Olhaste
em meus olhos e, sorrindo, disseste meu nome...
(Ap
11,19.12,1-6; Sal 44/45; 1Cor 15,20-27; Lc 1,39-56)
A assunção de Nossa Senhora é uma festa litúrgica
mariana que, para as comunidades do Brasil, está ligada à semana dedicada à
vocação à vida consagrada. Mas aquilo que cremos sobre Maria não se restringe a
ver nela um modelo para os religiosos e religiosas: de alguma forma, Maria diz
algo fundamental a todos os homens e mulheres, à comunidade eclesial, ao povo
de Deus. A glorificação de Nossa Senhora,
sua realização plena em Deus, é uma vocação e uma promessa extensivas a toda a
humanidade. Como Maria, todos/as nascemos
para a glória e para o brilho, e descobrimos que, olhando-nos nos olhos,
Deus nos chama pelo nome. Nela a pessoa humana em sua integridade – em corpo e
alma! – é assumida e realizada em
Deus. E sta é também uma proclamação clara e inequívoca da
dignidade do corpo.
“Feliz
aquela que acreditou!”
No Magnificat,
Maria aparece como uma pessoa humana humilde
e humilhada. Lucas no-la apresenta
como uma mulher que sabe ouvir a Palavra viva de Deus e que está pronta a dar o
melhor de si para que essa Palavra se realize na história. Isabel sublinha que Maria é uma mulher que ousou acreditar na
força da Palavra e na fidelidade daquele que a pronuncia. Obviamente, não
se trata de uma palavra escrita na Bíblia, mas de uma mensagem eloquente
escrita nos acontecimentos.
A humildade, a escuta e a fé estão intrinsecamente
relacionadas e são as marcas fundamentais da personalidade de Maria. Não fazemos bem quando idealizamos Maria a
ponto de desumanizá-la completamente. Para fazer-se humano o Filho de Deus
precisou de uma pessoa fundamentalmente humana, e não de criaturas angélicas! Se
Deus pôde realizar grandes coisas nela e através dela é porque encontrou a base
humana indispensável já preparada.
Humildade, atitude de escuta e fé na ação
misericordiosa e libertadora de Deus são os elementos que possibilitam uma vida
feliz. É importante lembrar que o segredo da felicidade que todos/as buscamos
não está na posse ou no consumo de bens, nem na fama ou no sucesso que podemos
alcançar, ou ainda no poder de atração que exercemos sobre os outros, mas na
abertura humilde e profunda aos outros, ao futuro e a Deus. “Feliz aquela que
acreditou...”
“Derrubou
os poderosos dos seus tronos e exaltou os humildes”
O Evangelho diz que, depois da experiência de ser
amada e de receber a missão de dar à luz Aquele que seria a Luz do mundo, Maria
vai apressadamente à casa de Isabel. Busca
um sinal que confirme a parceria de Deus com os humildes, sua aliança com os
pobres. Ela havia dado sua palavra Àquele que é capaz de fazer grandes
coisas em favor do povo humilhado, mas nem tudo estava claro. A discípula se faz serva, a serva se mostra
peregrina e a peregrina experimenta a hospitalidade na casa de Isabel.
Na casa de Isabel, enquanto Zacarias permanece mudo e
à margem de tudo, duas mulheres louvam a Deus e profetizam. A discípula, serva
e peregrina se transforma em profetiza eloquente
e destemida. Contemplando sua própria história e a epopéia do seu povo, Maria percebe e proclama a intervenção
libertadora de Deus: ele dispersa os soberbos, derruba os poderosos, eleva
os humildes e oprimidos, socorre seu povo e estende sua misericórdia a todas as
gerações.
É importante não esquecer que Maria, esta mulher
assunta ao céu, não é apenas uma humilde trabalhadora do lar, uma pessoa
discreta que acredita em Deus, uma doce e recatada esposa de um carpinteiro. Deus assume em corpo e alma e eleva à glória
do céu uma mulher que rompe com os costumes que menosprezam a mulher e a mantêm
calada, que diz uma palavra profética na arena pública, que proclama uma
revolucionária intervenção de Deus sobre a história.
“E
bendito é o fruto do teu ventre!”
No encontro entre
Maria e Isabel, o corpo festeja e é festejado. É bendito o corpo feminino de Maria, assim como bendito é o corpo que
ela carrega no ventre. Bendito é o corpo de Isabel, capaz de perceber a
incontida alegria daquele que preparará a estrada para a chegada do Messias, e
bendito é o corpo dos mártires de todos os tempos. Bendito é também o corpo dos
humilhados e dispensados, destinados por Deus desde sempre ao brilho.
A festa da Assunção
de Maria sublinha de forma contundente a dignidade do corpo, de todos os corpos. Mas é uma proclamação da dignidade especialmente dos corpos humilhados por uma cultura
que os transforma em meios de produção, em objetos vendidos e comprados, em
produtos expostos nas vitrines e passarelas, sem brilho e sem beleza. É também
o reconhecimento da beleza e da nobreza dos corpos doentes e envelhecidos pelo
tempo, assim como do corpo eclesial dos muitos e diferentes membros.
“Um
grande sinal apareceu no céu...”
Mas é importante lembrar que Maria, sendo discípula e
membro da Igreja, é também sinal e
símbolo do povo de Deus, da imensa caravana dos homens e mulheres de boa
vontade, sonhadores de um outro mundo. Sua assunção é um sinal e uma parábola da ressurreição que todos esperamos. O
livro do Apocalipse sublinha este aspecto de sinal ou símbolo. Como ela, a humanidade está em trabalho de
parto e, mesmo ameaçada por todos os lados, vai dando à luz um Homem Novo e
construindo um Mundo Novo.
Mas não esqueçamos um outro aspecto também relevante: Maria simboliza uma Igreja com traços
femininos. A Igreja é chamada a construir-se como corpo que acolhe, aquece,
alimenta, ensina, respeita e favorece o crescimento e o amadurecimento dos
filhos e filhas. Uma Igreja rígida, fechada, autoritária e legalista tem pouca
relação com a figura feminina de Maria. Uma Igreja com nome feminino e corpo
masculino, mesmo quando diz que Maria é mais importante que os apóstolos, é uma
Igreja incoerente...
“O menino pulou de alegria no meu ventre...”
A festa da Assunção
de Maria recorda e proclama que a Igreja, esse povo de Deus sem fronteiras definidas,
formado por todos os homens e mulheres de boa vontade, é assumido por Deus como
seu corpo e meio de ação na história. A Igreja precisa se compreender como povo de Deus em marcha, que não
pode construir aparatos pesados porque não tem aqui sua morada definitiva. E
precisa superar todas os sinais de exclusivismo, esta tentação de traçar
fronteiras entre cristãos e não-cristãos.
É verdade que não há oposição irreconciliável entre o
Espírito e as estruturas. Deus assume as estruturas e leis limitadas da história
e das instituições para pôr em movimento sua obra libertadora. Mas cabe à
Igreja avaliar constantemente seus instrumentos e estruturas, subordinando-os à
ação e aos interesses de Deus e não aos seus próprios interesses e medos. Fora
disso seu corpo se enrijece, envelhece, perde vitalidade. E se torna incapaz de
gerar vida nova, de promover salvação e liberdade.
Inspirada em Maria, a Igreja precisa criar espaços e
condições favoráveis para o crescimento de homens e mulheres maduros, livres,
despojados, solidários e comprometidos com a salvação do mundo. Um corpo que se
impõe pelo medo e pela lei está condenado à esterilidade e nunca terá a graça
de sentir os filhos e filhas saltarem de alegria no seu ventre. É um corpo que
não conhece a felicidade, um túmulo de homens e mulheres que não chegam a
nascer verdadeiramente.
“A
mulher fugiu para o deserto...”
Com a celebração deste terceiro domingo do mês
vocacional iniciamos a semana que propõe a reflexão sobre a vocação à vida
consagrada e somos convidados/as a refletir sobre seu lugar e seu significado
da na Igreja e na sociedade. Como a de Maria, esta vocação não é externa e nem superior à Igreja: nasce no seu
coração e está a serviço da sua missão. Como carisma específico do corpo
eclesial, a vida consagrada está a seu serviço. Nasce de um chamado gratuito
para servir gratuitamente.
Na sua origem está a experiência mariana de um Deus
que olha nos olhos e, sorrindo, chama pelo nome. Ou uma experiência como aquela
de Isabel: o corpo estremece de alegria por receber inesperadamente Deus na
própria casa. Não se trata primariamente de um caminho de purificação moral ou
de desprezo do mundo, mas de plenitude de uma graça que não cobra méritos.
Partindo daqui, a vida consagrada faz-se
ouvinte da Palavra, cresce como servidora e amadurece como profecia.
Jesus de Nazaré,
filho de Maria, razão do júbilo e força da profecia: ajuda as pessoas
consagradas a proclamar com a vida e com a palavra que nada pode ser colocado
acima do amor pessoal a ti e aos pobres nos quais tu vives. Guia e sustenta as
pessoas conagradas aos desertos (onde tudo parece sem sentido), às periferias (onde
não há poder) e às fronteiras (onde tudo precisa ser reinventado). Assim seja!
Amém!
Pe. Itacir Brassiani msf
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