O delito de comunidade
Em Caldeirão, nada era de ninguém: nem
os teares, nem os fornos de tijolos, nem o mar dos milharais em torno das
casas, nem a vasta neve de algodoais que havia ao longe. Donos eram todos e
nenhum, e não havia despidos nem famintos. Os indigentes tinham-se feito
comuneiros ao chamado da Santa Cruz do Deserto, que o Beato José Lourenço, peregrino do deserto, tinha carregado até
aqui. A Virgem Maria tinha escolhido o lugar para onde a cruz devia vir e tinha
escolhido o ombro do Beato para trazê-la. Onde o Beato cravou a cruz, brotou
água incessante.
Mas este Beato esquálido era o próspero
sultão de um harém de onze mil virgens, segundo acusam os jornais de distantes
cidades. Como se fosse pouco, era também um agente de Moscou que escondia um
arsenal em seus celeiros.
Da Comunidade
de Caldeirão, nada deixaram, nem ninguém. O potro Trancelim, que só o Beato
montava, foge a galope pelos montes pedregosos. Procura em vão algum arbusto
que lhe ofereça sombra, debaixo deste sol dos infernos.
(Eduardo Galeano, O
século do vento, L&PM, 2010, p. 160-161)
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