O Corpo de Cristo nos chama à liberdade e à fraternidade.
Quem é cristão
e católico não tem dúvidas: a Eucaristia faz a Igreja e ocupa um lugar central
na sua espiritualidade. Mas nunca é demais lembrar também que quem faz a
Eucaristia é a Comunidade eclesial: foi ela que, partindo do evento Jesus
Cristo, definiu seu sentido teológico, estabeleceu regras e barreiras e
colocou-a sob o controle dos ministros ordenados. Ao celebrarmos a festa
popular do Corpus Christi não podemos
esquecer que a Eucaristia é um sacramento, e como tal, remete a Jesus Cristo,
mediador da Aliança, horizonte da nossa vocação à liberdade e ao serviço.
Depois de
séculos de um perigoso processo de distanciamento do Reino de Deus e de uma
intensa teologização, é difícil libertar a Eucaristia da noção de sacrifício da
qual se tornou refém. A noção de Aliança, anterior e mais fundamental que a de
Sacrifício, foi diminuída e quase eliminada. E acabamos esquecendo que, mesmo na
tradição judaica, o sangue dos animais sacrificados aspergido sobre o povo era memória
da Aliança entre Javé e seu povo. O centro do rito não era o sacrifício de
animais mas a Aliança entre Deus e o seu povo escolhido. E Jesus é mediador de
uma aliança nova e superior...
Damos por
descontado que a última ceia de Jesus, base narrativa e simbólica sobre a qual
se construirá a Eucaristia, foi uma celebração pascal no horizonte da tradição
judaica, memória do êxodo e da Aliança que constituiu um povo. Mas um olhar
atento aos relatos de Marcos nos revelará que Jesus e seus discípulos não
celebraram a páscoa conforme as prescrições do judaísmo: não se fala do
cordeiro pascal, nem se diz que ele fora sacrificado no templo. E ao invés de
descrever os pormenores da ceia pascal, Marcos descreve o clima de tristeza e
apreensão frente às traições que se insinuavam.
É verdade
que Jesus cumpre o tradicional gesto doméstico e amistoso de tomar o alimento e
a bebida, proferir a oração de bênção e de agradecimento e servi-los aos
comensais. Mas ele introduz duas novidades que divergem das prescrições
rituais: não serve o cordeiro e não relaciona o pão e o vinho com o evento do
êxodo, mas com a sua história pessoal, com os passos que estava para dar. Repartindo
o pão, ele diz “isto é o meu corpo”, e, passando o cálice de vinho, anuncia
“este é o meu sangue da nova Aliança”. Fica muito claro que Jesus vincula a
ceia consigo mesmo e com uma Aliança nova.
Ademais, Marcos
insinua que este cordeiro é o próprio Jesus, e nos apresenta três elementos
simbólicos que são mais que simples detalhes. O primeiro: a comunidade dos
discípulos se move discretamente, escondendo-se para evitar riscos (uma
comunidade ameaçada). O segundo: a senha que Jesus dá para que os discípulos
encontrem um lugar seguro para celebrar a páscoa: um homem carregando uma bilha
de água (tarefa própria das mulheres!). O terceiro, mais importante e
fundamental para a compreensão da Eucaristia: a ceia de Jesus com os discípulos
não termina em festa, mas em jejum! Jesus
diz que não beberá mais vinho até que chegue o vinho novo do reino de Deus.
Aqui
aparece o vínculo essencial entre Eucaristia e futuro, entre a ceia presente e
o advento do Reino de Deus. A Eucaristia é profecia e antecipação simbólica do
futuro, do Reino. A libertação celebrada na Eucaristia não é memória de um
passado glorioso, mas tarefa empenhativa que engendra o futuro, Aliança nova e
irreversível mediante a qual Deus avalisa nossos anelos de liberdade e de vida
plena. Jesus liberta a ceia pascal do seu belo mas insuficiente vínculo com o
que foi e nos engaja na construção daquilo que virá, mesmo que isso exija renúncia
às atrações dos velhos vinhos.
A festa do
Corpo de Deus lembra e afirma que Jesus se entrega a nós como comida e bebida e
nos convoca às ruas para proclamar que a liberdade está na frente e no futuro,
e não atrás, num passado idealizado. Ele pede que levemos a sério que a Ceia
não é mera memória, mas também antecipação simbólica do Reino de Deus, que
construiremos com criatividade e ousadia. Por mais nobre que seja o ostensório e
por mais belos que sejam os desenhos e ornamentos que enfeitam as ruas, a
Eucaristia não está aí para ser adorada e incensada, mas para ser tomada como
comida e bebida.
Jesus de Nazaré, filho de Deus e filho da
Humanidade, corpo dinamizado pelo Espírito e Espírito feito carne, pão partilhado
e vinho da amizade: transforma nossa vida em Eucaristia e dá-nos uma insaciável
fome de comunhão. Dá-nos um coração grande para amar e forte para lutar, tanto
no acolhedor ambiente dos nossos templos como no espaço aberto das ruas e
avenidas. E não permitas que reduzamos tua ceia a uma simples memória e
tranformemos o pão em amuleto. Ensina-nos a celebrar a ceia com os pés prontos
caminhar e os olhos fixos no Reino que sempre está vindo. Assem seja! Amém!
Pe. Itacir Brassiani msf
(Êxodo 24,3-8 * Salmo
115 (116) * Carta aos Hebreus 9,11-15 * Evangelho de Marcos 14,12-16.22-26)
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