Cuidar do luto e das perdas
Ninguém
sai do luto como entrou. A pessoa amadurece forçosamente e se dá conta de que
toda perda não precisa ser total; ela traz sempre algum ganho existencial. A dor da perda, por mais que cause
sofrimento, provoca também um exercício de auto-amadurecimento.
Pertencem, inexoravelmente, à condição humana, as perdas e o luto.
Todos somos submetidos à férrea lei da entropia: tudo vai lentamente se
desgastando; o corpo enfraquece, os anos deixam marcas, as doenças vão nos
tirando irrefreavelmente nosso capital vital. Essa é a lei da vida que inclui a
morte.
Mas
há também rupturas que quebram esse fluir natural. São as perdas que significam
eventos traumáticos como a traição do amigo, a perda do emprego, a perda da
pessoa amada pelo divórcio ou pela morte repentina. Surge a tragédia, também
parte da vida.
Representa
grande desafio pessoal trabalhar as perdas e alimentar a resiliência, vale
dizer, o aprendizado com os choques existenciais e com as crises. Especialmente
dolorosa é a vivência do luto, pois mostra todo o peso do Negativo. O luto,
possui uma exigência intrínseca: ele cobra ser sofrido, atravessado e, por fim,
superado positivamente.
Há
muitos estudos especializados sobre o luto. Segundo o famoso casal alemão
Kübler-Ross há vários passos de sua vivência e superação. O primeiro é a
recusa: face ao fato paralisante, a pessoa, naturalmente, exclama: “não pode
ser”; “é mentira”. Irrompe o choro desconsolado que palavra nenhuma pode
sustar.
O
segundo passo é a raiva que se expressa: “por que exatamente comigo? Não é
justo o que ocorreu”. É o momento em que a pessoa percebe os limites
incontroláveis da vida e reluta em reconhecê-los. Não
raro, ela se culpa pela perda, por não ter feito o que devia ou deixado de
fazer.
O
terceiro passo se caracteriza pela depressão e pelo vazio existencial.
Fechamo-nos em nosso próprio casulo e nos apiedamos de nós mesmos. Resistimos a
nos refazer. Aqui todo abraço caloroso e toda palavra de consolação, mesmo
soando convencional, ganha um sentido insuspeitado. É o anseio da alma de ouvir
que há sentido e que as estrelas-guias apenas se obscureceram e não
desapareceram.
O
quarto é o autofortalecimento mediante uma espécie de negociação com a dor da
perda: “Não posso sucumbir nem afundar totalmente; preciso aguentar esta
dilaceração, garantir meu trabalho e cuidar de minha família”. Um ponto de luz
se anuncia no meio da noite escura.
O
quinto se apresenta como uma aceitação resignada e serena do fato
incontornável. Acabamos por incorporar na trajetória de nossa existência essa
ferida que deixa cicatrizes. Ninguém sai do luto como entrou. A pessoa
amadurece forçosamente e se dá conta de que toda perda não precisa ser total;
ela traz sempre algum ganho existencial.
O
luto significa uma travessia dolorosa. Por isso precisa ser cuidado. Permito-me
um exemplo autobiográfico que aclara melhor a necessidade de cuidar do luto. Em
1981 perdi uma irmã com a qual tinha especial afinidade. Era a última das irmãs
de 11 irmãos. Como professora, por volta das 10 horas, diante dos alunos, deu
um imenso brado e caiu morta. Misteriosamente, aos 33 anos, rompera-se-lhe a
aorta.
Todos
da família vindos de várias partes do pais, ficamos desorientados pelo choque
fatal. Choramos copiosas lágrimas. Passamos dois dias vendo fotos e recordando,
pesarosos, fatos engraçados da vida da irmãzinha querida. Eles puderam cuidar
do luto e da perda. Eu tive que partir logo após para o Chile, onde tinha
palestras para frades de todo o Cone Sul. Fui com o coração partido. Cada
palestra era um exercício de auto-superação. Do Chile emendei para a Itália
onde tinha palestras de renovação da vida religiosa para toda uma congregação.
A
perda da irmã querida me atormentava como um absurdo insuportável. Comecei a
desmaiar duas a três vezes ao dia sem uma razão física manifesta. Tive que ser
levado ao médico. Contei-lhe o drama que estava passando. Ele logo intuiu e
disse: “você não enterrou ainda sua irmã nem guardou o luto necessário;
enquanto não a sepultar e cuidar de seu luto, você não melhorará; algo de você
morreu com ela e precisa ser ressuscitado”. Cancelei todos os demais programas.
No silêncio e na oração cuidei do luto. Na volta, num restaurante, enquanto
lembrávamos a irmã querida meu irmão também teólogo, Clodovis, e eu escrevemos
num guardanapo de papel o que colocamos no santinho de sua memória:
“Foram
trinta e três anos, como os anos da idade de Jesus/Anos de muito trabalho e
sofrimento/Mas também de muito fruto/Ela carregava a dor dos outros/Em seu
próprio coração, como resgate/Era límpida como a fonte da montanha/Amável e
terna como a flor do campo/Teceu, ponto por ponto, e no silêncio/Um brocado
precioso/Deixou dois pequenos, robustos e belos/E um marido, cheio de orgulho
dela/Feliz você, Cláudia, pois o Senhor voltando/Te encontrou de pé, no
trabalho/Lâmpada acesa/Foi então que caíste em seu regaço/Para o abraço
infinito da Paz”.
Entre
seus papéis encontramos a frase: “Há sempre um sentido de Deus em todos os
eventos humanos: importa descobri-lo”. Até hoje estamos procurando esse sentido
que somente na fé o suspeitamos.
Leonardo Boff
(Obrigado, Ir. Rogéria, por
ter-me enviado o texto)
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