À procura de palavras que dêm sentido a uma perda
Acompanhando com o coração apertado o difícil combate
do Ceolin contra o câncer, sabendo da fragilidade em que se encontrava e
temendo que ele partisse sem que eu pudesse dizer-lhe o que sentia que deveria
dizer, no início de Abril escrevi e enviei a ele uma carta que, com reverência
e respeito, dou a conhecer.
“Caríssimo
amigo e coirmão Pe. Ceolin!
Os italianos gostam muito de superlativos,
mas este, com o qual inicio esta insólita carta, não é motivado por essa
espécie de vício de linguagem. Para mim – e para tanta gente, Missionários da
Sagrada Família mas não só – dizer que o senhor é caro e precioso é muito pouco e não faz jus ao carinho que
temos pela vossa pessoa e à graça que Cristo vos concedeu de forma tão
abundante.

Li uma vez que os corpos dos mortos que
carregamos ao cemitério têm um peso proporcional às palavras que deveríamos ter
dito e não dissemos a eles enquanto viviam. Por isso vos escrevo hoje, caro Pe.
Ceolin, para dizer, uma vez mais e com o limite das palavras, o bem que quero,
que muitos querem ao senhor. Prefiro vos expressar esse sentimento duas vezes,
por carta e, querendo Deus, em julho próximo, do que silenciar.
Abraão intuiu que o fruto de uma vida de
peregrino e amigo de Deus, absolutamente confiada a ele, seria uma descendência
incontável, como as estrelas do céu e a areia da praia. O senhor saberia contar
quantos são os homens e mulheres que destes à luz ou encaminhaste à Luz?
Quantos filhos e filhas, mais tarde irmãos e irmãs, a graça de Deus que age no
senhor gerou para a fé e para uma vida mais humana? Não se trata de cair na
tentação do orgulho vazio, mas tampouco de fechar os olhos às bênçãos que Deus
distribuiu e distribui através da vossa vida, por mais limitada e vulnerável
que tenha sido.
Falando em primeira pessoa, não sei como
agradecer tudo o que o senhor fez por mim, voluntária e involuntariamente. Sim,
porque pessoas grandes e verdadeiras influem e ajudam outras mesmo
indiretamente. Mas eu tive a graça de ser acolhido no Escolasticado pelo
senhor, de tê-lo como mestre no noviciado e, depois, como Superior Provincial.
E há décadas como coirmão e amigo amado. Se o senhor tem sido uma firme e sadia
referência para muitos, para mim tem sido um pai, um irmão e um modelo em muita
coisa. Jamais serei suficientemente grato ao que recebi de Deus através do
senhor.
Escrevo isso com a humilde intenção de
afofar um pouco o leito qual o senhor repousa nestes últimos tempos. Penso não
me enganar imaginando que nestes dias o filme da vida passa e repassa diante
dos vossos olhos e do vosso coração, no qual se misturam saudade, temor e
gratidão. Quisera que predomissam os sentimentos de gratidão pelo bem que o
senhor ajudou Deus a fazer a tanta gente. Da minha parte, neste dias peço a
Deus que vos conserve em nosso meio por algum tempo mais, para que possamos
beber um pouco mais dessa preciosa fonte de bondade e de sabedoria. Mas se essa
não for a vontade de Deus, Pe. Ceolin, que o senhor possa celebrar serenamente
o momento belo e terrível do dom radical de si mesmo, já antecipado no batismo
e confirmado nos votos, consciente de que os frutos vieram ainda antes deste
plantio.
Hoje, na oração da manhã, me detive no
cântico (Dt 32,1-12), relacionando-o com a vossa pessoa. “Engrandecei o nosso
Deus! Ele é o rochedo! Perfeita é a sua obra, e justos todos os seus caminhos!
Deus é fiel, sem falsidade! Ele é justo e correto!... Lembra-te dos tempos
antigos, considera os anos de cada geração... Em terra deserta o encontrou, na
vastidão ululante do deserto. Cercou-o de cuidados e o ensinou, guardando-o
como a menina dos olhos. Qual águia que desperta a ninhada, voando sobre os
filhotes, também ele estendeu as asas e o acompanhou e sobre suas penas o
carregou...”
E o texto do Evangelho deste sábado (Jo
6,16-21) não me parece menos sugestivo. O contexto é de passagem, de travessia
para o outro lado do lago. É escuro e Jesus não está com os discípulos. Sopra
um vento forte, o mar está agitado, eles remaram por mais de cinco quilômetros
e estão cansados e apavorados. Jesus caminha sobre o mar turbulento e se
aproxima deles: “Sou eu. Não tenham medo!” E o barco logo chega tranquilamente
ao destino. Para onde quer que seja a travessia que o senhor está fazendo,
Jesus está ao vosso lado, acalmando, guiando e sustentando. É como diz o Salmo
22: quanto caminhamos por vales escuros, a simples visão do bastão e do cajado
do Senhor é suficiente para nos dar serenidade e segurança.
Já me alonguei mais do que desejava, caro
amigo. Não quero tomar muito do vosso tempo, nem das forças que não são muitas.
Se divaguei demais e não consegui dizer aquilo que queria, tomo a liberdade de
repetir resumidamente: vos quero muito
bem e vos desejo todo o bem, Pe. Ceolin; agradeço tudo o que fizestes por mim,
pela Província, pela Congregação, pela Igreja, por tanta gente; peço a Deus que
nos conceda ainda desfrutar da sua presença por mais algum tempo; e desejo que
o senhor se recupere e viva com serena e alegre gratidão entre aqueles/as que
amais e que vos amam.”
Aquela humildade e atenção
de sempre
Alguns
dias depois, junto com o meditação sobre sua vida pastoral, apesar da sua
debilidade física e do combate espiritual que ainda travava, o Ceolin tem a
delicadeza de escrever-me uma resposta. Nestas poucas palavras, transparece a
sincera humildade e a incvrível sensibvilidade desse grande coirmão.
“Meu querido e tão fiel Amigo e Confrade
ITACIR!
A estas alturas da vida, não devo
agradecer-lhe apenas pela amizade e benquerença fraternal. Sou-lhe muito grato,
em especial, por sua constante intercessão a Deus por minha saúde e crescimento
espiritual, na fase que estou vivendo com os demais coirmãos enfermos e idosos.
Além disso, você vem me abastecendo de
leituras animadoras, mormente nesta fase
tão rica, humana e espiritual, que o Deus da VIDA, me proporciona aqui no Lar
de Nazaré.
Mas quanto à mensagem que você fez chegar
a mim, através do nosso amigo comum Pe. André, a meu ver, só me resta dizer:
ITA, é demais! Não passo de um mortal
como todo ser humano. O que fui e sou, devo-o unicamente ao BOM DEUS e a VOCÊS
confrades e a tantos amigos (as) que ELE colocou na minha vida! Ita, meu abraço
fraterno, amigo, carinhoso e agradecido.”
Louvor no meio da dor
No final
do mês de abril, respondi ao Ceolin. Se transcrevo essa correspondência privada
não o faço com o desejo de parecer qualquer coisa, mas unicamente para
testemunhar o quando Deus fez através desse coirmão fez em mim e por mim. E
porque ser reconhecido e expressar gratidão nos coloca no nosso verdadeiro
lugar: somos beneficiados e devedores, e jamais credores diante de quem quer
que seja.
“Como já tive oportunidade de vos dizer,
nos últimos tempos o senhor está mais presente na minha oração. Nas Laudes de
hoje lembrei muito do senhor, do momento que estais vivendo. E não me refiro
apenas à dor e às preocupações, mas também à profunda (e exigente) experiência
espiritual que transparece nas vossas palavras e gestos, e da qual às vezes o
senhor fala.
Neste contexto, o Salmo 62 é muito expressivo: “Ó Deus, tu és o meu Deus, desde a
aurora te procuro. De ti tem sede a m inha alma, anela por ti minha carne, como
terra deserta, seca, sem água. Assim no santuário te busquei... Pois tua graça
vale mais que a vida, meus lábios proclamarão o teu louvor. Assim, te bendirei
enquanto eu for vivo, no teu nome eu erguerei minhas mãos, e com vozes de
alegria te louvará minha boca. No meu leito te recordo, penso em ti nas
vigílias noturnas, pois tu foste meu auxílio; exulto de alegria à sombra de
tuas asas; a tua mão direita me sustenta...”
Mas o Salmo
149 não fica por menos. “Cantai ao Senhor um cântico novo; ressoe seu
louvor na assembléia dos fiéis... Louvem o seu nome com danças, pois o Senhor
ama o seu povo, enfeita os humildes com a vitória. Que os fiéis festejem sua
glória e cantem jubilosos em filas...”
Claro que a debilidade física, a cama que
começa a parecer pouco cômoda e a já longa luta contra a doença não representam
uma boa situação e não estimulam muito ao louvor. Mas, toda vossa vida tem sido
uma busca de Deus, um serviço a ele no serviço aos filhos e filhas dele. E
contemplando o que Deus fez e faz através da vossa pessoa, o louvor brota
espontâneo e autêntico em nós. Mesmo na fragilidade atual, o senhor é um
testemunho eloquente de humanidade e de Evangelho, ao menos para quem não foi
conquistado pela indiferença e pela funcionalidade.
Na amável mensagem anexa à reflexão que me
enviastes, escrevestes que as palavras que vos dirigi na carta são “demais” ou
inadequadas, porque não passais “de um mortal como todo ser humano”, e o que
fostes e sois deve ser creditado “unicamente” ao bom Deus e aos coirmãos e
tantos amigos que Ele colocou na vossa estrada.
Estou de acordo, Ceolin! Mas Deus
não se relaciona conosco seguindo o estreito binário dos débitos e créditos, e
nós nos sentimos no dever de celebrar e bendizer a bondade e a humanidade que
Deus se digna manifestar através da vossa pessoa. Só isso, mas nada menos que
isso!”
Itacir Brassiani
msf
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