Tu, pescador de outros lagos...
(Jer 38,4-10; Sl
39/40; Hb 12,1-4; Lc 12,49-53)
Na terceira semana do mês vocacional,
celebrado pelas comunidades católicas do Brasil no mês de agosto, recordamos o
chamado à vida consagrada. Ultimamente, vem sendo sublinhado que a vida
consagrada é convocada a buscar no enraizamento místico um renovado dinamismo
profético. Mas é importante lembrar que a profecia não é um concurso de popularidade: trata-se de anunciar
e testemunhar, com verdade e coerência, o projeto de Deus. E isso pode provocar
divisão, pois este é uma proposta exigente e radical, que costuma despertar a
oposição de muitos. Cristo – que nunca cedeu ao mais fácil ou ao mais
agradável, mas enfrentou a morte para realizar o projeto do Pai – é o modelo
que orienta a caminhada das comunidades consagradas, e é nele que todos devem
fixar seus olhos.
“Esse homem não busca o bem do
povo...”
A vida
do profeta Jeremias foi um constante arriscar a si mesmo por causa da Palavra
de Deus e da missão profética. Sentindo-se seduzido por Deus, ele se colocou
incondicionalmente a serviço da Palavra de Deus, mesmo quando isso parecia
violentar sua própria maneira de ser e levá-lo a viver à margem, a afastar-se
dos familiares, dos amigos, dos conhecidos, a atrair o ódio dos poderosos. É
sempre assim: a experiência do Deus vivo
e compassivo nos leva a relativizar tudo, começando pela própria segurança.
A missão
profética não é um percurso fácil, uma carreira marcada pelo êxito, um caminho
atapetado pelo entusiasmo e pelo aplauso das multidões. A profecia é um caminho de cruz, de luta, de incompreensão e, frequentemente,
de morte. Implica o confronto com a injustiça, com a alienação, com a
opressão, com o poder daqueles que pretendem construir o mundo sobre o egoísmo,
a prepotência, a indiferença e a insjustiça. É um caminho de denúncia e de
anúncio, de crítica e até de destruição.
Mas a história de Jeremias nos mostra
claramente que, mesmo quando incompreendido, humilhado, esmagado e abandonado,
os profetas e profetizas nunca estão sozinhos. O senhor
Deus se faz presente na vida de Jeremias, defendendo-o e sustentando-o de
muitos modos. No relato de hoje, o faz através do sentido de justiça, da
compaixão e da coragem de um escravo estrangeiro. Assim, Jeremias faz sua a
experiência expressa pelo salmista: “Esperei no Senhor com toda a confiança e
Ele atendeu-me.”
“Eu vim para lançar fogo sobre a
terra.”
As
palavras de Jesus que o evangelho de hoje nos apresenta fazem parte dos textos
mais obscuros e difíceis de todo o Novo Testamento. Para poder entendê-las
adequadamente, precisamos situá-las no contexto literário no qual se encontram,
ou seja: no caminho de Jesus para
Jerusalém. Estas frases fazem parte da catequese que com a qual Jesus
explica aos discípulos sua missão, a radicalidade do Reino de Deus e as
exigências para quem adere à sua proposta de vida.
Para
tanto, Jesus recorre a duas imagens: o
fogo e o batismo. Em algumas tradições de Israel o fogo era símbolo da intransigência de Deus frente
ao pecado. Alguns profetas usam a imagem do fogo para descrever a ira de Deus (cf. Am 1,4; 2,5) ou o castigo imposto às nações pecadoras e ao
próprio Israel (cf. Is 30,27.30.33). Mas, ao mesmo tempo em que castiga, o fogo também faz desaparecer o pecado
(cf. Is 9,17-18; Jer 15,14; 17,4.27), é
elemento de purificação e transformação (cf. Is 6,6; Eclo 2,5; Dan 3).
É neste
horizonte que podemos entender o sentido do fogo neste trecho da pregação de Jesus.
Ele vem revelar a santidade de Deus – destruir o egoísmo, a injustiça, a
opressão que arruínam o mundo – a fim de que surja o mundo novo marcado pelo
amor, pela partilha, pela fraternidade e pela justiça. E essa transformação
acontece inicialmente através da Palavra e da ação de Jesus e, mais tarde,
mediante a ação do Espírito Santo que o Pai enviará por ele aos discípulos. Ele
é mesmo “pescador de outros lagos”.
Quanto à
imagem do batismo, está muito claro que está referida à morte de Jesus. Em Mc 10,38
Jesus pergunta a João e Tiago se eles estão dispostos a “beber do cálice que
Ele vai beber” e a “receber o batismo que Ele vai receber”. São claramente imagens
complementares usadas para descrever sua paixão e morte de cruz. Para que o
fogo transformador e purificador se manifeste, é necessário que Jesus faça da sua vida um dom de amor.
Só então nascerá o mundo novo e o homem novo.
“Vocês pensam que eu vim trazer
paz sobre a terra?”
A paz é
um dos dinamismos essenciais da esperança do povo e dos tempos messiânicos. “Quero
ouvir o que o Senhor irá falar: é a paz que ele vai anunciar; a paz para o seu
povo e seus amigos, para os que voltam ao Senhor seu coração... A verdade e o amor
se encontrarão, a justiça e a paz se abraçarão” (Sl 84/85). O hino messiânico
de Zacarias saúda Jesus como aquele que vem “para dirigir os nossos passos,
guiando-os no caminho da paz” (Lc 1,79). Então, por quê Jesus diz que não veio
trazer paz mas divisão?
Quando
Jesus diz que não veio trazer ao mundo a paz mas a divisão, não está falando
propriamente do objetivo prioritário da sua ação. Está fazendo referência às reações das pessoas e grupos à sua pessoa e
à sua proposta. Ele veio sim trazer a paz, mas uma paz que é vida plena
vivida com coerência. Uma paz que não pode ser tecida e sustentada com meias
tintas, com meias verdades, com jogos de equilíbrio que não perturbam ninguém e
também não transformam nada. Sua paz é uma “paz inquieta”.
O
objetivo de Jesus não é conservar intacto o sistema de poder que existe,
pactuar com uma paz que não questiona a injustiça e a opressão. Sua missão é incendiar
o mundo, colocar em causa tudo aquilo que escraviza a pessoa e a vida. O
caminho do cristão não é um passeio fácil e descomprometido, mas um caminho
duro e difícil, que não se coaduna com incoerências e concessões em nome de um
pacifismo medroso e ingênuo, que acaba por esterilizar a força revolucionária
do Evangelho.
“Corramos com perseverança, mantendo os olhos fixos em
Jesus, autor e consumador da fé.”
A Carta
aos Hebreus dirige-se a cristãos que vivem em uma situação muito difícil,
mergulhados num ambiente hostil e sofrendo forte oposição dos seus concidadãos.
Por isso, são fortemente expostos ao desalento e ao desânimo. Alguns dados da
carta sugerem também que se trata de cristãos cansados, distantes do entusiasmo
dos inícios, tentados pelo comodismo e pela mediocridade. É por isso que o
autor os convida a fixar o olhar em Jesus e a contemplar a nuvem de testemunhas
que os envolvem.
Os
quatro versículos que a leitura de hoje nos apresenta contêm uma exortação à
perseverança. A exortação começa com a imagem da corrida, clássica na catequese
cristã dos primeiros tempos (cf. 1Cor 9,24-27; Gal 2,2; Fil 2,16; 3,13-14; 2Tim
2,5): os cristãos devem ser como atletas que correm com decisão e empenho
incomparáveius e que dão provas de coragem, de força, de vontade de vencer. Para
que nada atrapalhe essa maratona, os cristãos devem despojar-se do fardo do
pecado.
E o modelo
fundamental do crente nesta corrida é Cristo. Ele abriu-nos o caminho, vai à
nossa frente e mostra-nos como proceder. O seu exemplo deve estimular-nos e
guiar-nos continuamente nas lutas e enfrentamentos. “Mantenham os olhos fixos
em Jesus... Pensem atentamente em Jesus... Em troca da alegria que lhe era
proposta, ele se submeteu à cruz, desprezando a vergonha... Para que vocês não
se cansem e não percam o ânimo...” Ele é realmente diferente, e faz a
diferença!
“E como eu gostaria que esse
fogo já estivesse aceso...”
Na
exortação Vita Consecrata (1996),
João Paulo II escrevia: “A vida consagrada tem a função
profética de recordar e servir o desígnio de Deus sobre os homens.
[...] No seguimento do Filho do homem a
vida consagrada caracterizou-se pelo serviço sobretudo aos mais pobres e
necessitados. Se, por um lado, contempla o mistério sublime do Verbo no seio do
Pai, por outro, segue o Verbo que Se faz
carne, aniquila, humilha para servir os homens.” É assim que a vida
consagrada pode espalhar o fogo de Cristo.
E mais: “O olhar fixo no rosto do Senhor não diminui o empenho a favor
do homem; pelo contrário, reforça-o, dotando-o de uma nova capacidade de
influir na história, para a libertar de tudo quanto a deforma. A busca da beleza divina impele as pessoas
consagradas a cuidarem da imagem divina deformada nos rostos de irmãos e irmãs...”
Não obstante suas indisfarçáveis ambiguidades, a vida consagrada tem tentado
fazer isso, e ofereceu à Igreja uma grande nuvem de testemunhas.
Jesus de
Nazaré, fogo de amor que elimina a injustiça e purifica a ambiguidade dos
nossos projetos e ações: batiza com o fogo do teu Espírito todos/as aqueles/as
que acreditam em ti e guia-os pelos caminhos da paz verdadeira. Ajuda as
pessoas consagradas a ti a não fugir das fronteiras, dos desertos e das
perfiferias, e a não fixar o olhar apenas nos líderes e projetos bem-sucedidos.
Assim seja! Amém!
Pe. Itacir Brassiani msf
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