“Eu me entrego, Senhor, em tuas mãos!”
“Vamos fazer o elogio dos homens famosos...”
Hoje
celebramos São Joaquim e Santa Ana, pais de Nossa Senhora e avôs de Jesus de
Nazaré. E o texto da Palavra proposto como primeira leitura nos convida a fazer
memória dos antepassados, das pessoas boas que nos precederam. “Estes são
homens de misericórdia; seus gestos de bondade não serão esquecidos... Seus
corpos serão sepultados na paz e seu nome dura atravéas das gerações. Os povos
proclamarão sua sabedoria...” (Eclo 44,10-15). Motivado por esta festa e estas
palavras, recordo e partilho hoje algumas anotações deixadas pelo Ceolin nos
últimos meses de vida.
Que o Pe.
Ceolin era uma pessoa sensível, organizada e metódica todos sabemos. Mas fiquei
profundamente impressionado ao ler suas anotações diárias (a maioria delas
quase telegráficas) na agenda pessoal, nos últimos meses de vida. Não seria
difícil, a partir destas poucas palavras, acessar os sentimentos que se
aninhavam nele, a madura riqueza da sua personalidade e o testemunho de fé e
humanidade que ele nos deixa como herança viva. Recolho e ofereço aqui apenas
algumas migalhas, filtradas (e limitadas) pelos meus sentimentos. Outros
poderiam fazer outras leituras, enfatizando diferentes sutilezas e detalhes.
Organização e método
Um
primeiro elemento que se destaca é a organização atenciosa e metódica do
Ceolin. Nas anotações registradas nas agendas de 2012 e 2013 temos uma crônica
datalhada da sua longa e dura luta pela saúde: exames, consultas, diagnósticos,
sintomas, cirurgias, internações, terapias, repousos domésticos, etc. Nos
últimos meses, encontramos anotações precisas e sistemáticas sobre as variações
da pressão e da glicose, assim como sobre o decréscimo do peso e o desejado e
difícil aumento das plaquetas no sangue. Conheço poucas pessoas que, como ele,
tiveram consciência clara e plena daquilo que estava acontecendo.
Eis aqui
alguns exemplos: “(16.03.2012) Às 16:40 apresento a radiografia pulmonar ao Dr.
Maraschin. Nada de grave. Ele me forneceu o laudo de ciotoscopia a levar ao Dr.
Edilson. (10.04.2012) Internação para cirurgia. Cirurgia às 13:30. (25.04.2012)
Às 10:30 recebo o resultado da biópsia. O
câncer continua. Marco consulta no CACON de Ijuí. (25.05.2012) Hemorragia.
À meia-noite, na emergência. 45 dias após a cirurgia. (28.05.2012) Internação
no Hospital Santo Angelo (até o dia 1° de junho). (01.06.2012) Acamado em casa
(até o dia 8). (01.07.2012) À tarde, início da hemorragia. (15.10.2012) Às
16:00, primeira radioterapia. Serão ao todo 33, cinco por semana. Presvisto até
o dia 30.11.”
Preocupação com a saúde
Com o
passar do tempo e os poucos sinais de melhora, em algumas anotações transparece
uma crescente
e compreensível aprensão com a própria saúde: “(06.10.2012) Faz 30 dias
que estou em Passo Fundo. (04.03.2013) Jovino faleceu às 3:30, no HSVP. De
madrugada, (minha) internação no HSVP, após 7 horas de espera na emergência. Exames e mais exames. (09.03.2013) Dra.
Moema pediu que o David venha conversar com ela hoje de manhã e que eu
permaneça mais no quarto. Devo evitar os
corredores e tocar nos corrimões (bactérias). (13.03.2013) Médicos
resolveram que eu siga hospitalizado. Até
quando? (15.03.2013) Às 8:00 a Dra. Moema veio ao quarto dizendo que amanhã
dará alta e que devo repousar muito em casa e alimentar-me bem. Devo evitar me aproximar demais das pessoas
a fim de evitar contágios (infecções). (26.04.2013) À noite, caí no banheiro.
Precisei da ajuda da enfermeira para levantar.” (26.05.2013) Na hora do banho
matinal, percebo que as manchas púrpura se alastram pelo corpo. O fato é sintoma de que?
”
Vez por
outra, as anotações deixam transparecer um certo alívio ou uma forte
expectativa, como nestas que seguem: “(17.03.2013) Dra. Moema: “Amanhã, novo
exame de sangue. Terá alta somente quando tiver o medicamento indicado para o
seu caso”. (Quantos dias levará para consegui-lo? Veremos! Oxalá que seja já amanhã!” (18.03.2013) Às 9:40 a Dra. Moema veio
ao “meu” quarto com a boa notícia que
existe no HSVP o medicamento específico para o meu caso. Amanhã receberei alta
hospitalar. Graças a Deus!”
Sensibilidade e gratidão
Outro
aspecto que me impressionou foi a sua aguçada sensibilidade e sentimento de
gratidão pelos gestos de atenção, inclusive aqueles aparentemente
insignificantes. Depois da transferência para Passo Fundo, o Pe. Ceolin
registrou simplesmente todos os tolefonemas, cartas e visitas que recebeu. Mais
tarde, quando precisou de acompanhantes no quarto, sempre registrou o nome dos
que estiveram com ele. Os comentários são poucos, mas cada palavra denota
profundos sentimentos. E isso vem desde o tempo em que se tratava em Santo
Angelo, como demonstram estas duas notas: “(27.05.2012) Não celebrei. Ao
meio-dia, Susana e Rômulo trazem almoço e
o fazem comigo. (23.07.2012) À tarde, fui a Ijuí marcar consultas e visitar
a mãe do Pe. Pedro Almeida. Paulo Amaral levou-me no seu carro.”
Eis mais
algumas notas significativas: “(25.11.2012) Às 18:00 recebi telefonema do
Itacir (Roma), felicitando-me pelo 56° aniversário sacerdotal. À noite, a mana
Neli me telefonou querendo saber como me encontro de saúde. (13.05.2013) Hoje à
tarde recebi a visita do velho amigo Eusébio Ceolin. Veio especialmente de Bagé
para isso. Está com quase 83 anos. Ele é
um irmão de coração. (25.05.2013) Telefonei para a paróquia Sagrada
Família. Salete disse que estão pagando a mensalidade do meu celular e do FAC. (15.06.2013)
Ao meio dia, as sobrinhas de Chapecó (Ocimar, Cristina e o filhinho) chegaram
de visita, com planos de voltar hoje à tarde. Às 19:00 chegaram de São Vicente
os sobrinhos Elton Cláudia e a filha Luana. O pernoite é aqui no Lar. O plano é
retornarem amanhã, levando as manas Sueli e Helena. (17.06.2013) À tarde,
recebi a visita do primo Sílvio Ceolin e mais dois filhos, vindos especialmente
de Santo Augusto. Às 17:00 retornaram. Ir. Moacir esteve comigo das 18:00 às
19:00.”
Frente a frente com a morte
O
prolongamento da doença, o enfraquecimento físico e o pouco sucesso das
terapias foram progressivamente colocando o Ceolin diante da possibilidade
muito real morte, a oferta total e radical de si, sem outra garantia
que a fé. Podemos imaginar a complexidade dessa experiência. No caso do Ceolin,
essa aproximação veio acompanhada (e agravada) pela partida de dois coirmãos
que estava no mesmo caminho: o Pe. Jovino – caríssimo amigo seu – e o Pe.
Sausen, além do seu velho e amado pároco de Jaguari, Pe. Nelson. O que poderia significar
para uma pessoa de 83 constatar que as terapias não estavam ajudando muito e,
ao mesmo tempo, acompanhar a partida de dois coirmãos queridos? Com que
sentimentos alguém pode entregar-se ao Deus que sempre amou e pregou, mas ao
mesmo tempo deixar a vida e as pessoas que quer bem? Vejamos alguns registros
que o Ceolin nos deixou sobre essa luta interior.
“(10.03.2013)
Aniversário do meu batismo, ocorrido em 10.03.1930, em Ernesto Alves, Santiago
(RS). São 9:30. Acabo de celebrar a Eucaristia, no quarto, sozinho, neste dia especial: 83
anos de vida cristã, agraciada de tantas formas. O evangelho de hoje: o filho
pródigo, que volta ao Pai. Obrigado,
Pai misericordioso! Peço-te mais vida,
para fazer-te amado, e ao teu Filho, que veio curar e salvar! Eu CONFIO! (15.04.2013)
Falece meu pároco, Pe. Nelson Friederich, com 94 anos de vida e 56 anos em
Jaguari. Às 11:15, presidi missa por ele no Lar. (27.04.2013) Passei o dia
acamado, por causa da pancada na altura do rim esquerdo, durante a noite.
Banho, em cadeira, com a ajuda do David. Pela
primeira vez, andei de cadeira de rodas, e com ela jantei. (28.05.2013) Visita
da Tere Ceolin. Trouxe um lençol térmico que o Eusébio me mandou... Fiz uma confissão geral. (05.06.2013) Às
10:00, recebo a unção dos enfermos e
absolvição geral. Presentes os padres Provincial, Maicon, Hermeto, Schnorr,
Leopoldo, Pablo, Ir. Clara Lunkes e David Scortegagna.”
Humor e serenidade
Mas quero
também registrar a capacidade de auto-crítica, serenidade e humor, virtudes que o Ceolin não perdeu nem mesmo
nessa fase, e que são muito importantes para a nossa saúde psíquica e
espiritual. No dia 17.11.2012
o Ceolin anotou laconicamente: “Após expor-me ao forte sol na cidade, ao
visitar o Jovino e o Gebert no Hospital, pressão 18 x 10; temperatura 38.” E,
no dia 18 de março: “À tarde exagerei ao tentar, ajoelhado, arrancar inço na
horta, e não pude mais por-me em pé. Precisei chamar por ajuda.”
No dia 13
de dezembro de 2012, escreveu: “Entrevista com o Coordenador provincial.
Assunto: possibilidades futuras a meu respeito, após o reestabelecimento
completo da saúde. Enquanto isso, seguirei aqui em Passo Fundo. “De aliis, nisi
bene!” Gebert e Sulzbach receberam transferência para o Sítio da Buriti.” E, no
no dia 25 de dezembro: “A Província publica as transferências para 2013. A
minha será para o Seminário de Santo Angelo (= ‘Asilo de Velhos!...’): Pe. Arno, 80 anos; Ir. Aloísio, 74 anos; Ir.
João, 67 anos; Pe. Ceolin, 82 anos e 11 meses...”
Comunhão e compaixão até o fim
Finalmente,
como não sublinhar que, mesmo debilitado fisicamente, o Pe. Ceolin não deixou
de demonstrar sua atenção a outras pessoas
que também sofriam ou lhe demonstraram afeto? Na página do dia 18 de abril, com
indisfarçável emoção, o Pe. Rodolpho anota: “O Ir. Lauri entregou-me carta das
Irmãs Carmelitas de Santo Angelo, escrita pela Ir. Milagros. Agradeci-lhes por telefone esta tarde.”
Sabemos que não é tão comum telefonar para agradecer uma carta, e ainda mais no
mesmo dia em que a recebemos...
No dia 1°
de maio, o Pe. Ceolin recordou sua primeira comunhão e escreveu na agenda: “Em
1941, minha primeira comunhão. Em 1994, falecimento da mamãe (19 anos). Às
18:00 o Pe. Maicon levou ao Pe. Hermeto e
a mim ao velório da Franciele, filha do nosso enfermeiro Neri, no Bairro
Jaboticabal.” No dia 05 de junho, depois da confissão geral, e de receber a
unção dos enfermos, fatos registrados com uma caligrafia irreconhecível, sinal
da grande emoção que tomava conta dele, escrevia comovido e agradecido: “Ir. Gislena Ziliotto me visita,
representando a presença feminina amiga na minha história.”
Ele partiu cercado de amor
Estas
poucas notas nos ajudam a entender como são verdadeiras e sinceras as palavras
que o Ceolin escreveu para serem lidas na missa das própias exéquias, um
verdadeiro testamento humano e espiritual:
“Nos meses,
recolhido e acolhido no Lar de Nazaré para tratamento de saúde, junto a
confrades verdadeiramente irmãos e funcionárias (os) dedicadas (os), fiz a
experiência mais bela da vida: DEUS É TODO AMOR, É PAI DEVERASMENTE
MISERICORDIOSO, É PASTOR EM BUSCA DA OVELHA AMADA. Como é bonito estar cercado não só do Amor de Deus mas também muito
cercado do amor de vocês, familiares, parentes, amigos (as) de tantos
lugares, cercado de amor de meus confrades de toda a Província e do Generalado,
cercado, ultimamente pelos de Passo Fundo e de Santo Ângelo; cercado de amor
pelos funcionários (as) do Lar de Nazaré...
É bonito morrer cercado de amor como fui
pelas queridas irmãs Carmelitas, Pe. Jacinto e Pe. Marcos, pelos funcionários
(as) da casa Paroquial, pelos paroquianos (as) que me conduziam ao Hospital de
Ijuí, pelos que me assistiam de dia e de noite no Hospital de Santo Ângelo e na
casa Paroquial. É mais que bonito morrer
cercado de tanto amor dos amados paroquianos (as) que tanto oraram por
mim.” Esta foi a versão pessoal do hino “Eu me entrego, Senhor, em tuas mãos”,
que o Ceolin cantou com a vida. Deus seja louvado por este belo testemunho,
semente que há de germinar.
Itacir Brassiani msf
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