quarta-feira, 29 de maio de 2013

9° Domingo do Tempo Comum - Ano C

A Palavra de Jesus Cristo cura, liberta e guia
(1Rs 8,41-43; Sl 116/117; Gl 1,1-2.6-10; Lc  7,1-10)

Já faz alguns anos que ressoa por todos os lados, como se fosse um novo evangelho, o anúncio que que vivemos numa aldeia global, que o mundo foi globalizado e que não existem mais fronteiras. E isso parece verdade, ao menos na perspectiva do capitalismo financeiro. Mas se vivemos de fato num mundo sem fronteiras, não podem existir cidadãos de segunda classe ou gente excluída da cidadania. Junto com as fronteiras, devem desaparecer as hierarquias que dividem e classificam o mundo entre bons e maus, superiores e inferiores, vitoriosos e perdedores, beneficiados e penalizados. Nisso, assumindo uma tradição subterrânea mas viva no interior do judaísmo, Jesus foi longe, muito longe.
“Quando terminou de falar estas palavras...”
O evangelho de hoje começa onde termina o ‘sermão da montanha’ (que, segundo Lucas, foi proferido numa planície). Jesus havia falado que o Reino de Deus é dos pobres, que os famintos serão saciados, que aqueles que choram seguramente ainda poderão rir. Ensinara que devemos amar até os inimigos e fazer o bem a quem nas faz o mal. Dissera também que é pelos frutos que produzimos que revelamos quem somos, e que seu ensinamento não é para ser admirado, mas colocado em prática.
Toda mudança nasce no ventre do sonho e se nutre da imaginação. “Imagine não existir nenhum inferno, e acima de nós só o céu, e todas as pessoas vivendo para o hoje. Imagine não existir países, nada pelo que matar ou morrer. Imagine todas as pessoas vivendo a vida em paz. Imagine não existir posses, necessidade, ganância ou fome; uma irmandade entre os homens. Imagine todas as pessoas compartilhando todo o mundo... Você pode dizer que eu sou um sonhador, mas eu não sou o único...”
Quem não lembra deste convite de John Lennon a imaginar coisas que são aparentemente delirantes e impossíveis? Para muita gente estes versos soam como pura fantasia, como as palavras de Jesus pareciam aos seus contemporâneos e conacionais um sonho delirante, fruto de uma imaginação fértil. Se bem que ele insistiu que ouvir sua Palavra, cantar um hino, fazer uma prece e cruzar os braços é tão arriscado como construir uma casa sobre a areia...
“Havia um centurião...”
O evangelista nos diz que Jesus havia deixado o ambiente uniforme do judaísmo e adentrado num espaço no qual se cruzavam culturas e interesses: a cidade de Cafarnaum. Este era também o momento de passar da prédica à prática. E Jesus logo se encontra com um personagem sem nome, mas com uma posição social bem definida: um chefe de uma centúria romana, um pagão detentor de poder militar. Era um  homem benquisto pelos judeus, e tinha consciência do poder que exercia sobre os subalternos.
Considerando a pregação recém pronunciada, que atitude se esperava de Jesus frente a um homem excluído por causa de sua origem étnica (estrangeiro) e da sua condição religiosa (pagão), mas que tinha um bom posto na da pirâmide do poder repressivo? Os anciãos que faziam as vezes de mensageiros do centurião sublinham seus merecimentos: era uma autoridade que, não obstante ser agente do poder invasor, demonstrou amar os hebreus e até financiou a construção de uma sinagoga para eles.
O fato que move este episódio é o servo do centurião, que, sendo muito estimado pelo seu senhor, estava doente, à beira da morte. Seria uma imagem da situação do povo hebreu, sob o domínio do poder estrangeiro? Mesmo que existissem relações amistosas entre nativos e invasores, o poder romano não era capaz de garantir a vida e o bem-estar do povo hebreu. E o poder hierárquico não servia para nada nestas circunstâncias, a não ser para pedir socorro.
“Ele merece esste favor...”
É importante observar o que o centurião pede a Jesus e como faz chegar a este seu pedido. O pagão romano não pede nada para si, mas em favor do seu escravo. Tendo ouvido falar de Jesus, usa o poder que exerce e envia um grupo de anciãos para fazer chegar a Jesus seu desejo: que Jesus viesse à sua casa para curar seu dependente. Diante de Jesus, os notáveis do judaísmo insistem na dignidade e nos méritos deste representante dos invasores. “Ele merece este favor porque ama o nosso povo...”
Mas a imagem que o centurião anônimo tem de si mesmo não corresponde àquela dos anciãos. Antes que Jesus se aproxime da sua casa, envia outro grupo de embaixadores – ele tinha poder para isso! – portando uma nova mensagem: “Não te incomodes, pois eu não sou digno de que entres em minha casa. Por isso, nem fui pessoalmente ao teu encontro...” Parece que os anciãos se movem no horizonte do mérito e da honra, mas este pagão tem plena consciência do que é.
O que este chefe pagão faz é insistir na força da Palavra de Jesus: “Mas dize uma palavra, e meu servo ficará curado.” Ele sabe que nem o judaísmo, nem o poder do exército romano, podem garantir a vida do povo. Ele tem consciência do próprio poder de mando, mas sabe que não serve para nada, a não ser para compreender que a vontade e as ordens de Jesus estas sim têm força de vida. Com sua Palavra, Jesus pode ordenar ao mal que deixe de dominar seu amado povo.
Nem mesmo em Israel encontrei uma fé tão grande!”
Lucas diz que Jesus ficou admirado com a confiança demonstrada por esta autoridade militar de origem pagã. “Jesus ficou admirado. Voltou-se para a multidão que o seguia e disse: ‘Eu vos digo que nem em Israel encontrei uma fé tão grande’”.  Mas onde Jesus viu esta demonstração de fé? Na insistência no próprio poder de dar ordens? Ou na renúncia a ostentar qualquer mérito, no reconhecimento da própria indignidade e na intercessão por uma pessoa subalterna?
Jesus já havia reconhecido e elogiado a fé prática de um grupo que fizera um paralítico descer com sua maca pelo telhado de uma casa para colocá-lo diante dele e ser curado (cf. Lc 5,17-26). Também ‘viu’ e reconheceu a força da fé um pouco medrosa da mulher doente que o tocou e ficou curada (cf. Lc 8,40-48).  Reconheceu que foi a fé do leproso que o purificou da doença que o excluída da vida social (cf. Lc 17,11-19). E anunciou publicamente que foi a fé insistente que salvou o cego de Jericó (cf. Lc 18,35-43).
A fé é uma atitude que envolve a pessoa por inteiro, que move todas as suas capacidades e energias, que abre os olhos para encontrar soluções humanas para os problemas humanos. A fé não vai bem com passividade, mas também não casa com o poder de coerção e com o sentimento de ser merecedor, de exigir direitos diante de Deus. A fé também não se identifica com a simples acomodação às leis e hierarquias, pois manifesta frequentemente uma força que rompe com o que é estabelecido.
“Escuta e atende todos os pedidos desse estrangeiro...”
Todos conhecemos muito bem a tendência nacionalista e exclusivista que predominou no judaísmo do Antigo Testamento. Mas não podemos esquecer um aspecto minoritário, resgatado e valorizado por Jesus: a abertura a todos os povos e culturas. É isso que expressa a oração de Salomão (cf. 1Rs 8,22-54), da qual são extraídos os versículos da primeira leitura. Salomão pede a Deus que não deixe sem resposta a prece dos estrangeiros que rezam no templo de Jerusalém.
Essa perspectiva inclusivista e universalista – essencialmente católica! – aparece também no mais breve dos salmos, proposto na liturgia de hoje. “Aleluia! Povos todos, louvai o Senhor, nações todas, dai-lhe glória; porque forte é seu amor para conosco e a fidelidade do Senhor dura para sempre.” O amor de Deus revelado na história não é apenas forte e duradouro: é também universal, chega a todos os povos e nações e recebe louvor em todas as línguas e culturas.
 “Povos todos, louvai o Senhor!”
Jesus de Nazaré, coração sem fronteiras, liberdade sem hierarquias: Guia nossas comunidades e toda a Igreja por caminhos que as levem a ultrapassar as fronteiras estabelecidas pelo medo ou pelos interesses mesquinhos, assim como as hierarquias que se prestam a mantê-la a qualquer custo. Não permitas que abandonemos teu Evangelho libertário e acomodemos tua mensagem a um mundo construído sobre o privilégio de poucos. Não deixes que o medo e o comodismo nos impeçam de ‘imaginar’ e de ‘construir’ um mundo sem fronteiras nem hierarquias. Ajuda-nos a admirar a fé de quem crê diversamente e aprender com suas atitudes de compaixão e solidariedade. E mantém sempre diante dos nossos olhos a figura do estrangeiro que nos ensina o modo correto de se aproximar de ti, insistindo: “Senhor, eu não sou digno que entreis na minha morada, mas dizei uma Palavra e eu serei salvo!” Assim seja! Amém!

Pe. Itacir Brassiani msf

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