As bem-aventuranças como caminho
de santidade (Mateus
5,1-12)
Felizes
os que são pobres no espírito,
porque deles é o Reino dos Céus (Mt 5,3)
porque deles é o Reino dos Céus (Mt 5,3)
1 Todas as pessoas são chamadas à santidade
Na Boa-nova
das bem-aventuranças, Jesus propõe um caminho de santidade. No mundo católico
romano, o dia escolhido para celebrar a vida de todos os santos é 1º de
novembro, ao passo que o dia 2 de novembro é um dia especial para fazer memória
das pessoas bem-aventuradas e que já se encontram na glória do Pai. Para nós,
que ainda temos uma missão a cumprir neste mundo, Jesus propõe um caminho de
santidade e que já começa nesta vida. Conforme a comunidade de Mateus, as oito
bem-aventuranças são esse caminho.
Todas as
pessoas são chamadas à santidade, a fim de serem felizes. “Sede santos, porque
eu, Javé vosso Deus, sou santo” (Levítico 19,2). Mateus faria uma releitura
desse chamado da seguinte forma: “Sede perfeitos, como o Pai celeste é
perfeito” (Mt 5,48). Coerente com sua experiência com o Deus compassivo, Lucas
formula assim o mesmo convite: “Sede misericordiosos como vosso Pai é
misericordioso” (Lc 6,36).
2 Jesus, o novo mestre da justiça, nos ensina o caminho da santidade
Quando Mateus
apresenta Jesus fazendo cinco grandes discursos (Mt 5-7; 10; 13,1-52; 18;
24-25), sua intenção é apresentá-lo como o novo Moisés, a quem eram atribuídos
os cinco livros da lei, o Pentateuco.
A lei era
considerada a expressão da vontade de Deus. No tempo de Jesus, muitos fariseus
estavam preocupados em viver as leis do Pentateuco em todos os seus pormenores.
Jesus, porém, vive e anuncia essa vontade de Deus indo além da letra da lei.
Diz que, mais que a letra, é o espírito da lei que importa. Disse ainda que o
espírito da lei consiste na vivência do amor a Deus e ao próximo como a si
mesmo (Mt 22,34-40). Assim, o amor passa a ser a orientação fundamental para o
nosso agir (cf. Mt 12,1-8; 23). Mateus chama essa vontade de Deus de justiça do
Reino (cf. Mt 6,33). Se Moisés era o antigo mestre da lei, Jesus é o novo
mestre da justiça a nos ensinar o caminho de Deus, o caminho da santidade no
amor.
3 Bem-aventuranças: a porta de entrada ao Sermão da Montanha
No primeiro
discurso, no Sermão da Montanha (Mt 5-7), o mestre da justiça ensina um
conjunto de orientações para a boa convivência na comunidade, chamada a viver
as relações do Reino. Tal como Moisés escrevera as palavras da lei
encontrando-se sobre um monte, Jesus dá as novas orientações também numa montanha
(Êxodo 34,28; Mt 5,1).
As
bem-aventuranças são a porta de entrada ao Sermão da Montanha (Mt 5-7). Elas
são um programa de vida para trazer felicidade plena a quem adere à Boa-nova de
Jesus. São orientações para seguir no caminho de santidade.
4 Bem-aventuranças: as atitudes no caminho de santidade
A justiça do
Reino dos Céus, isto é, a vontade de Deus, é o carro-chefe das
bem-aventuranças. Convém lembrar que, em Mateus, “Céus” é sinônimo de “Deus”
(cf. Lucas 6,20). É importante que tenhamos isso presente para superarmos a
tentação de transferir o Reino para depois da morte. Para Jesus de Nazaré, seu
projeto do Reino é para esta vida, que é eterna. Ele não diz que os pobres
“serão” felizes. Porém, afirma: “porque deles é o Reino dos Céus” (Mt 5,3.10).
E, ao anunciar a plataforma do Pai, Jesus diz que o Reino está próximo. Estar
perto no sentido temporal quer dizer que é para breve e não para um futuro
distante. Ao mesmo tempo, o Reino está perto no sentido espacial, isto é, ele
já está presente entre nós na vida de Jesus, de um lado, e, de outro, em todos
os gestos de solidariedade e de partilha.
O Reino é o
projeto na primeira e na oitava bem-aventurança (Mt 5,3.10). E, no centro,
estão a busca da justiça (do projeto do Reino) e a busca da misericórdia (ter o
coração voltado para quem está na miséria). Uma vez realizada a justiça de
Deus, os empobrecidos deixarão de ser oprimidos, pois haverá partilha e
solidariedade. Por isso, Jesus os declara felizes.
5 Felizes os pobres no espírito
A primeira
bem-aventurança é a mais importante. As demais são desdobramentos desta. Qual é
a porta de entrada para o Reino? Quem são os pobres no espírito? São aquelas
pessoas nomeadas nas demais bem-aventuranças, ou seja, as que choram, as que
são humildes e não têm terra (cf. Salmo 37,11), as que têm fome, as que são
misericordiosas, as puras de coração, aquelas que promovem a paz e as que são
perseguidas por causa da justiça. Observemos que tanto em relação aos pobres no
espírito (primeira bem-aventurança), como aos perseguidos por causa da justiça
(oitava), fala-se do mesmo prêmio: deles já é o Reino dos Céus (verbo no
presente). Trata-se do mesmo grupo de pessoas.
E quais são as
dádivas para esses empobrecidos ou para quem com eles é solidário? Jesus anima
a sua esperança anunciando-lhes o Reino para o tempo presente. E os seus frutos
serão: consolo, terra partilhada, fartura, misericórdia, contemplação de Deus e
filiação divina. E ser filha e filho de Deus é agir à sua imagem e semelhança,
isto é, ter as mesmas atitudes de Deus.
6 É suficiente ser pobre?
Não. Ser pobre
não é suficiente. Está claro que os empobrecidos são os preferidos de Deus,
justamente porque ele não pode ver nenhum de seus filhos e nenhuma de suas
filhas passando por necessidades. Ainda mais, quando a pobreza é fruto da
injustiça humana. A preferência de Deus é sua misericórdia para com seus filhos
que sofrem violência, como vítimas de seus próprios irmãos. É interessante
notar que esta mesma bem-aventurança, no Evangelho segundo Lucas, reza assim:
“Felizes vós, os pobres, porque vosso é o Reino de Deus” (Lc 6,20).
Quando a
comunidade de Mateus acrescentou “no espírito” à primeira bem-aventurança de
Jesus, também estava preocupada com o fato de que há pobres que têm corações e
mentes possessos pelo espírito de rico, buscando o sentido mais profundo para a
vida na riqueza, no prestígio e no poder. Por isso, Mateus quis deixar bem
claro que não basta ser pobre, mas que é preciso ser “pobre no espírito”, isto
é, viver de acordo com o espírito do próprio Deus. Ser pobre também por dentro,
interiormente. É provável que a comunidade de Mateus, ao acrescentar na
parábola do banquete a presença de um homem sem a veste nupcial (Mt 22,1-14;
comparar com Lc 14,16-24), queira justamente referir-se à necessidade de também
ser pobre no espírito, ou seja, livre de tudo que escraviza. Ser pobre no
espírito também é a opção pelo projeto da justiça e da misericórdia, é viver na
total confiança e dependência de Deus, é confiar na partilha, na vida simples e
na fraternidade.
Aliás, são
justamente as pessoas que buscam a felicidade no consumismo, na acumulação e no
individualismo que perseguem aos que lutam pela justiça do Reino, pela paz e
pela partilha. Foi assim que, no passado, os poderosos perseguiram os profetas
(Mt 5,10-12) e, ainda hoje, caluniam e perseguem a quem luta por um Brasil em
que também as pessoas excluídas possam fazer, pelo menos, três refeições ao
dia.
7 A felicidade proposta pelo capitalismo e a felicidade do Reino de Deus
Faz alguns
anos, o padre Renzo Flório, celebrando conosco na comunidade São Judas Tadeu,
em São Leopoldo, confrontou as bem-aventuranças com as promessas de felicidade
da sociedade consumista. Em sua reflexão, Flório disse mais ou menos como
segue.
Enquanto a ideologia
capitalista declara felizes os que acumulam, Jesus anuncia a bem-aventurança
para os pobres no espírito, para as pessoas totalmente livres e desapegadas de
qualquer riqueza idolatrada.
O projeto
mundano proclama feliz quem vive em festanças, ao passo que Jesus afirma que
bem-aventuradas são as pessoas que agora choram, uma vez que irão superar as
suas aflições.
Para o sistema
do capital, felizes são os donos de grandes extensões de terra. Para Jesus, no
entanto, bem-aventurados são os pobres que não têm terra, pois irão conquistá-la
para nela viver e trabalhar.
Enquanto a
mentalidade do projeto deste mundo diz que são felizes as pessoas que praticam
a injustiça, Jesus atesta que bem-aventurados são os que têm fome e sede de
justiça, lutando para que essa fome e essa sede sejam saciadas.
A mística do
capital declara felizes os individualistas voltados somente para seus próprios
interesses, ao passo que Jesus anuncia que bem-aventuradas são as pessoas
misericordiosas, solidárias.
Na propaganda
de quem defende o poder financeiro, são felizes os desonestos e falsos, os
cínicos e debochados. Para Jesus, porém, são bem-aventurados os puros de
coração, as pessoas transparentes, sinceras, autênticas.
O sistema
deste mundo proclama felizes os que alcançam o que querem através da violência
e da guerra. Jesus afirma que bem-aventurado é quem promove a paz.
Por fim, os
poderosos dizem que feliz é quem calunia e persegue aqueles que lutam por vida
digna para todos. Jesus, contudo, declara felizes os perseguidos por causa de
seu engajamento na luta pela justiça.
Hoje, Jesus
renova o convite para nós: “Buscai em primeiro lugar o Reino de Deus e a sua
justiça, e todas essas coisas vos serão dadas por acréscimo” (Mt 6,33). E o
caminho da justiça do Reino, o caminho da santidade, está na prática, não da
letra da lei, mas do espírito da lei proposto nas orientações fundamentais para
a vida, e que Jesus sintetiza nas bem-aventuranças. É um projeto que abrange a
vida toda, envolvendo as relações com os bens, com as pessoas, conosco mesmos e
com Deus.
Quem é
verdadeiramente feliz? Qual a verdadeira felicidade?
Ildo Bohn Gass
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