Levanta, assume tua história e vá em frente!
(Is 43,18-25; Sl 40/41; 2Cor 1,18-22; Mc 2,1-12)
Vivemos dias que nos convidam mais à festa que à reflexão. O tempo de carnaval é mais propício à imagem e ao movimento que à palavra e ao silêncio meditativo. As máscaras que fantasiam os rostos e os carros que alegorizam a história convidam a tomar distância do realismo crítico e do recato da fé. Mas se conseguirmos ver mais a fundo, o próprio espetáculo carnavalesco é o anúncio de uma boa notícia insistente: nossa vocação é a festa, a alegria, o sábado da criação; somos obrigados a usar a máscara de trabalhadores comportados e cristãos obedientes durante o ano inteiro, mas não perdemos nossa condição de pessoas livres, criativas e festivas. É como se o carnaval fosse um eco da palavra de Jesus dirigida a um povo subjugado e discriminado: “Meu filho querido, deixa a tristeza de lado e entra na roda, pois você não deve nada a ninguém! Levante-se, toma nas mãos seu destino e vai em frente!”
“E espalhou-se a notícia de que Jesus estava em casa.”
Depois de ter curado o leproso, Jesus não podia mais entrar tranquilamente nas vilas e cidades. Por precaução, preferia ficar fora, nos lugares desertos (cf. Mc 1,45). Por isso, quando entrou em Cafarnaum, evitou a praça e a sinagoga e preferiu ficar em sua própria casa. O ambiente doméstico poderia ser uma proteção contra as polêmicas que suscitara na sinagoga e nas estradas da Galiléia...
Mas a cisão entre espaços privados e espaços públicos não faz parte da cosmovisão de Jesus, nem é respeitada pela multidão carente de tudo. Para Jesus qualquer lugar era lugar de missão e todo tempo é tempo de Deus. “Logo se espalhou a notícia de quen Jesus estava em casa. E tanta gente se reuniu aí que não havia lugar nem na frente da casa. E Jesus anunciava a palavra...”
O Evangelho deixa claro que o centro que galvaniza a intensa vida de Jesus é o anúncio da Palavra, a notícia boa de que o tempo de espera terminou e o Reino de Deus está chegando. Quando ameaça demônios, cura doentes ou purifica leprosos o faz como que para demonstrar palpavelmente que seu anúncio é verdadeiro. Curas e perdão dos pecados são sinais que apontam para a realidade do Reino.
“Vendo a fé que eles tinham...”
Em meio a uma notável multidão que se reúne sedenta à frente da casa de Jesus para ouvir seu anúncio nossa atenção é solicitada por um grupo de quatro pessoas anônimas que carregam um homem paralítico. O povo que se interpõe entre eles e Jesus não representa um obstáculo à criatividade da fé que os move e, abrindo uma brecha no teto da casa, fazem o pobre homem chegar diante de Jesus.
O evangelista diz que Jesus viu a fé que eles tinham. Quando profunda e verdadeira, a fé pode ser vista, tocada. Sendo descoberta e experiência da firmeza, segurança e solidez da presença de Deus junto aos pequenos e humildes, a fé se expressa em ações de resistência e de criação. Sendo confiança e aceitação da verdade de um Deus que nos quer livres, humanos e adultos, a fé se mostra um dinamismo capaz de abrir caminhos de vida sempre mais plena.
Assim, uma fé viva e fecunda não se detém no anúncio da ação de Deus no passado. É abertura crente e confiante na ação de Deus no presente e no futuro. O próprio profeta Isaías insiste: “Não fiquem lembrando o passado, não pensem nas coisas antigas; vejam, eu estou fazendo uma coisa nova: ela está brotando agora... Abrirei um caminho no deserto, rios em lugar seco.” E essa abertura transcende a interioridade da pessoa e se expressa no engajamento nos processos coletivos de criação.
“Só Deus pode perdoar pecados!”
A fé vivida como abertura e confiança é o dinamismo que está na origem do processo de recriação da vida, de vitória sobre o pecado que aprisiona e amordaça a humanidade oprimida. Mais que uma desordem ou uma revolta contra Deus, o pecado é literalmente a condição da humanidade que não consegue atingir seus objetivos de plena vida e paz duradoura, que erra o alvo para o qual se orienta. E a fé ajuda a reencontrar o rumo e avançar no caminho e abre para o perdão de Deus.
No tempo de Jesus, o judaísmo sustentado pelos escribas e fariseus identificava o pecado com as ofensas contra as leis e tradições dos quais eram guardiães. Sabemos que os extratos mais pobres do povo judeu não tinham como observar o intrincado conjunto de leis que pesava como fardo sobre suas costas. Por mais que se esforçassem, não conseguiam sair da condição de pecadores, de devedores frente a Deus e ao sistema que se apresentava como seu procurador. Pagãos, pobres, estrangeiros, doentes e mulheres eram tidos como eternos reféns do pecado, excluídos/as da cidadania.
“Filho, os teus pecados aão perdoados.”
João Batista apresenta Jesus como “o Cordeiro de Deus, aquele que tira o pecado do mundo” (Jo 1,29). E os judeus ortodoxos o acusam de ser “comilão e beberrão, amigo dos cobradores de impostos e dos pecadores” (Lc 7,34). Notemos bem: Jesus não se limita à prática de perdoar uma espécie de lista de pecados dos pecadores. Ele tira o pecado do mundo e é amigo dos pecadores! Ou seja: não leva a sério a condição de pecadores e excluídos que o sistema religioso impõe a boa parte do seu povo.
Essa atitude transgressora e libertadora de Jesus frente à ideologia do pecado fica clara quando ele diz ao homem paralítico: “Filho, os seus pecados estão perdoados.” Antes de tudo, chama ‘filhinho’ àquele que, à luz da lei e da tradição, era considerado, devedor e filho do pecado, separado de Deus e seu inimigo. Que outra afirmação mais clara da dignidade dos pecadores poderíamos desejar?
Um segundo aspecto que não podemos menosprezar é que Jesus começa concedendo perdão, e só depois realiza a cura física. Na verdade, Jesus prioriza a afirmação da dignidade e da integridade social da pessoa doente e deixa para um segundo plano a cura física. Também hoje, a exclusão e a marginalização social e cultural ofendem e machucam mais que as doenças, e a saúde física não é tudo.
Os doutores da lei se irritam, questionam e acusam: “Por que esse homem fala assim? Ele está blasfemando! Ninguém pode perdoar pecados, porque só Deus tem poder para isso.” Apelando aos direitos exclusivos de Deus, o que os doutores da lei querem afirmar é a imutabilidade do sistema excludente e assegurar o próprio poder de se apresentarem como procuradores de Deus...
“Levanta-te, pega a tua maca e vai para casa!”
Jesus não se deixa intimidar pela acusação e reafirma a estreita conexão entre a ideologia do pecado e a marginalização social e, de igual modo, a coincidência do encontro com ele e a emancipação social. O que surpreende é que Jesus tira de Deus o privilégio de mudar a ordem social e perdoar os pecados e o coloca nas mãos da própria humanidade, do ‘filho do homem’. Não é por nada que a multidão exclama: “Nunca vimos uma coisa assim!”
Depois de declarar ao paralítico que ele não deve coisa alguma a ninguém, Jesus ordena que se levante, tome sua cama e volte para casa. E aquele que chegara a Jesus carregado por outros descobre-se livre e independente, senhor do seu próprio destino. Mais que a paralisia física, que o imobilizava na maca e o prendia à miséria, era a teologia que culpava os pobres por suas próprias dores e inocentava o sistema discriminador que tolhia sua liberdade. E Jesus enfrenta e muda radicalmente essa ordem desordenada.
“É nele que todas as promessas de Deus têm o ‘sim’ garantido...”
A divindade transcendente de Jesus se revela na sua encarnada humanidade em favor das pessoas humilhadas e necessitadas. Ele é o amigo dos pecadores, o lixeiro que recolhe e recicla nossas imundícies. E isso é ainda mais que patente no seu nascimento na estrebaria, na sua vida anônima em Nazaré, na sua pregação na Galiléia e na sua morte na cruz entre dois ladrões. Ele é o ‘Amém’ de Deus diante da dingidade dos homens e mulheres e todas as demais criaturas.
Jesus de Nazaré, amigo dos/as pecadores e libertador dos/as oprimidos/as, sim definitivo de Deus à nossa humana natureza: te agradecemos pelos irmãos e irmãs que nos trouxeram ao encontro contigo e com a tua Palavra que nos coloca sobre nossos próprios pés. Fica conosco, para que possamos dançar o samba da dignidade, o frevo da libertação e a marchinha da solidariedade sem fim. Retira a máscara da prepotência, da certeza e do distanciamento que há séculos cobre o rosto da tua Igreja, e faz dela uma comunidade que possibilita aos seres humanos de hoje um encontro vivo contigo, com tua Palavra e com uma comunidade que confirma sua dignidade e liberta sua liberdade. Assim seja! Amém!
Pe. Itacir Brassiani msf
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