Jesus cura os doentes e resgata a cidadania dos excluídos.
(Lv 13,1-2.44-46; Sl 31/32; 1Cor 10,31-11,1; Mc 1,40-45)
Nestas primeiras semanas do ano somos pouco a pouco introduzidos/as no mistério divino e humano que vai se revelando em Jesus Cristo. Após ter-nos convidado a participipar de sua missão de reunir o seu povo disperso e anunciar a chegada do Reino de Deus e a consequente punição para os opressores, Jesus foi à sinagoga enfrentar a autoridade dos escribas, e à casa de Pedro, onde curou muitos doentes. Depois de uma madrugada de oração, no final da qual ampliou os horizontes da sua missão, ele é procurado por um leproso. Assim, progressivamente vamos reconhecendo em Jesus um homem absolutamente livre e libertador, capaz de colocar a pessoa humana necessitada ou marginalizada como prioridade absoluta. Como nos dirá mais tarde, para um cristão e missionário/a uma só pessoa em situação de risco vale mais que 99 que estão seguras e em paz.
“Durante todo o tempo em que estiver contaminado de lepra, será impuro.”
Luciano era um jovem que vivia nas ruas de Belo Horizonte. Eu o conheci em 1990, quando trabalhava na Pastoral dos Sofredores da Rua. Luciano vivia da coleta de papel na área central da cidade e morava num barraco improvisado, numa área reservada para selecionar o lixo coletado. Não preciso dizer que essa sua condição por si mesma expressava e, ao mesmo tempo, atraía a marginalização social.
Mas no barraco Luciano convivia com um companheiro que se chamava Paola, um travesti. Não sai da minha memória o constrangimento que experimentei quando sentei a primeira vez ao lado deles, num Círculo Bíblico. Além de ser vítima da miséria e mal-vista pelo ofício de catadores de papel, aquela dupla sofria uma marginalização suplementar, inclusive da minha parte, por serem homossexuais.
Em meados daquele ano Luciano adoeceu gravemente. Os exames revelaram que ele estava com AIDS. Depois dos exames, sua saúde continuou piorando. A equipe da Pastoral dos Sofredores da Rua procurou um jeito de interná-lo. Ficou uma semana na maca de um hospital ‘por falta de leito’ e só foi baixado quando chamamos a Rádio Globo. Pobre, homossexual e aidético: uma tríplice marginalização.
Fui ao hospital visitá-lo e dar-lhe a unção dos enfermos. Jamais esquecerei o olhar assustado e delirante do Luciano quando me viu entrar com aquela roupa e a máscara que o hospital me impôs. Além de AIDS ele tinha hepatite, e eu fui proibido de tocá-lo. Como ungi-lo sem tocá-lo? Não tocá-lo seria confirmar sua condição de impuro, indesejável, e marginalizado. Eu desobedeci a ordem do hospital. E sobrevivi!
“Um leproso aproximou-se de Jesus...”
A doença nunca é apenas doença. A doença não se reduz a um fato objetivo ou a uma questão biológica. Mantidas as devidas diferenças entre a situação de um doente de classe média ou alta e um doente de classe pobre, à questão da dor física sempre vem como acréscimo o sentimento que a acompanha: de sujeira, castigo, abandono; de ser incômodo e peso para os outros; etc.
Isso é mais ou menos semelhante nas diversas culturas, inclusive no tempo de Jesus. Mas naquele tempo, por várias razões, a lepra era tratada como uma das piores doenças. A lei determinava que as pessoas que tinham essa doença deveriam ser separadas da convivência familiar e social e morar fora das aldeias, em bosques ou cavernas. E eram proibidas aproximarem-se das pessoas considaradas sãs.
As pessoas leprosas eram declaradas impuras e assim permaneciam enquanto durava a doença. É fácil perceber que, além de doentes, os leprosos eram colocados literalmente à margem da sociedade e considerados intratáveis, impuros, sem dignidade. A condição de impuro se sobrepunha à condição de doente e a tornava ainda mais pesada.
“Jesus encheu-se de ira...”
O que chama a atenção é que o leproso do evangelho de hoje se aproxima de Jesus. Essa aproximação é uma transgressão da lei que demarcava muito bem os limites da sua movimentação. Jamais um leproso poderia aproximar-se de qualquer pessoa sã, e deveria gritar de longe que ninguém se aproximasse dele porque era impuro. A força que sustentou aquele leproso anônimo na sua transgressão foi a confiança na acolhida purificadora por parte de Jesus.
O leproso chegou perto de Jesus e pediu de joelhos: “Se queres, tu tens o poder de me purificar”. Não deixa de causar surpresa o registro de que Jesus ficou muito irritado (embora algumas traduções amenizem e falem em compaixão). Seguramente, Jesus não se irritou com o leproso que a ele se dirigiu com tanta coragem e humildade, mas contra a terrível ideologia que colocava sobre o fardo da doença o carimbo da impureza e da marginalização.
Mas a irritação de Jesus pode vir também do conhecimento de que aquele leproso já tivesse procurado os sacerdotes para ser purificado e nada conseguira. Ou seja, sua irritação tinha uma dupla razão: os leprosos eram marginalizados; para serem purificados e reintegrados na sociedade deveriam pagar uma cota suplementar (oferecer um sacrifício especial). Eles deveriam pagar a conta da própria marginalização...
“Eu quero! Fique purificado!”
Jesus “estendeu a mão, tocou nele, e disse: ‘Eu quero, fique purificado!’ No mesmo instante a lepra desapareceu e o homem ficou purificado.” Jesus não se distancia da doença e da impureza que pesa sobre os marginalizados, mas deixa-se tocar pela miséria deles e, ao mesmo tempo, os purifica com seu toque. Hoje sabemos muito bem da importância da expressão física de carinho e acolhida na recuperação dos doentes.
As leis do antigo testamento davam ao sacerdote o poder de declarar um doente impuro e, quando fosse o caso, declarar oficialmente também sua cura e purificação. Declarando puro aquele leproso Jesus desafia a lei e a autoridade sacerdotal, ocupa seu lugar. Enviando-o ao templo, Jesus está reintroduzindo no mais sagrado dos espaços aquele condenado à viver na margem e sem cidadania. Aquele leproso transformado em cidadão é enviado para testemunhar contra os sacerdotes, e assim é envolvido na própria missão de Jesus.
“Ele ficava fora, em lugares desertos.”
O leproso reinserido socialmente não vai ao templo, mas se transforma em apóstolo: “Começou a pregar muito e espalhar a notícia.” Aquele homem anônimo, antes condenado a viver nos lugares remotos e desertos, voltou para o seio de sua família e sua cidade, e tornou-se testemunha de Jesus e evangelizador. Mas, como consequência, agora é Jesus que não pode mais entrar numa cidade...
Parece que a impureza passou do leproso para Jesus. Com seu toque humanamente divino Jesus purificou o leproso e assumiu sua impureza, assumiu na sua própria carne o pecado do mundo. O doente antes excluído se torna cidadão e Jesus experimenta a perseguição. Mas os lugares desertos e afastados das cidades não são obstáculo para sua missão libertadora. “De todos os lados as pessoas iam procurá-lo.” Jerusalém se esvazia, o templo fica estéril e o povo procura Jesus no deserto.
“Sejam meus imitadores como eu o sou de Cristo.”
A ação de Jesus provoca conflitos e é muito mais que um trabalho médico-hospitalar. Quando declara purificados os leprosos Jesus está desmascarando a ideologia opressora e excludente e reafirmando a dignidade das pessoas sem didnidade, promovendo sua cidadania. Sua ação é uma espécie de assalto simbólico à hegemonia dos escribas, doutores da lei e sacerdotes.
São muitos e diversos os terapeutas que hoje, como Paulo, se tornam imitadores de Jesus Cristo, mesmo sem se apresentarem como tal. As pessoas que lutam pela paz, pacificando as relações – familiares ou internacionais – são terapeutas. São vencedores/as do mal os/as educadores que desperatm o que há de mais belo e mais nobre no interior de cada pessoa. São terapeutas espirituais aqueles/as que cultivam as perenes sementes da hospitalidade, da ternura, da reverência e da sobriedade.
Estende tua mão, Jesus de Nazaré, e toca as multidões que jazem à beira da vida, jogada em situações nas quais é quase impossível sobreviver. Converte a mão da tua Igreja em mão acolhedora e benfazeja, eliminando as cômodas mãos postas, os dedos em riste e os punhos fechados. Que a comunidade dos/as que acreditam em ti trabalhem sem tréguas pela tua glória, que é a vida dos pobres, e não seja pedra de acusação ou de tropeço para quem quer que seja. Amém! Assim seja!
Pe. Itacir Brassiani msf
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