Quase não dá para acreditar!...
Para o calendário litúrgico das comunidades cristãs católicas,
hoje é o último dia do ano 2014, ano que começou em dezembro de 2013. Como
todos os tempos marcados pela percepção de um fim, o dia de hoje poderia comportar
uma forte chamada de atenção, uma ameaça com julgamentos implacáveis, uma
lembrança sofre a brevidade e a fugacidade da vida, um arrogante desprezo ou uma
condenação implacável do mundo e uma celebração da “cidade de Deus”.
Enretanto, não me parece esse o tom da Palavra de Deus
que nossa tradição litúrgica escolheu para este dia (Ap 22,1-7; Lc 21,34-36).
Confesso que fiquei profundamente comovido com a luz e o alimento que ela me
brindou na meditação que acabo de fazer, no amanhecer deste dia. É tanta confiança,
otimismo e esperança que quase não consigo acreditar. A beleza e a profundidade
são tamanhas que não consigo expressar adequadamente.
É verdade que Lucas começa chamando-nos a tomar
cuidado, a permanecer vigilantes, a não trocar a sensibilidade espiritual pela
gula, pela embriaguez e pelas muitas preocupações que nos aprisionam de modo
repentino e implacável, como tarrafa lançada sobre um indefeso e distraído cardume
de peixes. É preciso exercitar a oração como um caminho que nos mantenha
vigilantes e fortaleça nossos pés, para estarmos de pé e a camino diante do
Filho do Homem, que vem, que está vindo desde sempre.
Mas essa vigilância não tem nada a ver com apreensão e
medo. Trata-se de manter os olhos da fé limpos e abertos para reconhecer e
acolher a visita de Deus e o advento do seu reino entre os pequenos. Em meio a
mil dificuldades que ameaçam derrubar e imobilizar as comunidades cristãs, João
levanta os olhos e alarga os horizontes. E nos convida a ver coisas
maravilhosas, inacreditáceis. Ele as descreve a seu modo e no seu horizonte
cultural e espiritual, mas o que ele quer e que nós vejamos os sinais que discretamente
nos rodeiam e envolvem.
Exilado na ilha de Patmos, profundamente sintonizado
com as dores de parto e a fecundidade da fé das suas comunidades, o velho
evangelista vê coisas impressionantes: uma cidade, no centro da qual estão os
tronos de Deus e do Cordeiro; um rio de água viva, brilhante como cristal,
brotando destes tronos; plantadas nas duas margens desse rio, árvores da vida,
que produzem frutos todos os meses do ano e oferecem folhas que curam; os
servidores de Deus a ele prestando culto, vendo sua face e a refletindo em seus
próprios rostos; não há mais noite nem maldade, nem lâmpadas nem sol, porque o
próprio de Deus é a luz que tudo ilumina...
Coisa maravilhosa e impressionante! Na cidade de Deus,
útero no qual somos regenerados, mas também geramos e sustentamos a cidade dos
Homens, não há templo, nem altar, nem sacerdotes! Tudo isso é transitório! Na
meta final que nos atrai e inspira, os buscadores de Deus, todos os homens e
mulheres de boa contade, têm a surpresa e a graça de vê-lo face a face. A face
de Deus resplandece na face dos filhos e filhas de Deus! Por isso, olhando uns
para os outros, amando-nos e servindo-nos reciprocamente, contemplamos e
servimos o próprio Deus. E então seremos como árvores da vida, plantadas às
margens do rio de cristal, fecundas e generosas. É assim que reinaremos por
toda a eternidade. É assim que o reino de Deus será invencível e eterno.
“Eis que eu venho em breve!”, diz uma voz misteriosa.
Desde sempre ele é aquele que está vindo, batendo discretamente à nossa porta,
correndo como teimoso fio de água em meio a secas terras, brilhando no olhar
dos amantes, gritando no clamor dos sofredores, chorando na saudade devoradora dos
utópicos. Com os pés na terra – por condição e por graça! – saboreamos o gosto
amargo das contradições do nosso mundo, belo e apaixonante; lutamos contra as
ambiguidades que marcam nossos sonhos e projetos; carregamos, resignados,
nossos medos e feridas; sofremos com os paradoxos das nossas Igrejas... Mas não
entregamos os pontos, pois vemos longe!
“Eis que eu venho em breve!” Ele vem, ele está vindo.
Seremos capazes de escutar e ver seus sinais nas brumas leves das paixões que
vem de dentro, nas roupas do varal balançando ao vento? Sim, podemos! E
queremos! E porque Deus também quer, tudo é possível. Hoje não é o fim, mas o
começo; não é tempo de exéquias mas de parto! Não percamos o brilho deste
amanhecer, não percamos o ritmo desta dança, não estejamos distraídos nesta
espera que faz toda diferença!
Itacir Brassiani msf
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