Toda a Igreja é enviada
a anunciar uma Boa Notícia
(Is 66,10-14; Sl 65/66; Gl 6,14-18; Lc
10,1-12.17-20)
Temos a tentação de ver no futebol
uma parábola da Igreja: há uma equipe de pessoas seletas que entra em campo e à
grande maioria cabe apenas torcer na arquibancada ou diante da TV; a missão é
uma disputa de espaços e de poder com as demais Igrejas e religiões; a única
glória é derrotar os outros, convencê-los de que são inferiores, alcançar o
primeiro lugar e levar a taça; o respeito e o apreço pelos outros não passa da
formalidade de um aperto de mão no início e no fim do jogo. Uma Igreja que se
pensa assim ignora o Evangelho e faz de Jesus Cristo uma peça decorativa.
“E enviou-os dois a dois à sua frente.”
A Igreja é uma assembléia de pessoas chamadas pelo nome e enviadas em
missão a todos os âmbitos geográficos e sociais, sem exclusão. O grupo dos Doze fora enviado e
não correspondera ao que se esperava: anunciou um Evangelho filtrado pela
ideologia nacionalista, foi refutado pelos samaritanos e foi tentado a usar
estratégicas de vingança e demonstrações de poder. Como os Doze não conseguiam
entender o que é seguir Jesus (ir atrás), também não tinham condições de ser
apóstolos (ir à frente).
As Igrejas que nascem em torno de
Jesus Cristo e se fundamentam no seu Evangelho têm no próprio DNA a marca do envio: são um movimento profético de
pessoas que saem de si mesmas, pensam nos outros e se arriscam inserindo-se na
história, nas forças políticas e culturais. Não são comunidades auto-referenciais,
que giram em torno dos próprios interesses; não estão presas às glórias de um
passado que não existe mais e não se esmeram em conservar costumes anacrônicos
ou doutrinas abstratas.
Percebendo que as necessidades das
multidões urgem como uma colheita que pode se perder, Jesus lamenta a carência de braços e envia um amplo grupo de
missionários. O número setenta corresponde ao número de nações conhecidas
na época, o que significa que o horizonte
da missão é o mundo inteiro. É bem provável que a maioria destas pessoas enviadas
por Jesus provenham do ambiente samaritano, menosprezado pelos judeus ortodoxos,
e que muitas sejam mulheres.
“A colheita é grande, mas os trabalhadores são poucos.”
Assim, o chamado à missão se dirige a todos os cristãos, indistintamente. Nas
entre-linhas do seu evangelho, Lucas nos diz que quando a missão é confiada
unicamente aos ‘eclesiásticos’ (os Doze) está fadada ao fracasso, mas quando é
confiada a todo o povo de Deus, inclusive aos grupos considerados inferiores
(estrangeiros, pobres, mulheres, etc.), tem grandes chances de produzir bons
frutos. Já deveríamos ter aprendido a lição: ou toda a Igreja é missionária, ou não é Igreja de Jesus Cristo.
Ao dizer que na Igreja todos são
enviados em missão não estamos afirmando que todos devem fazer tudo ou a mesma
coisa. Fora da celebração dos sacramentos
há um imensa gama de possibilidades e necessidades de ação que não podem ser
esquecidas ou menosprezadas, do anúncio do Evangelho ao cuidado pela criação e
à defesa dos Direitos Humanos. Mas nem por isso podemos simplesmente
aceitar que a liturgia e os sacramentos sejam exclusividade dos homens
celibatários e ordenados.
“Alegrai-vos com Jerusdalém, fazei desta com ela...”
O que temos a anunciar é, antes de
tudo e sempre, uma Boa Notícia. A evangelização não é, em primeiro lugar, o ensino
de uma doutrina sobre Deus ou a apresentação de um código de conduta moral, mas
o anúncio de uma verdade alvissareira
para todos os seres humanos, especialmente para os que são tratados como últimos:
Deus está próximo de todos, conhece os
sofrimentos naturais ou impostos pelas estruturas injustas e nos guia e
fortalece nas tentativas de tornar a vida mais humana.
A propósito, são comoventes e
edificantes as imagens usadas pelo profeta Isaías no seu anúncio a um povo desolado,
que habita uma Jerusalém em
ruínas. O profeta convida todas as pessoas que participaram da
dor do povo a participar também da sua imensa alegria, e ilustra a mudança em
curso com imagens de bebês que mamam no seio da mãe: “Podereis sugar e vos deliciar
em seus peitos generosos... Podereis mamar, carregados ao colo, sobre os
joelhos sereis acariciados. Qual mãe que acaricia os filhos, assim vou dar-vos
meu carinho...” Eis uma imagem do que é a Boa Notícia!
E não se trata de consolação barata,
de esperança num céu tão belo quanto abstrato, ou, menos ainda, de anúncio
mentiroso. Deus é fiel à sua compaixão
por nós, e nisso ele não muda. Deus ouve os clamores dos pobres e abre a
eles os ouvidos dos seus enviados e enviadas. Deus não cessa de suscitar profetas,
mártires e missionários/as que o representam na história. É assim que ele leva
aos lugares sombrios uma torrente de felicidade, alegrando nosso coração e
rejuvenescendo nossos corpos.
“Permanecei naquela mesma casa, comei e bebei do que
tiverem...”
Enquanto enviados/as, os cristãos vamos ao encontro dos seres humanos, dos
povos e culturas como hóspedes que pedem licença. Somos enviados sem
defesa, sem poder contar com a força do
prestígio, do dinheiro ou dos exércitos. Quando as Igrejas lançaram mão destes
poderes, acabaram traindo o Evangelho e impondo a má notícia do domínio e
esquecendo a boa notícia da liberdade e da dignidade dos filhos/as de Deus. “Em
qualquer casa em que entrardes dizei primeiro: A paz esteja nesta casa!”
É claro que existem riscos e
dificuldades. Lucas fala de lobos, de demônio, de cobras e escorpiões. Há
cidades, grupos e organizações que se fecham e resistem à conversão à nova
ordem inaugurada e exigida pelo Reino de Deus. Mas mesmo aqui não se trata de
chegar de dedo em riste, derramando advertências e vociferando condenações.
Sacudir o pó das sandálias significa apenas não fazer média nem tergiversar com
estes ambientes, e partir serenamente para outros areópagos.
Enquanto pessoas e comunidades
enviadas em missão somos hóspedes, e não
patrões. O hóspede é visita, pede licença, dialoga, oferece o que tem de
melhor. Mesmo diante das pessoas, instituições e culturas que se fecham à
experiência compartilhada e ao convite apresentado, a resposta deve ser sempre
a mesma: “No entanto, sabei que o reino de Deus está próximo!” Não podemos
estranhar o desprezo, a desconfiança e o ódio que suscitamos se chegamos
mandando e condenando.
“Curai os
doentes que ouver...”
Para merecer crédito, nosso anúncio deve ser acompanhado de ações
que o confirmem. E a primeira ação que se espera de um/a missionário/a é
que não fique se deleitando com as belezas do caminho e esqueça a meta, ou
seja, o serviço às pessoas concretas. A segunda ação que dá credibilidade ao
anúncio missionário é não passar de casa em casa, buscando as pessoas e grupos
mais ricos, aqueles/as que podem dar mais poder à obra missionária.
Mas a credibilidade do anúncio do Evangelho supõe ações mais concretas.
Jesus pede que os seus enviados curem os doentes, indicando com isso um conjunto
de ações voltadas às pessoas mais fracas
e carentes. E os/as discípulos/as, voltando da missão, falam da experiência
de expulsar demônios, referindo-se a ações que resgatam a liberdade e a
dignidade profunda de pessoas reduzidas a corpos nos quais são exercitados o
poder e os interesses outros.
Apesar do permanente chamamento
oficial às coisas espirituais, em muitos lugares do mundo as comunidades
cristãs se esmeram na solidariedade missionária e profética com os empobrecidos
e suas causas e no cuidado pela vida integral das pessoas. Para dar conta
disso, multiplicam-se os organismos pastorais: da Pastoral da Terra à Pastoral
da Criança; da Pastoral Operária à Pastoral Indigenista; da Pastoral Carcerária
à Pastoral da Juventude; da Pastoral do Migrante à Pastoral dos Idosos.
“Que eu me glorie somente na cruz de Nosso Senhor,
Jesus Cristo.”
No cumprimento da missão coletiva e
intrínseca ao seu próprio ser, a Igreja não pode entrar na lógica dos poderes
políticos, econômicos ou culturais. É esta lógica que leva as Igrejas a
depositar a confiança apenas nas elites ou grupos privilegiados e a medir seu
valor pelos sucessos institucionais ou pela erudição da sua doutrina. Paulo
fala em gloriar-se apenas na Cruz de Nosso Senhor Jesus Cristo, e este é um critério
diferente: a compaixão que leva à identificação com o outro e à defesa de sua
dinidade.
Jesus de Nazaré, missionário do Pai! Tu nos convocas a participar da tua
missão. Faz com que toda a Igreja tenha as marcas do teu corpo: a abertura
radical ao Pai e aos irmãos e irmãs; a humanidade, a solidariedade e a acolhida;
a paixão e a compaixão; a preferência pelos últimos... Ajuda tua Igreja a não
jogar sozinha, contando apenas com 11 ou 12 especialistas bem-sucedidos. Assim
seja! Amém!
Pe. Itacir Brassiani msf
Nenhum comentário:
Postar um comentário