terça-feira, 17 de julho de 2018

POESIA E REALIDADE

Em menos de dois anos, celebraremos 110 anos do debut Missionário da Congregação. Por isso, estando de passagem por Natal (RN), e tendo contemplado a torre da igreja São Pedro, agrada-me  disponibilizar  um belo depoimento do Pe. Júlio Maria de Lombaerde msf, missionário enviado ao Brasil em 1912, que foi quem projetou, mais tarde, a referida torre. Depois de 6 meses de introdução à língua e aos costumes brasileiros, Pe. Júlio Maria celebrou sua primeira missa pública  na noite do Natal de 1912, em Ceará-Mirin (RN). Com seus reconhecidos dotes literários e poéticos, Pe. Júlio Maria relata o significado e o impacto desta experiência no seu jovem coração missionário. O texto faz parte do livro Diário Missionário do Pe. Júlio Maria (tradução do Pe. Demerval Alves Botelho SDN. O Lutador, Belo Horizonte, 1991, p. 122-124).

À tarde (do dia 34.12.1912), dois homens vieram me buscar (em Ceará-Mirim, RN), com um cavalo arreado, para levar-me ao lugar, onde eu devia celebrar a missa de meia-noite. Como a distância não passava de 6 km, saímos às 22:00 h, para estarmos no lugar ali pelas 23:00 h.
Que viagem emocionante e quantas recordações me vinham ao espírito! O tempo estava calmo, de uma calmaria que tinha algo de majestoso. A lua espargia sobre as montanhas e pelas planícies uma luz suave, cor lilás. Ao longe se destacava a superfície das montanhas com nesgas de nuvens brancas. Parecia que os coqueiros esguios e as palmeiras-reais se banhavam à luz da lua. No firmamento, brilhavam algumas estrelas, comunicando à estrada longa e azulada, uma nota vibrante, quase como uma voz que murmurava os cantos dos anjos.
Tinha naturalmente os olhos fixos naquele espetáculo e, deixando o cavalo andar com seus passos cadenciados, fiquei absorto em pensamentos e rezava. Meu desejo era de chorar e de cantar ao mesmo tempo.
Chorar!... Por que chorar, quando tudo anunciava alegria e felicidade? Quando tudo se dispunha a repetir o canto de entrega e de amor? É que o que provoca lágrimas não são somente as grandes alegrias e grandes sofrimentos. Existe também um certo conjunto de coisas agradáveis, tristes, majestosas sobretudo, que emocionam e que elevam. E este era o meu caso.
O pensamento do Natal me enchia de alegria e consolação. A vista daqueles prados imensos, quase desertos, que se estendiam em todas as direções, cuja silenciosa monotonia não era quebrada por nada, a não ser pelo canto, ainda que mais monótono das cigarras e pela passagem de algum animal noturno, à espreita de alguma presa. Tudo isso me comunicava uma espécie de melancolia.
Afinal, dominando todas essas impressões, veio-me à lembrança a Sagrada Família em sua viagem de Nazaré a Belém, quase à mesma hora, no mesmo dia, para comemorar o mistério, cujo aniversário íamos celebrar. A grandeza desse espetáculo me cativava, enchia-me a alma de emoções. Parecia mesmo encher-me os olhos de uma visão que eu não poderia deixar de ter.
Às 23:00 h chegamos no povoado. O povo estava lá. Uns de pé e outros sentados ao redor da igreja, conversando e cantando. O barulho dos passos dos nossos cavalos anuncia-lhes nossa chegada. Logo todos se levantam e gritam: “É o padre que está chegando! O padre veio mesmo!...”
Rodeiam-me, olham para mim, examinam e vêm beijar-me as mãos. As mães, com os filhos pequenos nos braços, inclinam-se à minha passagem e me pedem que os abençoe. Outras, mais desinibidas, num gesto de fé tão sublime e com toda a simplicidade, pegam minha mão e, depois de beijá-la, levam-na aos lábios dos filhos. Coitadas das velhas vovós, cuja idade impede-lhes de acompanhar-me... Pegam-me na batina à minha passagem, ou me prendem pela faixa para beijá-la com enorme emoção... Era realmente como a passagem de Nosso Senhor pelo meio da multidão arrebatada da Judeia.
Pobre e querido povo! Compreendem a missão e o caráter sagrado do padre. Vêem nele como que o resumo de toda a religião, uma espécie de Credo vivo de tudo aquilo que creem e veneram.
Fui andando lentamente à pé, pois assim que chegamos, levaram os nossos animais para a cocheira. Tendo entrado na igreja, fui ajoelhar-me nos degraus do altar a fim de preparar-me, na tranquilidade e no silêncio, para a celebração do augusto Sacrifício.
No silêncio, sim, mas na tranquilidade não. Não se podia pensar nisto. Quando atravessei a multidão, aglomerada diante da igreja, apenas algumas pessoas puderam chegar perto de mim e receber a bênção. Então imaginem a piedosa inveja daqueles que só puderam me ver de longe!...
Tão logo me ajoelhei e fechei os olhos, vi-me cercado por todos os lados. Subiam os degraus do altar, comprimiam-se e empurravam-se, de modo que fui forçado a estender as duas mãos para que fossem beijadas por aqueles que me cercavam, e poder, assim, sair daquele aperto, pois a igreja estava literalmente lotada. Eu me sentia como Moisés, rezando com os braços abertos. E aqueles que me cercavam disputavam minhas mãos para cobri-las de beijos. Mas isso não foi o bastante. Alguns me beijavam os ombros, enquanto outros se punham de joelhos diante de mim para abraçar meu crucifixo missionário.
Felizmente, compreendendo que eu queria rezar, deixaram-me em paz. A igreja começou a esvaziar-se pouco a pouco. Apenas algumas crianças, seguindo as recomendações das mães, vieram acocorar-se perto de mim. De mãos postas e com o olhar puro e cândido fixo em mim, pareciam esperar que eu lhes falasse alguma coisa. O olhar delas brilhava em seus rostos trigueiros ou pretos, como uma pequena lâmpada nas trevas. Havia uma meia-dúzia agarradas à minha batina, e algumas até com a cabeça escondida sob a minha faixa... Com uma voz que mal sabe articular as palavras, murmuravam: “A bênção padre, a bênção, padre!”
Pequenos querubins, dignos de postar em torno da manjedoura. Com os braços, aproximava-os de mim, traçando sobre as frontes um pequeno sinal da cruz. Senti lágrimas a me molhar as pálpebras e cair sobre o rosto delas como reflexos luminosos de um coração de padre. Possam estes raios apagar de suas frontes o vício e fazer resplandecer em seus corações o amor do divino Infante, cujo nascimento vamos celebrar.
A igreja de Ceara-Mirim hoje.
Enquanto me preparava diante do altar, organizaram tudo fora da igreja para a celebração da Santa Missa. O altar foi erguido na frente da porta do santuário, encimado de um baldaquino vermelho e enfeitado de tecidos e grinaldas.
Tudo ficou pronto e nada faltava, a não ser o santificador e sua divina Vítima para encher a noite de vida e de amor, e ouvir em espirito os anjos repetirem o seu canto: “Glória in excelsis Deo!” Glória a Deus nas alturas e paz na terra aos homens de boa vontade.

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