifeste, é necessário que Jesus faça da sua vida um dom de amor. Só então nascerá o mundo novo e o homem novo.
“Vocês pensam que eu vim trazer paz sobre a terra?”
A paz é um dos dinamismos essenciais da esperança do povo e dos tempos messiânicos. “Quero ouvir o que o Senhor irá falar: é a paz que ele vai anunciar; a paz para o seu povo e seus amigos, para os que voltam ao Senhor seu coração... A verdade e o amor se encontrarão, a justiça e a paz se abraçarão” (Sl 84/85). O hino messiânico de Zacarias saúda Jesus como aquele que vem “para dirigir os nossos passos, guiando-os no caminho da paz” (Lc 1,79). Então, por quê Jesus diz que não veio trazer paz mas divisão?
Quando Jesus diz que não veio trazer ao mundo a paz mas a divisão, não está falando propriamente do objetivo prioritário da sua ação. Está fazendo referência às reações das pessoas e grupos à sua pessoa e à sua proposta. Ele veio sim trazer a paz, mas uma paz que é vida plena vivida com coerência. Uma paz que não pode ser tecida e sustentada com meias tintas, com meias verdades, com jogos de equilíbrio que não perturbam ninguém e também não transformam nada. Sua paz é uma “paz inquieta”.
O objetivo de Jesus não é conservar intacto o sistema de poder que existe, pactuar com uma paz que não questiona a injustiça e a opressão. Sua missão é incendiar o mundo, colocar em causa tudo aquilo que escraviza a pessoa e a vida. O caminho do cristão não é um passeio fácil e descomprometido, mas um caminho duro e difícil, que não se coaduna com incoerências e concessões em nome de um pacifismo medroso e ingênuo, que acaba por esterilizar a força revolucionária do Evangelho.
“Corramos com perseverança, mantendo os olhos fixos em Jesus, autor e consumador da fé.”
A Carta aos Hebreus dirige-se a cristãos que vivem em uma situação muito difícil, mergulhados num ambiente hostil e sofrendo forte oposição dos seus concidadãos. Por isso, são fortemente expostos ao desalento e ao desânimo. Alguns dados da carta sugerem também que se trata de cristãos cansados, distantes do entusiasmo dos inícios, tentados pelo comodismo e pela mediocridade. É por isso que o autor os convida a fixar o olhar em Jesus e a contemplar a nuvem de testemunhas que os envolvem.
Os quatro versículos que a leitura de hoje nos apresenta contêm uma exortação à perseverança. A exortação começa com a imagem da corrida, clássica na catequese cristã dos primeiros tempos (cf. 1Cor 9,24-27; Gal 2,2; Fil 2,16; 3,13-14; 2Tim 2,5): os cristãos devem ser como atletas que correm com decisão e empenho incomparáveius e que dão provas de coragem, de força, de vontade de vencer. Para que nada atrapalhe essa maratona, os cristãos devem despojar-se do fardo do pecado.
E o modelo fundamental do crente nesta corrida é Cristo. Ele abriu-nos o caminho, vai à nossa frente e mostra-nos como proceder. O seu exemplo deve estimular-nos e guiar-nos continuamente nas lutas e enfrentamentos. “Mantenham os olhos fixos em Jesus... Pensem atentamente em Jesus... Em troca da alegria que lhe era proposta, ele se submeteu à cruz, desprezando a vergonha... Para que vocês não se cansem e não percam o ânimo...” Ele é realmente diferente, e faz a diferença!
“E como eu gostaria que esse fogo já estivesse aceso...”
Na exortação Vita Consecrata (1996), João Paulo II escrevia: “A vida consagrada tem a função profética de recordar e servir o desígnio de Deus sobre os homens. [...]  No seguimento do Filho do homem a vida consagrada caracterizou-se pelo serviço sobretudo aos mais pobres e necessitados. Se, por um lado, contempla o mistério sublime do Verbo no seio do Pai, por outro, segue o Verbo que Se faz carne, aniquila, humilha para servir os homens.” É assim que a vida consagrada pode espalhar o fogo de Cristo.
E mais: “O olhar fixo no rosto do Senhor não diminui o empenho a favor do homem; pelo contrário, reforça-o, dotando-o de uma nova capacidade de influir na história, para a libertar de tudo quanto a deforma. A busca da beleza divina impele as pessoas consagradas a cuidarem da imagem divina deformada nos rostos de irmãos e irmãs...” Não obstante suas indisfarçáveis ambiguidades, a vida consagrada tem tentado fazer isso, e ofereceu à Igreja uma grande nuvem de testemunhas.
Jesus de Nazaré, fogo de amor que elimina a injustiça e purifica a ambiguidade dos nossos projetos e ações: batiza com o fogo do teu Espírito todos/as aqueles/as que acreditam em ti e guia-os pelos caminhos da paz verdadeira. Ajuda as pessoas consagradas a ti a não fugir das fronteiras, dos desertos e das perfiferias, e a não fixar o olhar apenas nos líderes e projetos bem-sucedidos. Assim seja! Amém!

Pe. Itacir Brassiani msf

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