A compaixão resgata a
humanidade e produz eternidade
(Dt 30,10-14; Sl 18/19; Cl 1,15-20; Lc
10,25-37)
O Verbo de Deus não cessa de
fazer-se carne, mas nós estamos sempre às voltas com a tentação de menosprezar
a carne em nome de poucos substantivos e muitos adjetivos. O essencial da vida
cristã, mesmo sendo exigente, não é complicado, não se esconde em difíceis fórnulas
ou teoremas. Mas precisamos nos livrar da mania dos especialistas: levantar sempre
novas perguntas, acrescentar novos pontos na discussão já esgotada, formular
conceitos que nos mantêm soberanamente inativos e indiferentes. Esquecemos que Deus ama a terra e a humana
carne e preferimos levantar questões sobre a vida eterna. Ignoramos que a ação é a melhor manifestação
da vida e agarramo-nos a conceitos que classificam e hierarquizam,
desqualificando o Evangelho e sentindo-nos plenamente justificados.
“Ele, porém, querendo justificar-se, perguntou a
Jesus...”
Muitas das perguntas que fazemos não
passam de estratégias para desviar da questão central. Jesus acabara de enviar
os discípulos e discípulas – muitos de origem samaritana – em missão e de
recebê-los de volta, com o coração cheio de alegria e de novidades para
partilhar. Eles haviam anunciado a proximidade do Reino de Deus, curado
doentes, recontruído a paz; haviam se hospedado nas casas de pessoas
desprezadas e sentado à mesa com elas. Para as pessoas muito espiritualistas,
tudo isso parecia ser coisas demasiadamente corporais, materiais e terrenas.
Entre decepcionado e escandalizado, um doutor da lei procura testar a ortodoxia
de Jesus e recolocá-lo nos trilhos da verdadeira religião. Com a pergunta
pela vida eterna, o teólogo do
judaísmo quer afastar Jesus das preocupações com a vida cotidiana das pessoas.
Considerando também a passagem de Lucas 18,18-30, parece que são especialmente
as pessoas que não querem se comprometer com os irmãos e irmãs que levantam a
preocupação pela vida eterna. Como se a religião fosse uma espécie de droga que
afasta das dificuldades da vida presente.
“O que devo
fazer para herdar a vida eterna?”
Nunca faltam pessoas que reduzem a
fé a um corpo de doutrinas. Para elas, a essência da fé e da prática da
religião se resume em aprender corretamente a doutrina, saber distingui-la das
heresias e contrapô-la às fórmulas erradas; praticar corretamente as devoções e
ritos prescritos; submeter-se formalmente às autoridades do próprio grupo religioso;
manter a reta intenção naquilo que fazem; introduzir o nome de Deus na
linguagem cotidiana e imagens sacras nos diversos ambientes.
Sabendo da erudição teológica, da
estreiteza de horizontes e da má intenção do doutor da Lei, Jesus não se dá ao
trabalho de responder à sua pergunta, e pede que o próprio inquirente responda,
o que ele faz com absoluta precisão: a Lei manda amar a Deus com todo o
coração, com toda alma e com toda a força e ao próximo como a si mesmo. Jesus
apenas chama a atenção para a dimensão prática desta doutrina: “Respondeste
corretamente. Faze isso e viverás.” O
segredo da vida está na prática e não na prédica!
Jesus não diz que este é o caminho
para assegurar a vida eterna, uma
vida suplementar e superior depois ou à margem desta vida, mas simplesmente um caminho de vida. A vida eterna é
também vida interna à história e,
essencialmente, vida terna. Será que
sem ternura e sem compaixão, dadas ou recebidas, a vida merece este nome? Será
que a vida não adquire dinamismo de eternidade exatamente no dom terno,
compassivo e solidário de si, como nos ensinou com a vida o já saudoso Pe.
Ceolin?
“E quem é o meu próximo?”
Com a primeira pergunta, o doutor da
lei queria testar e provar a ortodoxia
de Jesus, mas, com a segunda, pretende se
justificar. A questão do amor a Deus é mais abstrata, manipulável e pouco
mensurável. Mas como o amor ao próximo é mais concreto, e as autoridades
religiosas discutiam incansavelmente sobre a quem se aplica o apelativo
‘próximo’. A doutrina oficial praticamente identificava o próximo com quem
pertencia ao judaísmo, com os membros do
próprio grupo.
Por trás da tentativa de justificar
a estreiteza do seu mundo e a pouca universalidade do seu amor, o doutor da lei
escondia a implícita intenção de recriminar
a prática inclusiva de Jesus, pois ele acolhia mulheres pecadoras, curava
endemoniados gesarenos e enviava discípulos/as a todos os povos. Como judeu que era, Jesus não deveria reservar o pão do
Evangelho aos filhos legítimos do judaísmo e evitar desperdiçá-lo com os
pagãos, filhos bastardos e cães?
Esta mesma ideologia mortífera
ressoa nas perguntas e acusações dirigidas hoje contra alguns agentes e
organizações pastorais da Igreja: por que gastar tempo e dinheiro defendendo os
direitos humanos dos homosseuxuais, migrantes e presos, em vez de se dedicar
aos ‘homens e mulheres de bem’? Por que investir tanto em pastoral social em
vez de melhorar o templo e o culto? Faz sentido preocupar-se com o ecumenismo e
o diálogo inter-religioso se temos tantos católicos ao nosso afastados?
“Um homem descria de Jerusalém para Jericó e caiu nas
mãos de assaltantes.”
Jesus evita a discussão teórica sobre
o próximo e prefere propor uma situação concreta. Há um homem (não se diz se é
judeu o pagão) agredido, caído na estrada, necessitado de socorro. Um sacerdote
e um levita passam pelo local, enxergam a pessoa assaltada e ferida. Mas não
tomam conhecimento de suas necessidades, afastam-se
e seguem o caminho exclusivo da atenção às práticas religiosas e aos códigos
legais. Afinal, aquele sujeito caído na estrada poderia ser alguém que deixara
a santa Jerusalém e abandonara a comunidade de fé...
Mas aparece um homem que vivia na
Samaria e que, movido pela compaixão,
se aproxima da pessoa ferida e, sem
perguntar se é ou não é seu próximo, cuida dos ferimentos, carrega-a no próprio
animal e convoca outros a completar o cuidado. Uma pessoa que não vinha do
Templo e carregava na própria carne a ferida do desprezo e da exclusão foi
capaz de perceber a necessidade e se proximar de uma outra pessoa menosprezada
e ignorada. O critério que orientou sua sua ação não foi a pertença religiosa mas
a necessidade humana.
“Qual dos três foi o próximo do homem que caiu nas
mãos dos assaltantes?”
A verdadeira questão não é saber quem é nosso próximo, mas de quem nos aproximamos com compaixão. E
não se trata apenas de uma pergunta dirigida aos indivíduos, mas também às
Igrejas e comunidades cristãs. “Qual dos três foi o próximo do homem que caiu
nas mãos dos assaltantes?” De que tipo de
pessoas e situações nossos líderes religiosos e nossas Igrejas se dedicam
solidária e compassivamente enquanto caminham na história? Ou os olhos
voltados evasivamente ao céu não lhes permitem ver os homens e mulheres
assaltados em sua dignidade e caídos por terra?...
Jesus apresenta uma pessoa socialmente
excluída e considerada herética como modelo de humanidade e de religiosidade.
Para ele, os sacerdotes e levitas, tidos como pessoas exemplares e absolutamente
dignas, são rebaixados ao nível de desumanos e reprováveis. Não lhes falta
conhecimento nem fidelidade literal às leis. O que eles não têm é a humana compaixão, este dinamismo vital que
impulsiona o movimento de aproximação e leva a superar os muros que dividem,
esta força que se rege pela critério da necessidade das pessoas concretas e não
pelos seus méritos ou pela pertença social ou religiosa.
Assim, qual é o caminho que conduz a
uma vida eterna, à maturidade humana, à fé verdadeira? Estão no caminho da vida
eterna as pessoas que se comprometem e se fazem próximas daqueles/as que estão
abatidos e cansados à beira do caminho, estejam geograficamente perto ou longe.
Estão na vida eterna porque estão com Jesus Cristo. “Todas as vezes que
fizestes isso a um destes mais pequenos, que são meus irmãos, foi a mim que o
fisestes” (Mt 25,40). Façamos isso e viveremos eternamente!
“Ele é o primogênito de toda a criação...”
Jesus, primogênito da criação e a cabeça de um corpo formado de
discípulos e discípulas, divino samaritano que vens ao nosso encontro. Somos a
Igreja, teu corpo vivo na história e não queremos ter outro caminho que o teu.
Ajuda-nos a seguir teus passos e as batidas do teu coração, caminhando
compassivamente ao encontro das pessoas consideradas indignas ou inúteis pelos
sistemas que se guiam pelo poder e pelo lucro. Que jamais nossos passos se
afastem daqueles/as que só podem contar conosco. Seria este o segredo de uma
vida plena de sentido e de luz? Assim seja! Amém!
Pe. Itacir Brassiani msf
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