Recordando as lições e testemunhos de um
mestre e amigo
Sei que em momentos como este que vivemos, corremos o risco do exagero e
do sentimentalismo. Mas a partida do nosso querido Pe. Ceolin, logicamente
esperada mas intimamente difícil de assimilar, deixa a sensação crescente de um
vazio que engole presenças e referências. O vulto dele parece se agigantar
desproporcionalmente e, com isso, também as dimensões do vazio. O recurso à
meditação, às lembranças e aos seus gestos e palavras são tentativas de povoar
este terreno inóspito e de iluminar esse imenso (e, oxalá, fecundo) vazio. Mas,
principalmente, de vislumbrar sua herança e assumi-la responsavelmente.
Uma pérola de
espiritualidade e humanidade
Neste
contexto, saí à procura de algumas palavras do Ceolin que me marcaram
profundamente. Guardava dele duas cartas, recebidas há mais de vinte anos, no
final da última e difícil crise que ele viveu e enfrentou no início da década
de 1990. O que o Ceolin escreve nestas cartas tem força e luz para nos ajudar
em diferentes circunstâncias. Palavras de um verdadeiro mestre na arte de viver
e de crer. A primeira carta, datada de 8 agosto de 1990, partilha a alegre e
boa notícia de ter chegado ao fim do túnel.
“Estimado
Ita,
Pois é:
recebi teu cartão aos 04.07. Eu já estava de malas prontas. Não para deixar
Porto Alegre, e sim para visitar meus familiares e, após, participar da
formação permanente, em Santo Angelo. Apenas hoje venho agradecer-te mais esta
presença e este gesto de amizade. Você é uma presença vitalizadora neste meu
período de deserto: o encontro em Curitiba, a correspondência...
Ita,
graças às carradas de orações e boas obras de muita gente, o Cristo está me
concedendo a ventura de chegar a uma nova síntese existencial. Considero obra
de Deus o que ocorre comigo. De minha parte, sei que apenas esperneei e
recalcitrei com Cristo. Dei-lhe muito serviço. Ele enfrentou comigo uma parada
dura. Ele deve estar mais feliz do que eu: venceu! Venci eu também, porque
levei a sério a crise, a revolta que vivia. Busquei meios para superar a crise
e obter condições de decidir-me e re-optar.
No
deserto, confrontei-me bastante com o Cristo. Por ele, em primeiro lugar,
resolvi reassumir o ministério, após oito meses de afastamento do altar, e
retomar o convívio com os confrades Missionários da Sagrada Família. Tudo isso
ocorreu em julho.
Não é só
no céu que há alegria quando alguém se converte. Isso aconteceu na terra
também. Foi o que percebi no povo daqui, nos familiares, nos confrades, nos
amigos, nas pessoas que eram sabedoras de que algo estranho ocorria comigo, em
mim. Em Santo Angelo, há uma semana, pude perceber a alegria nos irmãos MSF.
Acentuadamente os jovens noviços e teólogos.
Ao
regressar a Porto Alegre, aqui me esperava uma carta do Moacir. Nela o rapaz diz da repercussão da minha decisão
na dele, ao emitir os votos perpétuos. Diz que também na dos outros. Como Deus
faz as coisas certinhas e na hora certa! Como ainda duvidar que Deus é bom e
olha para a gente?...
Eu
conquistara a liberdade interna e externa. Sentia-me no direito de optar pelo
caminho de vida que eu concluísse ser meu. Foi com os olhos em Jesus Cristo e
implorando as luzes do Espírito, em atitude de docilidade a Ele que busquei
discernir o meu lugar no mundo e na Igreja. Busquei um sentido para o meu
viver, a razão pela qual Cristo e Deus me deu e salvou minha vida. Para ser um dom, foi a minha conclusão.
Onde, como e a quem?... Olhando para Cristo, senti que meu amor a Ele e aos
Homens seria diminuído, reduzido, acanhado, caso deixasse a vida religiosa e o
ministério para abraçar outro estado de vida.
Senti
logo a paz e a alegria tomarem conta do meu ser. Era o sinal de que eu
acertara. E ela me acompanha desde lá. Sinal de que fui fiel ao meu Ser
Profundo, ao divino em mim, ao inscrito por Deus no meu íntimo, aos desígnios
seus a meu respeito.
Ita,
louve a Deus comigo! Meu abraço amigo. Rodolpho.”
Uma vida autêntica é fonte
de vida
Ele mesmo
sublinhou a conclusão existencial e espiritual à qual chegou no final da
travessia daquele difícil deserto: reconhece que recebeu a vida para fazer dela um
dom, e esse dom seria diminuído se se afastasse da vida religiosa. E
assim viveu ele, não sem uma constante luta contra um temperamento às vezes
colérico e perguntas sem respostas. Naquele mesmo dia eu, então um jovem
religioso com trinta anos, escrevia algumas notas sobre este testemunho de um
irmão, pai e mestre que tinha o dobro dos meus anos. (Os destaque são de hoje.)
“Hoje
(10.08.1990) recebi uma comovente carta do Pe. Ceolin. É interessante que na
tarde de hoje, antes de recebê-la, durante a celebração eucarística com as
Irmãs do Cenáculo, lembrei dele e fiz memória do seu serviço e do apoio
vocacional que sempre recebi dele.
Esta
carta, por si mesma, é um testemunho
espiritual de um Homem que buscou sempre discernir os desígnios de Deus.
Foram noites intermináveis de escuridão, de gritos aos quais só o silêncio
respondia. Foram dias incontáveis de caminho num deserto seco e sob um sol
escaldante. Mas o grito e a pergunta pela razão de ter sido abandonado abrira
já uma janela: pelo menos seus geminos encontravam um ouvido paciente e
misericordioso.
É por
tudo isso que o Ceolin pode escrever esse seu depoimento/testamento: todo ele é
um louvor a Jesus Cristo, o Senhor da História, que o Ceolin volta a encontrar
vivo e manso e humilde de coração.
Guardo esta carta para poder reler sempre como um hino de vitória de
alguém que, tendo coragem de lutar contra Deus, teve também a ousadia de se
entregar a ele, mesmo tendo que sair coxeando.
Sim, caro
amigo e irmão Rodolpho: louvo contigo ao Criador, porque um grão de trigo
morreu mas nasceu um trigal. Porque tua
vida realizada é fonte de vida. Porque também de ti brotarão rios de água
viva...
Obrigado
Senhor, Deus dos pobres e aflitos. Nossas preces solidárias se encontraram em
ti. Nossos corações também sofreram com a dor do Rodolpho. Foram vários
momentos de oração. Foram alguns encontros rápidos. Foram incontáveis e
pacientes cartas. Obrigado pela perseverança, Senhor. E perdoa-me se não fui
uma mão sempre estendida.”
“Como é bonito morrer sem
rancor, cercado de amor.”
Foi com
estas palavras que o nosso querido Ceolin iniciou e estruturou o hino de
gratidão que escreveu para ser lido na celebração das próprias exéquias. A frase faz parte das palavras que ele ouviu
da boca da sua mãe, falecida no dia 1° de maio de 1994. Na lembrança da páscoa
da sua mãe Carolina, o Ceolin transcreveu este denso diálogo, no qual aparece
também a referência à noite escura e ao deserto existencial e vocacional que
ele havia recentemente percorrido e vencido, e sua promessa, madura e
responsável.
(Palavras de dona Carolina): “Daqui
em diante vou me ocupar só de Deus. Não preciso me preocupar com mais nada
neste mundo... Como é bonito morrer sem rancor, cercada de amor... Meu filho,
no meu enterro agradeça a todos. Agradeça especialmente aos bons vizinhos que
nós temos. Diga-lhes que não levo ódio, nem raiva, nem inveja de ninguém. A
todos eu quis sempre muito bem. Que Jesus guarde unidas as nossas famílias...”
(O Ceolin pergunta): “Mamãe, a
senhora tem ainda algum grande desejo que gostaria de me contar?”
(Dona Carolina responde): “Filho
amado, meu desejo é que você continue padre até o fim. Quero que você continue
sempre alegre, tranquilo e bem feliz!”
(O Ceolin responde): “Mamãe
querida, eu lhe agradeço todas as suas orações e sacrifícios que fez por mim,
pela minha vocação. Mamãe, pode ficar tranquila, porque eu vou continuar padre até o fim!”
(Dona
Carolina diz, beijando as mãos do Pe. Ceolin): “Muito obrigada!... Meu filho, você foi sempre a grande alegria de sua
mãe. Vejo em você não apenas um filho meu. Para mim, você é filho de Deus. Vivi
um certo tempo aborrecida e preocupada. Eu via que você não estava feliz como
padre. Sofri calada. Rezei muito por você... Filho, outro desejo meu é que a nossa
família não se afaste da santa religião de Deus...”
Quem teve a graça de conviver com o Ceolin se lembra do carinho que o
unia à sua mãe, morta no mesmo dia em que morreu Ayrton Senna. O diálogo acima
transcrito acena para algo muito profundo. E eu pude testemunhar, nas últimas
horas que passei com o Ceolin, os repetidos apelos susurrados à ‘mãe’. Qual
delas? Dona Carolina, aquela que o gerou, sofreu calada por ele e o via um
filho de Deus? Aquela outra, de Nazaré, mãe de Jesus, nossa mãe? Ou de ambas?
Itacir Brassiani msf
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