Que a saúde se difunda sobre toda a terra!
(Jl 2,12-18; Sl 50/51; 2Cor 5,20-6,2; Mt 6,1-6.16-18)
O ritmo alegre do carnaval ainda ecoa na nossa mente e balança levemente nosso corpo cansado. E já começamos a ser interpelados/as por uma música diferente, em tom menor: “Tu que vieste para que todos tenham vida, cura teu povo dessa dor em que se encerra; que a fé nos salve e nos dê força nessa lida, e que a saúde se difunda sobre a terra.” A Campanha da Fraternidade faz da quaresma um convite e uma possibilidade. É um convite a olhar responsavelmente para frente e para além dos nossos interesses imediatos, a superar uma exclusiva e doentia preocupação apenas conosco mesmos/as, com nossa boa forma física ou com o que passou. Abre-se o tempo de preparação da Páscoa do Senhor na páscoa da história, e esse tempo nos chama à responsabilidade de lutar para que todo o povo brasileiro, sem distinção de classe, idade ou condição econômica, tenha acesso a bons serviços de saúde.
“Voltai para mim de todo coração!”
A tempo quaresmal é positivamente um tempo de concentração e de busca do essencial. Tantas vezes no correr do ano as coisas urgentes furam a fila e se colocam à frente daquelas que são essenciais. A Quaresma nos convida a voltar a Deus, a vencer a tendência à fragmentação, a verter todas as energias ao único objetivo realmente decisivo: construir relações fraternas e uma sociedade justa, comprometer-se responsavelmente com um estilo de vida simples, soliário e sustentável.
Assim, o essencial da espiritualidade quaresmal não é fazer penitência para reparar os abusos que teriam sido cometidos do revelion ao carnaval, mas exercitar a convergência da mente, do coração e das mãos na intensa e exigente tarefa de refazer as relações humanas, de superar os estreitos horizontes dos interesses mesquinhos e imediatos e de elevar o olhar para o amplo horizonte de um sonho de bem viver, em harmonia com todos os seres, inclusive com as inevitáveis doenças e com a morte.
“Rasgai os vossos corações, não as roupas!”
A palavra forte e direta do profeta Joel proclama a bondade e a compaixão de Deus, desperta das ressacas da vida e chama a superar o velho costume de mudar apenas as aparências. “Rasguem o coração e não as roupas! Voltem para Javé, o Deus de vocês, pois ele é piedade e compaixão, lento para a cólera e cheio de amor...” Nada de trocar apenas as máscaras, de renovar somente o guarda-roupa! Novas roupas seriam capazes de esconder nosso descaso com a dor e o abandono dos irmãos e irmãs?
O profeta Joel lembra a necessidade de mudanças mais reais e radicais. Quando fala em rasgar o coração, ele não pretende centrar a atenção nos sentimentos, mas interferir na raiz das nossas decisões e ações. Ele ensina que os gestos externos de arrependimento e de mudança não são suficientes. A verdadeira mudança se revela nas opções, ações e relações. Palavras de efeito, discursos de ocasião, campanhas que duram algumas semanas podem ser apenas cortinas de fumaça para desviar a atenção.
A tradição das comunidades cristãs privilegiou três ações que expressam a mudança de direção e a convergência das forças próprias do tempo quaresmal: a esmola, a oração e o jejum. Mas Jesus Cristo nos convoca à vigilância e à auto-crítica, pois nem mesmo estas ações estão livres da falsificação e do faz-de-conta: elas podem ser motivadas apenas pela busca de aprovação, estima e reconhecimento. De que serve abseter-se de carne e fazer jejum num dia e, nos outros, mergulhar no consumismo doentio?
“Quando derdes esmola, não mandes tocar trombeta...”
Jesus não despreza a costumeira prática da esmola, mas também não se deixa enganar por ela. O que ele pede é que verifiquemos a motivação e a disposição com as quais a fazemos. Ele levanta a questão do horizonte maior no qual esta prática se insere. “Não mande tocar trombeta na frente... Que a sua esquerda não saiba o que a sua direita faz.” Uma esmola prepocupada com publicidade beneficia mais quem a faz do que quem está em necessidade. Seria como recitar um papel num filme ou novela.
O sentido profundo da esmola é a solidariedade e a partilha com os mais pobres. Antes que dar daquilo que sobra ou não faz falta, trata-se de partilhar aquilo que é fruto da terra e do trabalho da humanidade e, por isso, não é nossa propriedade absoluta. A partilha que se sacramentaliza na doação de bens ou no engajamento pela saúde de todos é um sinal externo do desejo voltar nosso coração inteiramente para Deus e centrar nossa vida naquilo que é essencial e urgente.
“Quando orardes, não sejais como os hipócritas...”
Em todas as religiões a oração goza de um apreço privilegiado como expressão da fé e da comunhão com a divindade, e no judaísmo que Jesus conheceu não era diferente. Até hoje não faltam grupos e pregadores que insistem na necessidade de rezar muito, de multiplicar terços, ladainhas, missas e promessas, como se isso bastasse para estar de bem com Deus. Infelizmente, este tipo de insistência acaba desviando a atenção de algo mais essencial e mais profundo.
No Evangelho de hoje Jesus não insiste na quantidade mas na qualidade e na motivação da oração. E começa criticando a postura das pessoas que rezam como se recitassem um papel, disfarçando o desejo de que os outros percebam que estão rezando. A verdadeira oração não vai de mãos dadas com a busca de publicidade. A audiência dessa oração é feita de um só expectador, de um Deus habituado a reconhecer quem não costuma ou não gosta de aparecer.
A oração é abertura radical a Deus e à sua vontade, é superação dos estreitos limites dos nossos gostos, preferências e necessidades. A oração se caracteriza pelo diálogo íntimo e amigo com Aquele que quer nosso bem e que não descansa enquanto todos os seus filhos e filhas não vivam bem. A oração quaresmal que expressa nossa volta ao essencial precisa ser capaz de apresentar a Deus as dores e os clamores dos doentes e idosos que padecem nas filas e são vistos como peso pelos próprios familiares.
“Quando jejuardes, não fiqueis de rosto triste...”
Depois de passar um tempo um pouco exilado da nossa cultura, um certo tipo jejum voltou a estar na moda e hoje recebe o nome de dieta. Mas quem faz dieta geralmente está muito preocupado/a consigo/a mesmo/a – com a saúde ou com a aparência – e pouco interessado/a nos efeitos ambientais do consumismo predatório. No tempo de Jesus muitas pessoas usavam o jejum, que era um sinal de arrepedimento e mudança, para impressionar os outros e aumentar a influência sobre eles.
Para o cristianismo, o jejum é um recurso pedagógico que possibilita a experiência da vulnerabilidade e das carências humanas das quais normalmente. Assimilamos o mito da satisfação plena, da vida sem fim e do poder que podemos exercer sobre tudo e sobre todos, e assim pretendemos evitar tudo o que lembra carência, fragilidade, limite, doença ou morte. O jejum desmascara essa mentira e nos coloca cara a cara diante da realidade.
Na espiritualidade quaresmal o jejum está a serviço da renovação e da preservação da vida em todas as suas expressões. E essa renovação se expressa na abertura humilde e reverente a Deus, o único absoluto, na consciência da nossa interdependência em relação aos nossos irmãos e irmãs, na relação de interdependência com o Planeta e na partilha dos alimentos que deixamos de consumir. Por isso, o jejum precisa ser acompanhado pelo perfume da alegria estampada em todo o nosso ser.
“Em nome de Cristo, vos suplicamos: reconciliai-vos com Deus!”
Reconciliar-se com Deus significa reconhecê-lo como horizonte maior das nossas opções, como Caminho que, mantendo-nos abertos/as e solidários/as, nos leva ao encontro dos irmãos e irmãs. Reconciliar-se com Deus implica em voltar às nossas próprias raízes e ali encontrar não apenas um ‘eu’, mas também um ‘outro’ e um ‘nós’. Significa ouvir os clamores e perceber as dores de milhares de doentes e idosos que mendigam atendimento e saúde, um direito que lhes é assegurado constitucionalmente.
Espírito Criador, tu sopras chamando à vida e sustentanto todos os seres, e falas nas palavras aparentemente ininteligíveis dos clamores dos idosos e doentes: penetra nossa mente e guia nossos passos durante este tempo quaresmal, ensinando-nos a cuidar da vida, e não apenas da nossa. Ajuda-nos a transformar a esmola em solidariedade, o jejum um ato de responsabilidade ambiental, a oração em peregrinação para além dos estreitos limites do bem-estar da nossa geração. E que a tua luz faça vir à luz nossa verdadeira dignidade, escondida e amordaçada por tantas máscaras. Assim seja! Amém!
Pe. Itacir Brassiani msf
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