segunda-feira, 27 de maio de 2013

Solenidade do Corpo e Sangue de Jesus

O corpo de Cristo é a comunidade que partilha
(Gn 14,18-20; Sl 109/110; 1Cor 11,23-26; Lc 9,11-17)

Ainda embalados pelo alegre dinamismo da Páscoa, pelo sopro do Espírito Santo e pela comunhão trinitária, celebramos a solenidade de Corpus Christi. Esta festa é uma forma de recordar e sublinhar o o dinamismo fundamental da vida cristã: partilha, comunhão, dom de si, serviço. A solenidade, reforçada pelo incenso abundante, pelas ricas alfaias, pelas procissões populares e pelas ruas enfeitadas, quer enfatizar que Cristo se faz sacramentalmente presente na comunidade dos irmãos e irmãs que se solidarizam na partilha do pão e no dom da vida, que se reúnem para celebrar em torno da Mesa e da Palavra e que fazem memória da doação maior de Jesus e da nuvem de testemunhas que o seguiram. A Eucaristia não é algo a ser adorado e exposto publicamente, mas expressão do amor de Deus por nós, de um amor que chega ao seu ápice quando se torna comunhão e amor ao próximo em nós.
“Bendito seja o Deus altíssimo...”
A solenidade que hoje celebramos foi instituída no ano de 1864, pelo Papa Urbano IV, com o objetivo de sublinhar a presença real de Cristo no sacramento da Eucaristia. Infelizmente, na França dos séculos XV e XVI – mas também em alguns outros lugares em diferentes épocas – esta celebração acabou se tornando uma espécie de provocação pública dos católicos contra os protestantes. Na França, os católicos desfilavam armados, e a procissão eucarística frequentemente acabava em confronto violento contra os “inimigos”. Como foi possível chegar a algo tão contrário ao sentido cristão da Eucaristia?!
Ma este é um dia solene e belo, comparável àquele da nossa primeira eucaristia. Nem a exigência de comportar-se exemplarmente, nem a coreografia a ser cumprida minuciosamente, nem a roupa nova e a presença da família e dos parentes conseguiram diminuir o sentido profundo daquela nossa primeira participação na mesa da Eucaristia. “Deus se entregou por mim! Ele vem morar em meu coração purificado pela confissão e disposto a sempre amar e servir... Bendito seja o Deus altíssimo”
Entre tantos testemunhos da emoção sincera que muitos experimentaram na primeira eucaristia, recordo o que ocorreu com João Berthier, cuja primeira Eucaristia teve lugar na festa da Santíssima Trindade, em 1852. Um colega diz que ficou profundamente tocado ao perceber que, ao seu lado, depois de receber a Eucaristia, Berthier chorava. Só mais tarde seu amigo entenderia que aquelas não eram lágrimas de tristeza, mas de uma gratidão e de uma felicidade não traduzíveis em palavras.
 “Fazei isto em minha memória.”
A festa de hoje também soleniza a beleza profunda da nossa Eucaristia cotidiana ou dominical. Mais que uma obrigação, participar frequentemente da Eucaristia é uma necessidade e um direito dos/as discípulos/as de Jesus Cristo; uma forma de vencer a sensação e a tentação da fragmentação que nos ronda nas atividades cotidianas; uma oportunidade de acolher a Palavra sempre viva de Jesus Cristo, de confirmar nossa adesão ao seu Testamento e de tecer o fio do vínculo que nos une aos outros/as.
Mas é preciso ter presente que Jesus, quando ordena a seus discípulos “façam isso em memória de mim”, não está intituindo um rito a ser repetido com reverência mas propondo uma forma de vida a ser assumida com coerência. Como todos os gestos simbólicos que repetimos cotidianamente, a Eucaristia é um sinal sacramental que aponta para algo mais profundo e transcendente: em Jesus, Deus se faz dom por nós, a fim de que a nossa vida adquira forma de dom solidário pelo próximo. É assim que somos uma memória viva de Jesus Cristo no mundo.
Diante do dom total de Jesus Cristo pela vida do mundo que celebramos em cada Eucaristia, recolhemos nas mãos o melhor de nós mesmos/as e, como o rei Melquisedec, oferecemos a Deus em favor dos irmãos e irmãs. Em todos os pequenos e grande gestos de partilha Deus vai vencendo as forças que se opõem ao ser humano e vai regenerando o céu e a terra.
“Dai-lhes vós mesmos de comer!”
Voltemos nossa atenção para o Evangelho que nos é proposto neste dia. Pouco antes desta cena, Jesus havia convocado os Doze e lhes havia dado “poder e autoridade sobre todos os demônios e para curar doenças” (Lc 9,1). Quando o grupo volta desta espécie de estágio missionário, Jesus o leva para descansar fora do território judaico. Então, os apóstolos contam animados o sucesso que haviam experimentado. Não obstante ser aquele um lugar deserto, as multidões necessitadas vão atrás de Jesus e dos discípulos. Sem se incomodar, Jesus lhes fala do reino de Deus e cura as pessoas doentes.
Mas parece que o repentino e recente sucesso havia subido à cabeça dos apóstolos. A impressão é que eles se sentem uma elite especial e separada do resto do povo, um grupo que ocupa um grau hierárquico superior, um grêmio fechado e dotado de poder e autoridade recebida de Deus. No fim do dia, o grupo dos Doze se aproxima de Jesus e simplesmente lhe dá uma ordem: “Despede a multidão para que possam ir aos povoados e sítios vizinhos procurar hospedagem e comida...” Como se a comunidade eclesial e suas lideranças não exististisse exatamente para dar uma resposta efetiva às alegrias e tristezas, angústias e esperanças das pessoas e grupos humanos concretos...
“E todos comeram e se saciaram...”
Jesus reage ordenando sem meias-palavras que são eles os encarregados de cuidar do povo. Jeus não se importa se eles têm ou não provisões suficientes, e pede que organizem o povo em comunidades. Depois de se apropriar dos poucos pães e dos peixes dos apóstolos, como um pai de família, Jesus eleva, abençoa, parte e dá aos discípulos para que distribuam. Termina o tempo do “cada um para si” e começa o tempo do convívio, da partilha e do serviço. Inaugura-se o tempo de comunhão.
É possível que aquela multidão de gente necessitada fosse excluída do judaísmo, gente que não merecia nenhuma consideração da parte das autoridades religiosas de Jerusalém. Mas essa gente recebe atenção prioritária da parte de Jesus, e o mesmo deve valer para a Igreja. “Todos comeram e se saciaram.” Depois que estes forem servidos, a sobra – 12 cestos, 12 tribos de Israel – vai para os demais! A atenção dos cristãos é inclusiva e universal, mas dá prioridade aos últimos ou excluídos.
“Isto é o meu corpo entregue por vós...”
Viver a Eucarista é entrar nesta lógica do dom, da prioridade dos últimos e mais frágeis. Não consigo entender uma Eucaristia que exclui, pois diante deste sacramento não se deve dizer “se aproxime da mesa da Eucaristia quem for digno/a e estiver preparado/a”, mas “Senhor, eu não sou digno de participar da tua mesa...” A Eucaristia é um espírito a ser encarnado, e não uma doutrina que recrimina e exclui, ou um objeto a ser reverenciado.
Santo Tomás de Aquino diz que na Eucaristia temos o “documento do imenso amor de Cristo pela humanidade” e “fazemos memória da altíssima caridade que Cristo demonstrou na sua paixão”. A questão central não é tanto sua presença no pão quanto seu caminho de amor apaixonado e solidário pela humanidade. O ponto central não é propriamente a transubstanciação do pão e do vinho mas a presença real e contínua de Cristo nos nossos gestos de partilha e solidariedade.
“Vos sois o corpo de Cristo e, individualmente, sois membros deste corpo”, diz Paulo (1Cor 12,27). A nossa vocação é nada mais e nada menos que ser o corpo histórico de Cristo no mundo: um corpo feito dom e comunhão; um corpo no qual os membros são iguais, diferentes e reciprocamente solidários; um corpo no qual os membros mais frágeis e considerados menos decentes são tratados com maior honra.
“Até que ele venha...”
Como povo reconciliado, deixamos juntos/as o ambiente cálido e amistoso da mesa da Eucaristia para levar seu dinamismo ao coração da cidade. Depois de participar agradecidos/a da Ceia na qual Jesus sacramentaliza sua vida feita dom, vamos às ruas da cidade para levar a todos os cantos e brechas o “vírus da Eucaristia”, a sede de comunhão, o propósito irrevocável de dar o melhor de nós pelos outros.
Eu não imagino esta caminhada com cânticos como “hóstia branca, no altar consagrada...” ou “queremos Deus, homens ingratos”. Cabem melhor convites e anúncios como este: “Entra na roda com a gente também! Você é muito importante! Vem!” Ou então: “Desempregados, pecadores, desprezados e os marginalizados... Venham todos se ajuntar à nossa marcha para a nova sociedade. Quem nos ama de verdade, pode vir que tem lugar!” Afinal, o corpo de Cristo é a comunidade de irmãos e irmãs!

Pe. Itacir Brassiani msf

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